ANTONIO CARLOS VILLAÇA

Em 31 de agosto de 2008 Antonio Carlos Villaça - falecido em 2005 - completaria 80 anos. Esta postagem, com fotos gentilmente enviadas por Carlos Roberto Carvalho, é um presente de aniversário ao grande amigo e escritor.




EM MEMÓRIA DE VILLAÇA
Edmílson Caminha

Tive o privilégio de manter com o escritor Antonio Carlos Villaça uma longa e substanciosa correspondência. Dele recebi 37 cartas, de 1980 a 1991, que agora publicarei no livro O monge do Hotel Bela Vista, para registrar os 80 anos do nascimento desse que é uma das maiores expressões do memorialismo brasileiro.

Em 1990, solicitei-lhe um depoