NOITE DE SÃO JOÃO, de Geny Vilas-Novas

Conto extraído do livro Feitiço do boêmio: Contos inspirados na vida e na obra de Noel Rosa, Editora Bom Texto


Resvalou entre os tumulos enquanto o esquife de Noel baixava à sepultura. Boca borrada de batom. Lágrimas fazendo escorrer o creiom no canto dos olhos. Máscara de colombina transtornada. Cambaleante, Ceci entra no táxi. Desorientada pela dor, peito afogado em recordações. Todas muito amargas! Lembra a morte da mãe, a perversidade da madrasta, a omissão do pai. Atormentada, compra uma passagem. Da janela do ônibus, vê Nova Friburgo cada vez mais distante até sumir de vista. Muri vai ficando para trás, afastando-se, afastando-se, afastando-se ... As colinas, os campos floridos aplacam os demônios e acalmam o rodamoinho em que está mergulhada.
Luzes, silhuetas dos prédios, Cidade Maravilhosa!

A acomodação na casa de parentes, o trabalho como caixa de uma loja, o dinheiro regrado, regrado. Seus dezessete anos sepultados sem alardes. A primeira vez que vai com amigas a uma casa noturna. Veste um tailleur azul inadequado. Inadequados também os gestos e as palavras. Volta ali algumas vezes, antes de ser contratada.

Troca o tailleur azul por um soirée esvoaçante. O carmim dos batons realça a forma de coração dos lábios delicados. Lápis preto de ponta bem afinada contorna os olhos e marca no rosto uma pinta preta. A grande flor nos cabelos pende para um lado. Os goles de bebida sorvidos devagar subvertem a timidez e deixam os modos cada vez mais requintados.
— Inteligente aprendiz! — comentam as mais antigas na casa.

Ceci sonha arrancar, um dia, o irmão mais novo das garras da madrasta. Não gosta de pensar nisso enquanto trabalha. Os clientes exigem alegria, nenhuma nuvem sombria deve turvar-lhe o semblante.

O salão da casa noturna está enfeitado de bandeirinhas. Alusão a uma fogueira incandescente no centro da pista de dança. Fogos de artifícios clareiam o céu da noite de ventos cortantes. Ceci ajeita o chapéu de palha assim que entra um rapaz magrinho, cigarro no canto da boca. Este será o homem que mudara o rumo da minha vida? Nunca se tem certeza. Soube mais tarde que o coração do jovem também bateu descompassado. Apresentou-se como Noel. Perguntas rotineiras e desconcertadas dos enamorados. Aos poucos a saliva foi afinando e umedecendo os lábios ressecados. A pulsação do sangue nas veias acalmando. E o apaziguamento das mãos geladas deu lugar ao embate enquanto dançavam. Corpos em chamas se tocando, experimentando-se e se conhecendo. Saíram da festa saciados pelas libações e foram acabar de matar a sede em um aposento na Lapa.

Ceci saiu da casa dos parentes, foi morar em um quartinho que dividia com Noel nas horas de folga. A moça chegava aflita do trabalho, revirando gavetas em busca da melhor camisola. Refrescava-se em banho momo e perfumava as carnes alvas. Mergulhava entre os lençóis e ouvia os passos apressados do amado no corredor. A maçaneta girava, o mundo ficava estático e silencioso. Os pingos da chuva paravam no ar antes de alcançarem o solo. As lágrimas ficavam no meio das faces. Cessavam os gritos das crianças, o barulho dos bondes. Não mais ladravam os cães. o amante se despia com sofreguidão, a volúpia não cedia lugar aos pudores. As bocas davam conta das bocas e as mãos do resto. Tremiam! No corpo de Noel, Ceci reconhecia macios e duros. A barba do rapaz avermelhava a pele sensível dos seios da moça.
Gozo, exaustão, sono profundo.

·········

Do nada, em madrugada chuvosa, na porta da casa noturna surgem os olhos matreiros de Mário Lago. O brilho desse olhar desperta novos devaneios no coração de Ceci: casa, criados, filhos. Marido gentil abrindo a porta do carro.

Mário a apresenta aos artistas de teatro. Moça tão linda! Precisa entender das artes. Vão a vernissages de pintores famosos. Jantam em restaurantes caros: lagostas, vinhos finos, sobremesas sofisticadas, cafezinhos, licores.
Envenenado pelo ciúme, Noel não se conforma. Gritos, impropérios, desvarios sacodem as paredes do quarto e voam pela janela assustando as pessoas na calçada. Cada vez mais, Ceci entrega-se ao álcool como se ele fosse um remédio capaz de curar as muitas feridas.

Na última noite em que Noel a visita, não há briga. Ela? Estirada na cama, entorpecida. Noel, silencioso, passa a noite sentado.

No outro dia, quando Ceci acorda, Noel já não está.

Sobre a mesa do quarto, a letra de mais um samba.

A LÓGICA DOS RAIOS, de Nelson Motta


Incrível, fantástico ou extraordinário? Apenas coisas da vida: no ano passado, 131 brasileiros morreram fulminados por raios em diversas regiões do país. É mais gente do que as vitimas de desastres aéreos no período, que têm muito mais chances de acontecer, por dependerem de fatores humanos e mecânicos, além dos meteorológicos. Os raios, não: desabam dos céus aleatoriamente para fulminar um ser humano inocente, de qualquer sexo, idade ou classe social, que estava no lugar errado, na hora errada.

Pelo número de mortos no Brasil, imagina-se quanta gente do mundo inteiro voltou ao pó por uma descarga de milhões de volts disparada dos céus. A vida é mesmo assim, está sempre por um fio, absolutamente fora de qualquer controle humano. E pode acabar num raio, ou num infarto, a qualquer momento. Até para o mais poderoso dos mortais.

Desde Zeus e Iansã [foto], os raios são a simbologia ancestral do poder da divindade e representam a força do acaso, da fatalidade e do destino. Eles fulminam a onipotência humana e revelam a nossa fragilidade e desimportância. Além dos acidentes, das tragédias, das doenças terminais e aleatórias, das balas perdidas e das dores crônicas que, como raios, fulminam a existência de alguém, não existem dinheiro ou poder no mundo que resistam a um simples cálculo renal, um apêndice supurado ou a um dente com o nervo exposto. 

É duro admitir, mas não há justiça na natureza, nem no cosmos, nem nos deuses. É melhor aceitar que o conceito de justiça é uma invenção humana, com suas imprecisões e precariedades, para possibilitar uma vida civilizada em comunidade.

Dizem que os raios não caem duas vezes no mesmo lugar, mas há controvérsias: pelo menos metaforicamente, a história vem desmentindo esta crença. Senão Sarney não teria sido tantas vezes presidente do Senado. Brizola não teria governado o Rio de Janeiro duas vezes. Rosinha não teria sucedido a Garotinho.

Poucos ainda usam a velha expressão de origem portuguesa "vá para o raio que o parta". Mas, se for usar, diante das estatísticas brasileiras, cuidado com os seus desejos, porque eles podem se realizar. (Publicado originalmente em O Globo de 26/11/10. Foto da escultura de Iansã tirada no Parque da Catacumba, Rio de Janeiro)

A ONDA, de Susan Casey

TRADUÇÃO DE IVO KORYTOWSKI



TRECHO DA INTRODUÇÃO DO LIVRO:

A história está repleta de testemunhos sobre ondas gigantes, monstros na faixa dos trinta metros ou mais, porém até recentemente os cientistas os descartavam. Eis o problema: de acordo com a física básica das ondas oceânicas, as condições que podem produzir uma onda de trinta metros são tão raras que praticamente nunca acontecem. Qualquer alegação de que alguém tenha visto uma, portanto, não passaria de papo furado de pescador ou mentira pura e simples.

Mesmo assim, era difícil desprezar o relato do herói polar Ernest Shackleton, que estava longe de ser o tipo de pessoa com inclinação para exageros histéricos. Em sua travessia da Antártida à ilha da Geórgia do Sul, em abril de 1816, Shackleton observou movimentos estranhos no céu noturno. “Em seguida, percebi que o que eu vira não havia sido uma brecha nas nuvens, mas a crista branca de uma enorme onda”, escreveu. “Durante meus 26 anos de experiência no oceano em todos os seus estados de ânimo, eu nunca vira uma onda tão gigante. Uma sublevação poderosa do oceano, algo bem diferente das grandes ondas de crista branca que tinham sido nossos incansáveis inimigos por muitos dias.” Quando a onda atingiu seu navio, Shackleton e sua tripulação foram “lançados à frente como uma rolha” e a embarcação ficou alagada. O navio só não soçobrou por pura sorte e porque a tripulação conseguiu rapidamente retirar a água com baldes. “Francamente, torcemos para que nunca mais nos deparássemos com uma onda daquelas.”

Os homens no cargueiro München, de 850 pés, teriam concordado se algum deles tivesse sobrevivido ao encontro com uma onda semelhante em 12 de dezembro de 1978. O München, que todos acreditavam ser impossível de afundar, era o que havia de mais moderno em termos de embarcação, a nau capitânia da marinha mercante alemã. Às 3h25, fragmentos de um pedido de socorro em código Morse com origem 720 quilômetros ao norte de Açores indicavam graves danos causados por uma onda. Mas mesmo depois que 110 navios e 13 aeronaves foram mobilizados — a mais completa operação de busca na história da navegação —, o navio e seus 27 tripulantes nunca mais foram vistos. Restara apenas uma pista assustadora: as equipes encontraram um dos barcos salva-vidas do München, que normalmente ficavam vinte metros acima da linha-d’água, boiando vazio. Os encaixes de metal retorcidos mostravam que o bote tinha sido arrancado. “Algo extraordinário” havia destruído o navio, concluiu o relatório oficial.

O desaparecimento do München aponta para o principal problema em se provar a existência de uma onda gigante: se você depara com esse tipo de pesadelo, é provável que ele seja o último de sua vida. A força das ondas é inegável. Uma onda de meio metro consegue derrubar um muro erguido para suportar ventos de duzentos quilômetros por hora, por exemplo, e alertas costeiros são emitidos até para ondas de um metro e meio de altura, que costumam matar quem for pego desprevenido no lugar errado. O número de pessoas que testemunharam de perto uma onda de trinta metros e conseguiram voltar para casa para descrever a experiência é ínfimo.


"O filme Tubarão deixou você com medo do mar? Este livro cheio de adrenalina desvenda a mais terrível força da natureza. Uma viagem ao mesmo tempo assustadora e inspiradora." People

DINHEIRO NÃO TRAZ A FELICIDADE



Se o dinheiro não traz a felicidade, deixa-me ser infeliz com 1 milhão de dólares em Paris”, costumava dizer um amigo de adolescência pra lá de galhofeiro (que na vida adulta se tornou um respeitado documentarista). O fato (cientificamente comprovado) é que o dinheiro pode aumentar o bem-estar, logo, a felicidade, mas até certo patamar: pra quem tem 1 milhão de dólares, mais 10 mil não fazem a menor diferença, mas para mim fazem, e muita!

Carl Barks, o “Homem dos Patos” criador do Tio Patinhas (e autor da pintura acima que tirei da capa do Volume 7 de As Obras Completas de Carl Barks - foi nessa revista que peguei também a citação a seguir) disse em entrevista concedida em 1983: "Sinto que um homem rico, não importa o quão rico seja, não é mais feliz ou satisfeito que um homem pobre. Então, sua riqueza de nada lhe serve. O rico não tira da vida nada que o pobre não tire. O pobre pode aproveitar os simples pequenos prazeres e se empolgar com eles tanto quanta o rico pode ir à ópera e morrer de tédio, ou ir às corridas de cavalo, perder alguns milhares de dólares e ficar furioso por isso durante toda a tarde. O dinheiro não compra nada que valha a pena, só coisas materiais".

ONLY ISRAEL & DEMOCRACIA ISRAELENSE

Aos amigos judeus ou não recomendo que assistam ao vídeo Only Israel no YouTube. Vale pela bela música e pela denúncia do antissemitismo travestido de antissionismo ("o mundo não está nem aí para o sangue judeu").



TRECHO DE RECENTE DISCURSO DO EMBAIXADOR DE ISRAEL NOS EUA SOBRE A DEMOCRACIA ISRAELENSE (traduzido por mim):


Aos 62 nos, a democracia de Israel é mais antiga do que mais de metade dos governos democráticos do mundo, os quais, por sua vez, representam menos de metade das nações existentes no planeta. Israel é uma das poucas democracias que nunca sucumbiram a períodos de governo antidemocrático. E Israel logrou este feito extraordinário apesar do fato de ser a única democracia que nunca conheceu um nanossegundo sequer de paz, tendo suportado pressões que há muito teriam esmagado a maioria das outras democracias. Numa região tão hostil — até fatal — ao governo do povo e pelo povo, a democracia de Israel prospera.

ELEIÇÕES 2010 versus 1884



Eleições à vista, e lá vem o desfile de políticos prometendo mundos e fundos (já não prometeram as mesmas coisas em eleições passadas? por que não fizeram?) Mas desta vez existe a consciência de que é preciso fazer uma grande faxina e atirar os políticos corruptos na latrina (foto acima). Para isto, temos a ajuda de sites como o Transparência Brasil, onde você pode consultar o histórico dos parlamentares, processos na justiça, como gastam o dinheiro que recebem, quem financiou suas campanhas etc. Uma curiosidade: já em 1884, no tempo do Império, quando o voto para a Assembléia Geral era censitário (só votavam pessoas acima de certa renda) e as mulheres sequer tinham esse direito, Machado de Assis escreveu uma crônica  bem atual  satirizando os políticos pedindo votos. Vamos a ela:


Venho pedir-lhe o seu voto na próxima eleição para deputado.
— Mas, com o senhor, fazem setenta e nove candidatos que...
— Perdão: oitenta. Que tem isto? A reforma eleitoral deu a cada eleitor toda a independência, e até fez com que adiantássemos um passo. [...]
— Bem; pede-me o voto.
— Sim, senhor.
— Responda-me primeiro. Que é que fazia até agora?
— Eu...?
— Sim, trabalhou com a palavra ou com a pena, esclareceu os seus concidadãos sobre as questões que lhe interessam, opôs-se aos desmandos, louvou os acertos...
— Perdão, eu...
— Diga.
— Eu não fiz nada disso. Não tenho que louvar nada, não sou louva-deus. Opor-me! É boa! Opor-me a quê? Nunca fiz oposição.
— Mas esclareceu...
— Nunca, senhor! Os lacaios é que esclarecem os patrões ou as visitas: não sou lacaio. Esclarecer! Olhe bem para mim.
— Mas, então, o que é que o senhor quer?
— Quero ser deputado.
— Para quê?
— Para ir à câmara falar contra o ministério.
— Ah! é contra o Dantas?
— Nem contra nem pró. Quem é o Dantas? Eu sou contra o ministério... Digo-lhe mesmo que a minha idéia é ser ministro. Não imagina as cócegas com que fico em vendo um dos outros de ordenanças atrás... Só Deus sabe como fico!
— Mas já calculou, já pesou bem as dificuldades a que...
— O meu compadre Z... diz que não gasta muito.
— Não me refiro a isso; falo do diploma, o uso do diploma. Já pesou...
— Se já pesei? Eu não sou balança.
— Bem, já calculou...
— Calculista? Veja lá como fala. Não sou calculista, não quero tirar vantagens disto; graças a Deus para ir matando a fome ainda tenho, e possuo braços. Calculista!
— Homem, custa-me dizer o que quero. O que eu lhe pergunto é se, ao apresentar-se candidato, refletiu no que o diploma obriga ao eleito.
— Obriga a falar.
— Só falar?
— Falar e votar.
— Nada mais?
— Obriga também a passear, e depois torna-se a falar e votar. Para isto é que eu vinha pedir-lhe o voto, e espero não me falte.
— Estou pronto, se o senhor me tirar de uma dificuldade.
— Diga, diga.
— O X. pediu-me ontem a mesma coisa, e depois de ouvir as mesmas perguntas que lhe fiz, às quais respondeu do mesmo modo. São do mesmo partido, suponho!
— Nunca: o X. é um peralta.
— Diabo! Ele diz a mesma coisa do senhor.

Crônica de Machado de Assis de 10 de novembro de 1884, publicada na seção "Balas de Estalo" da Gazeta de Notícias, extraída do livro Crônicas de Lélio (Ediouro). Fotos do editor do blog. Foto superior: "arte efêmera" de Mandela no Arte de Portas Abertas, em Santa Teresa, de 2005.

O POVO, UNIDO, JAMAIS SERÁ VENCIDO!


"Jesus foi crucificado pelo voto popular, que elegeu Barrabás.
Durante a revolução cultural, na China de Mao-Tse-Tung, o povo queimava violinos em nome da verdade proletária.
Não sei que outras coisas o povo é capaz de queimar.

O nazismo era um movimento popular.
O povo alemão amava o Führer.

O POVO, UNIDO, JAMAIS SERÁ VENCIDO!" (Rubem Alves)

BACO EM VERSOS




Existem muitos livros sobre vinhos. Mas o sommelier e gerente de restaurante Claudio Aragão — de cujo currículo constam passagens pelo famoso Antonino e pelo antigo bistrô francês Le Bec Fin, onde Ibrahim Sued recebia seus amigos todas as noites — conseguiu uma proeza inédita: combinar a enologia com a linguagem deliciosa do cordel. O resultado: Baco em Versos (A Literatura de Cordel visita o maravilhoso mundo dos vinhos), um “passeio agradável e poético pela história do vinho desde a antiguidade até nossos dias”, na opinião de Euclides Penedo Borges, presidente da Associação Brasileira de Sommeliers.
Segue uma pequena degustação:

FRANÇA - Borgonha

Com licença, França, o meu respeito
Nesse solo sagrado vou pisar
Borgonha de prolongados festins
Numa tarde de outono vislumbrar
O telhado prateado do "Hospital"
Seus três grandes vinhedos visitar
O Chablis, Beaujolais, o Maconnais
Côte de Beune, Nuits que não tem par
Auréola de riqueza e tradição
Vou entrando por essa região

Cá estou. Cheguei à Côte de Nuits
Vinhos fortes, redondos, consistentes
Qualidade vem no Nuits-Saint-Georges
Junto a ele se encontra o imponente
Romanée-Conti o mais caro vinho
Uma lenda, uma busca permanente
Seu calor e firmeza não tem preço
Para os novos ricos principalmente
Possui dezoito mil metros quadrados
Tão pequeno como um jardim sagrado

Puligny e Chassagne-Montrachet
São dois brancos que tem grande fineza
Vinhos secos que podem ser guardados
Em três anos se vê a realeza
O Pouilly-Fuissé de Maconnais
Você pode degustar na certeza
Que a elegância ali se faz presente
Outro vinho que vale ter à mesa
Atende pelo nome Beaujolais
Feitos somente com uvas Gamay

Na terceira semana de novembro
Chega a ser uma grande correria
À espera do Beaujolais-Noveau
Uma febre. Virou uma mania
E numa quinta-feira à meia noite
Em Paris, grande faixa anuncia
A presença do astro principal
E uma fila se faz em romaria
Da França, vai pro mundo degustar
Esse vinho parece superstar

Depois de percorrido longo trecho
À Tourraine dos castelos cheguei
O Vouvray, o Chinon, o Bourgeil
São bons vinhos que por lá encontrei
Clima ameno, paisagem angelical
Vinhos leves, ligeiros, me encantei
O Vouvray doce é maravilhoso
Ao prová-lo, de pronto comparei
Aos grandes de Sauternes. Seu sabor
É frutado, é seco, tem frescor [...]

Foto abaixo: Claudio Aragão na noite de lançamento no Restaurante Carioca. O livro pode ser encomendado diretamente ao autor pelo e-mail aclaudioaragaos@yahoo.com.br


O QUE SE PASSA NA CABEÇA DOS CACHORROS, de Malcolm Gladwell

TRADUÇÃO DE IVO KORYTOWSKI


TRECHO DE "TALENTOS MADUROS: POR QUE ASSOCIAMOS A GENIALIDADE À PRECOCIDADE" DA PARTE III DO LIVRO:

A genialidade, no conceito popular, está associada à precocidade — estamos inclinados a pensar que fazer coisas realmente criativas requer o vigor, exuberância e energia da juventude. Orson Welles produziu sua obra-prima, Cidadão Kane, aos 25 anos. Herman Melville escreveu um livro por ano em torno dos 30 anos, culminando, aos 32, com Moby Dick. Mozart compôs seu revolucionário “Concerto para Piano no 9 em mi bemol” aos 21 anos. Em algumas formas criativas, como a poesia lírica, a importância da precocidade se tornou lei. Que idade tinha T. S. Eliot quando compôs “A Canção de Amor de J. Alfred Prufrock” (“Envelheço...envelheço...”)? Vinte e três anos. “Os poetas atingem o auge na juventude”, sustenta o pesquisador da criatividade James Kaufman. O professor de psicologia Mihály Csíkszentmihályi concorda: “Os versos líricos mais criativos foram escritos por jovens.” De acordo com o psicólogo de Harvard Howard Gardner, uma importante autoridade em criatividade, “a poesia lírica é o domínio onde o talento é descoberto cedo, brilha intensamente e depois se extingue numa idade prematura.”

Alguns anos atrás, um economista da Universidade de Chicago chamado David Galenson decidiu descobrir se esse pressuposto sobre a criatividade era verdadeiro. Ele vasculhou 47 importantes antologias poéticas publicadas desde 1980 e listou os poemas que figuravam com mais frequência. Algumas pessoas, é claro, criticariam a ideia de que o mérito literário pode ser quantificado. Mas Galenson queria apenas consultar uma amostragem de acadêmicos literários para saber quais poemas consideravam mais importantes no cânone norte-americano. Os 11 primeiros foram, na ordem: “Prufrock”, de T. S. Eliot, “Skunk Hour” (Hora do gambá), de Robert Lowell, “Stopping by Woods on a Snowy Evening” (Parando nos bosques numa noite de neve), de Robert Frost; “Red Wheelbarrow” (Carrinho de mão vermelho), de William Carlos Williams, “The Fish” (O peixe), de Elizabeth Bishop, “The River Merchant’s Wife” (A Mulher do Mercador do Rio), de Ezra Pound, “Daddy” (Papai), de Sylvia Plath, “In a Station of the Metro” (Numa estação de metrô), de Pound, “Mending Wall” (Consertando o muro), de Frost, “The Snow Man” (O boneco de neve), de Wallace Stevens e “The Dance” (A Dança), de Williams. Esses 11 poemas foram compostos nas idades, respectivamente, de 23, 41, 48, 40, 29, 30, 30, 28, 38, 42 e 59. Não há indício, concluiu Galenson, do conceito de que poesia lírica é um passatempo de gente jovem. Alguns poetas realizam seu melhor trabalho no início da carreira. Outros se destacam décadas mais tarde. Dos poemas de Frost que constam de antologias, 42 foram escritos após os 50 anos. No caso de Williams, o índice é de 44%. No de Stevens, 49%.

O mesmo vale para os filmes, observa Galenson em seu estudo “Old Masters and Young Geniuses: The Two Life Cycles of Artistic Creativity” (Velhos mestres e jovens gênios: os dois ciclos de vida da criatividade artística). Sim, houve Orson Welles, cujo auge como diretor foi aos 25 anos. Mas existiu também Alfred Hitchcock, que dirigiu Disque M para matar, Janela indiscreta, Ladrão de casaca, O terceiro tiro, Um corpo de cai, Intriga internacional e Psicose — uma das maiores sequências de êxitos de um diretor na história — entre os 54 e 61 anos. Mark Twain publicou Aventuras de Huckleberry Finn aos 49 anos. Daniel Defoe escreveu Robinson Crusoe aos 58.

Os exemplos que Galenson não conseguia tirar da cabeça, porém, eram Picasso e Cézanne. Ele era um apaixonado pela arte e conhecia bem suas histórias. Picasso foi o prodígio incandescente. Sua carreira como artista sério começou com uma obra-prima, Evocação: O enterro de Casagemas, produzida aos 20 anos. Num curto período, ele pintou muitas das maiores obras de sua carreira — incluindo Les Demoiselles d’Avignon, aos 26 anos. Picasso se encaixa perfeitamente em nossas ideias usuais sobre genialidade.

Cézanne não. Se você for à sala de Cézanne no Musée d’Orsay, em Paris — a melhor coleção de Cézanne do mundo — encontrará ao longo da parede posterior uma sequência de obras-primas que foi pintada ao final de sua carreira. Galenson fez uma análise econômica simples, comparando os preços pagos em leilões por pinturas de Picasso e Cézanne com as idades em que aquelas obras foram criadas. Uma pintura feita por Picasso em torno dos 25 anos valia em média quatro vezes mais do que outra que ele fez aos 60 anos. Com Cézanne ocorria o inverso. As pinturas que ele criou em torno de 65 anos valiam 15 vezes mais do que as de sua juventude. O vigor, a exuberância e a energia da juventude pouco ajudaram Cézanne. Ele foi um talento maduro — e por alguma razão em nossa explicação da genialidade e criatividade nos esquecemos de enquadrar os Cézannes do mundo.

E JÁ QUE FALAMOS EM CACHORROS, VOCÊ ESTÁ CONVIDADO A VER MEU VÍDEO SOBRE O CLÁSSICO A REVOLUÇÃO DOS BICHOS (ANIMAL FARM) DE GEORGE ORWELL:

MANÉ GARRINCHA, de JOÃO SALDANHA


Uma vez, durante uma excursão do Botafogo que duraria uns quinze dias pelo interior e como o Mané [Garrincha] andasse um pouco gordo, o Dr. Gosling e eu combinamos fazer um controle alimentar no cobra. O doutor prescreveu o regime e todo o dia Mané comparecia à balança. Os dias iam passando o Garrincha não diminuía um grama sequer. E olhem que além do regime, havia jogos quase que de três em três dias.

Hilton Gosling passou a sentar junto do Mané, mas mesmo assim, nada. Até que numa cidade (Goiânia), o Neivaldo ficou no mesmo quarto com Garrincha e observou: — "O Garrincha tá tomando uma garrafa de mel toda a noite. Não é ele que está fazendo regime?"

O doutor coçou a cabeça e foi falar com Garrincha sobre o mel. A resposta veio pronta do mais sonso dos jogadores de futebol que já existiram: "É verdade, sim. Mas é que eu estou com uma tossezinha e mel é o melhor remédio para isto..."

O Mané é assim mesmo. Não estava fazendo o regime porque não achava oportuno, e pronto. De outra feita, no Campeonato Sul-Americano de 59 em Buenos Aires, Mané estava redondo como uma bolinha. Então eu perguntei a um companheiro de clube e que também fazia parte do selecionado, o que o Garrincha andava comendo que não devia e me foi respondido que Mané gostava muito de uvas e estava comendo uns dois quilos de uvas argentinas (até parecem jabuticabas de tão grandes) por dia. Mas a verdade é que como na época o Mané tinha andado machucado, acharam que o Dorval era melhor do que ele. Não se interessou absolutamente pelo resto.

De maneira que o Paulo Amaral não deve ficar agastado com as críticas em torno do peso do Mané. Nem que o Paulo se rache de verde e amarelo, conseguirá tirar um grama do Garrincha, se Garrincha não quiser. As críticas são no sentido de aviso e são para o Garrincha.

Evidentemente, continuarão. O Mané é muito maroto e jogador igual a ele, todo torto, todo simples, condenado pela ciência como atleta, não há nada nos compêndios que explique claramente como levá-lo. A do mel, por exemplo, não estava no livro que o Dr. Gosling tinha estudado. (Do livro de João Saldanha Meus amigos publicado em 1987 pela Editora Nova Mitavaí)

ANTISSIONISMO VERSUS ANTISSEMITISMO



Quem ainda duvida de que sob a fachada do antissionismo (uma posição política defensável) se abriga muitas vezes o antissemitismo (uma forma execrável de racismo) deveria visitar o HoloCartoons "dedicado a todos que foram mortos sob o pretexto do Holocausto".  

O SAMBA DE GARRINCHA

Texto de MÁRIO DE MORAES – Foto de RUBENS AMÉRICO. Publicado originalmente na revista O Cruzeiro de 18 de julho de 1964 e transcrito do site Memória Viva mantendo a ortografia da época.


Mané Garrincha, que sambou como quis frente a “João” de tôda ordem, e balançou muita rêde internacional com seus chutes de enderêço certo, volta ao cartaz numa nova facêta, bem diferente da que o fêz famoso. Garrincha, agora, fará os outros sambarem, dando receita para balanço. Não é conselho para furar arco adversário, mas forma acertada de cair no mais autêntico samba brasileiro. Porque Mané virou sambista. E, na base do teleco-teco, lançou seu primeiro sucesso, que tem como título “Receita de Balanço”. E, com intérprete, Elza Soares, a bossa em pessoa.

A história é simples, como simples são os seus personagens, apesar da fama que os cerca.

Há dias Elza Soares preparava, na cozinha da sua bonita casa da Ilha do Governador, um bem temperado feijão, quando ouviu o ritmado assovio. O samba não era conhecido. O assobiador, sim. Mané Garrincha surgiu, e com êle o diálogo:

 Onde aprendeu êsse samba, Nenen?
 Não aprendi, Crioula. É meu.
 Seu? E tu é sambista?
 Não sou, mas dou meus assobios.

A música era gostosa. Faltava a letra. Ali mesmo, entre pratos e panelas, Mané Garrincha preparou a primeira parte. Depois do almôço, saiu a segunda. Elza deu uns retoques, e veio o batismo: “Receita de Balanço”.

 Vou gravar êsse samba, Nenen.
 Deixa pra lá, Crioula.
 Mas, êle é muito bonito.
 Então, é todo seu.

A turma da Odeon ouviu o samba. Gostou e marcou gravação para o dia 24 de junho. “Receita de Balanço”completará um compacto de 4 sambas. Unindo-se a “O Morro”, “Bossambando” e “Na Roda do Samba”. Garrincha misturando-se com compositores do quilate de Carlos Lyra, Orlandivo e Helton Menezes.

Agora o diálogo é conosco:

 O samba é bom, Garrincha?
 Não sei. A Crioula gostou.
 Você já tinha feito algum outro samba?
 Não me lembro. Talvez, sim. De brincadeira.
 Qual é a letra?
 Não repare a voz. É assim: “Vamos balançar/ Cantando/ Vamos balançar/ Sambando/ Vamos balançar/ E deixando a tristeza da vida pra lá”. Agora, a segunda parte: “Como é que nasce o amor?/ Balançando/ Como é que se cura uma dor? Cantando/ Então vamos balançar/ E deixando a tristeza da vida pra lá”. Gostou?

Gostamos. Principalmente depois que ouvimos a repetição na voz de Elza Soares. É impossível, porém, separar Garrincha do futebol. Ainda mais na semana em que só se fala no seu joelho enfêrmo.

 Como vai o joelho, Garrincha?
 Acabei o tratamento hoje. Agora, segundo o médico que está me tratando, terei que ficar mais quinze dias parado. Depois posso voltar a jogar, em plena forma.
 Quem é êsse médico?
 É um holandês, de nome complicado. É muito bom, e deu jeito no meu joelho.

Garrincha se desabafa. Está triste com os que o criticam, por não ter excursionado com o Botafogo. Explica que teve vontade. O seu médico, porém, avisou ao técnico do clube:

 Se quiser, podem levá-lo. Mas, na volta, não quero mais vê-lo, nem me responsabilizo pelo que lhe possa acontecer. Se não fizer o tratamento direito, pode ter certeza de que Garrincha não ficará bom.
Mané não foi, pensando no próximo campeonato carioca. E na Copa do Mundo de 66:
 Essa eu trago, nem que tenha que morrer em campo.

Falaram que êle só pensa em dinheiro:
 Não é verdade. Gostar de dinheiro, eu gosto. Mas gosto ainda mais do futebol. Se o que dizem fôsse verdade, eu teria ido. Jogava cinco minutos em cada partida, garantia a cota do Botafogo e embolsava 200 mil cruzeiros por jôgo. Além disso, não indo, deixei de ganhar um milhão e pouco. Estou há 13 anos no Botafogo e só não excursionei porque preciso ficar bom. Para o bem do meu próprio clube.

Elza Soares vai trocar de roupa, para novas fotos. E comenta:
 Hoje eu posso escolher um vestido, entre muitos que enchem o meu guarda-roupa. Não era assim no tempo da Conceição.

“Conceição” era um vestido. O único que Elza Soares possuía quando iniciou no rádio. Presente de Ziza, espôsa de Aerton Perligeiro. Côr coral, era lavado todos os dias, para as apresentações da bossa crioula. Hoje Elza ganha 200 contos por “show” e faz de dois a três por semana.

PIADINHA (em inglês) & pequena reflexão sobre um possível antissemitismo erustido, inconsciente


Não estou defendendo a ação insensata de Israel, mas recentemente a Coreia do Norte atacou uma embarcação da Coreia do Sul sem nenhum motivo, matando dezenas de inocentes, e ninguém deu a mínima. De Gaza são lançados foguetes diariamente, há anos, contra a população civil de Israel e ninguém dá a mínima. Essa grita sistemática contra Israel que procura se defender (às vezes de forma desastrada ou exagerada, é bem verdade) contra um mar de inimigos que lhe negam o próprio direito à existência me cheira a antissemitismo enrustido. E a guerra civil que se estende há anos no Congo com atrocidades tremendas contra a população civil por que não desperta indignação? E Darfur? E o que os russos fizeram na Chechênia? E a repressão chinesa há décadas no Tibete? E os atentado contra civis em Dubai? Etc. etc. etc. Tudo mundo pode fazer o que bem entende que ninguém dá a mínima, só Israel não? No fundo, no fundo, o mundo torce por um Holocausto II (o fim de Israel).

SÓCRATES E O HAMAS, de Jayme Copstein

Estava começando a reler o discurso com que Sócrates se defendeu, em vão, no tribunal que já o condenara à morte antes mesmo de ouvi-lo, quando me chegou o noticiário sobre o incidente protagonizado por soldados do Exército israelense e militantes pró-islâmicos no navio turco “Mavi Marmara”. Fui logo para Internet, tentado saber o que acontecera de fato. 

Ressalvadas algumas vozes comedidas, chocadas com a tragédia, porém advertindo da necessidade de informações completas para a emissão de juízo, logo explodiu a histeria de sempre quando se trata de Oriente Médio. 

Não vou enumerar os massacres com dezenas e até centenas de milhares de vítimas em eventos na Nigéria, Somália, Sudão, Saara Ocidental, Tibet, Etiópia e em outros cenários de uma extensa lista porque boa parte dos leitores sequer terá prestado maior atenção no noticiário que enumerou as mortes como se fora em um balanço contábil. 

Chamou-me a atenção, todavia, entre as sentenças dos “tribunais populares” que logo congestionaram determinados sites, a observação de um “juiz” sobre “qual desfaçatez Israel vai arranjar agora para negar sua culpa”. Daí, pincei alguns parágrafos do discurso de Socrates, que me parecem muito atuais, mesmo tendo sido pronunciados há 2.400 anos: 

“Qual a impressão que, cidadãos de Atenas, os meus acusadores vos causaram não sei, mas, quanto a mim, quase cheguei a me esquecer de mim mesmo, tão persuasivos foram os seus argumentos. E, não obstante, é difícil achar no que disseram uma palavra verdadeira. Entre as muitas falsidades que proferiram, uma houve que me deixou perplexo - foi quando afirmaram que devíeis estar de sobreaviso, para não vos deixardes iludir por mim, dado eu ser um formidável orador. Por isso pensei que a maior desfaçatez do seu procedimento foi a falta de pudor de se verem desmentidos pelos fatos, quando eu aparecesse perante vós tal como sou, jamais como hábil orador; salvo se eles chamam hábil orador àquele que é verdadeiro. (...) que a vossa atenção não se prenda à forma do meu discurso, pois talvez seja pior, ou talvez seja melhor - e considereis de preferência e atentamente apenas isto: se o que digo é justo ou não, pois nisso consiste a virtude de juiz, enquanto a virtude do orador consiste em falar a verdade”.

O Conselho de Segurança da ONU condenou o uso da força que resultou na tragédia, mas acrescentou a necessidade de uma investigação “imediata, imparcial e transparente”.

A investigação do Conselho de Segurança da ONU é por demais necessária. Com toda a certeza, vai começar por um vídeo do governo israelense, mostrando soldados, antes de reagir, sendo agredidos pelos manifestantes pró-islâmicos com barras de ferro e machadinhas, quando o helicóptero os desceu no navio turco. O vídeo pode ser visto aqui

O próprio Governo israelense reconheceu que houve erro tático e deve punir a incompetência de quem comandou a abordagem do Mavi Marmara com poucos soldados, insuficientes para conter os alegados 600 manifestantes que o navio transportava. No meio de pacifistas sinceros, com toda a certeza havia militantes treinados para entornar o caldo, como é comum em qualquer movimento de massas. 

Não prever a hipótese é convite à tragédia.

RACISMO PÚBLICO, MAS SEM NOTICIÁRIO, de Carlos Brickmann

Um espantoso pedido foi feito pelo chefe da Assessoria de Assuntos Internacionais do Ministério da Ciência e Tecnologia à Universidade de São Paulo: que indique pesquisadores e cientistas de origem árabe "tendo em vista o desenvolvimento de programas e projetos de cooperação em Ciência e Tecnologia entre nosso País e os Países árabes". O absurdo passou em branco pela imprensa (se houve notícia, este colunista não chegou a encontrá-la, o que mostra como tudo foi feito discretamente, sem repórteres por perto).

Não basta ser brasileiro: agora é preciso verificar, como na Alemanha de 70 anos atrás, quem são os pais, avós e bisavós de nossos cientistas, para que possam participar de projetos de cooperação. O professor César Lattes, orgulho da Física brasileira, não estaria enquadrado na restrição étnica do Ministério da Ciência e Tecnologia; nem o professor Isaías Raw, que comanda com brilho o Instituto Butantan; nem o médico José Gomes Temporão, nosso ministro da Saúde. Nem, saliente-se, o engenheiro eletrônico Sérgio Machado Rezende, mestre e doutor pelo Massachusetts Institute of Technology e ministro da Ciência e Tecnologia, exatamente da pasta onde foi cometida essa tremenda escorregada.

Nos Estados Unidos, um descendente de alemães, Eisenhower, comandou tropas americanas, inglesas, canadenses e francesas no combate ao Exército nazista. Não se procurou um general "com ascendência anglo-saxã". Havia alemães, italianos, americanos das mais variadas origens, no Projeto Manhattan, que criou a bomba atômica. Um judeu russo, Irving Berlin, compôs a mais conhecida das músicas americanas de Natal, White Christmas, e o hino nacional extraoficial dos Estados Unidos, "God Bless America". Os reis da Inglaterra têm origem alemã; a rainha da Suécia é filha de brasileira. O presidente dos Estados Unidos é filho de queniano. Mas cientista brasileiro, para participar de um projeto de cooperação com países árabes, tem de ter ascendência árabe. E nossa imprensa, para se manifestar, precisa ser provocada por algum evento especial?

Há no Brasil notáveis cientistas e professores de origem árabe, que sem dúvida estão entre os melhores do país. Mas não é sua origem que deve determinar as atividades que vai desempenhar: é sua competência, sua capacidade, seu reconhecimento. A exigência do Ministério da Ciência e Tecnologia é tão estrambólica que a USP se esquivou delicadamente de cooperar. Divulgou a mensagem do Ministério da Ciência e Tecnologia, colocou-se como mera repassadora da estranha solicitação e informou aos professores interessados que poderiam dirigir-se diretamente ao chefe da Assessoria de Assuntos Internacionais do MCT, pelo e-mail (como os endereços e telefones são públicos, este colunista toma a liberdade de divulgá-los) secassin@mct.gov.br ou pelos telefones (61) 3317-7777 e (61) 3317-7733. Ah, sim, não percam tempo desmentindo: esta coluna tem a documentação toda.

Alô, ministro dos Direitos Humanos, Paulo Vanucchi! É lícito discriminar entre brasileiros, ainda mais com base em seus antepassados? A igualdade, com a liberdade e a fraternidade, não faz parte dos Direitos Humanos? Alô, ministro da Igualdade Racial, Édson Santos: vai ficar por isso mesmo? Que igualdade racial é essa, que vai buscar a ascendência dos brasileiros para aproveitar ou não seu talento e sua capacidade de trabalho?

E, principalmente, alô, jornais, revistas, rádio, TV, Internet, blogs, imprensa em geral: que tal cuidar desse assunto grave em vez de limitar-se a fofoquinhas eleitorais? Quedar-se em silêncio diante da discriminação é inaceitável.

Carlos Brickmann, colunista do Observatório da Imprensa, do Diário do Grande ABC, antigo editor-chefe da Folha de São Paulo, é dono de invejável currículo no jornalismo brasileiro.

Aniversário do levante do gueto de Varsóvia

Boca no Trombone
Resistir com armas e palavras

Massas judaicas, aproxima-se a hora. Deveis estar preparados para resistir. Nem um só judeu deve ir aos vagões. Os incapazes de oferecer resistência ativa, devem resistir passivamente, devem se esconder. Nosso lema deve ser: Todos prontos para morrer como seres humanos.
(Manifesto público da ZOB, a Organização Combatente Judaica do gueto de Varsóvia)

         Todos os anos fazemos questão de lembrar o levante do gueto de Varsóvia, iniciado em 19 de abril de 1943, a primeira noite de Pessach daquele ano. Por quê ? Em que esta revolta se diferencia das demais ? Ritualizar a memória não empobrece seu conteúdo ?
         Há muitas respostas. Embora várias rebeliões contra os nazistas tenham acontecido em campos de concentração na Europa, a do gueto de Varsóvia foi a que teve melhor nível de organização e, em consequência, a que maior resistência opôs à máquina de guerra hitlerista. A Organização Combatente Judaica foi exemplar na costura da unidade dos vários grupos políticos que conviviam na área do gueto. Seu comando, encabeçado por Mordechai Anilevitch, um jovem de 23 anos que havia escapado do gueto, mas voltara para comandar a resistência armada, sintetizava a pluralidade comunitária dos judeus poloneses. A liderança contava com representantes dos comunistas, socialistas e sionistas de várias tendências. Betar e o grupo ligado a Zeev Jabotinsky preferiram não aderir à revolta.
        
Não é irrelevante lembrar que as primeiras ações da ZOB foram contra a chamada polícia judaica. De acordo com o historiador Israel Gutman, sobrevivente do levante, "a ZOB estava convencida de que não se podia transformar o gueto numa força combatente se não fossem eliminados elementos da quinta coluna".
         Foi uma luta desigual, encarniçada, de final previsível. Apesar de inúmeros atos heróicos, os revoltosos terminaram dizimados pelos nazistas, que tinham enorme vantagem em homens e armas. O gueto acabou transformado numa pilha de escombros, mas a vontade dos insurgentes, "de morrer como seres humanos", sobrevive como lição eterna. Oprimidos, humilhados e ofendidos têm o legítimo direito de resistir, com os meios que julgarem mais adequados, à violência que sofrem. Em abril de 1943, a luta armada foi não apenas um gesto de coragem, mas uma resposta, um grito, para a História.
         Os povos criam, a cada momento, instrumentos variados de resistência. Não foi diferente em Varsóvia. Em outubro de 1941, o professor e intelectual de esquerda Emanuel Ringelblum foi para o gueto. Lá, formou a Oyneg Shabes, organização clandestina que teve entre 50 e 60 militantes, com um único objetivo: preservar a memória do que acontecia no gueto. Durante dois anos, esses guerrilheiros da História fizeram centenas de entrevistas, acumularam manuscritos e pesquisaram metodicamente o cotidiano do gueto. Ao perceberem o início das deportações, colocaram todo esse material em latões e os enterraram. Parte do material foi recuperada depois da guerra.
         O que leva um homem, que tem a consciência de que dificilmente sobreviverá por muito tempo, a pensar no futuro ? Talvez se possa responder lembrando que, segundo uma longa e sofrida tradição judaica, o último ato de resistência consiste em dar testemunho, sobretudo para transmiti-lo às futuras gerações. Em certo sentido, a palavra demonstrou ser uma arma muito mais eficiente dos que os métodos de extermínio postos em prática pelos nazistas. Ao lado das armas, a palavra confinada em toscos latões ajudou a contar o que aconteceu no gueto de Varsóvia.
         ZOB e Oyneg Shabes. Duas vertentes, um objetivo: reafirmar a esperança de que a barbárie não vencerá. Que o homem poderá viver sem ser humilhado ou explorado por seu semelhante.


ASA – Associação Scholem Aleichem de Cultura e Recreação (Rio de Janeiro)
CCMA – Centro Cultural Mordechai Anilevitch (Rio de Janeiro)
ADAF – Associação David Frischman (Niterói)
ICIB – Instituto Cultural Israelita Brasileiro (São Paulo)
Movimento Juvenil Hashomer Hatzair (São Paulo)
Meretz Brasil
ICUF – Federación de Entidades Culturales Judias (Argentina)
ACIZ – Asociación Cultural Israelita dr. Jaime Zhitlovsky (Uruguai)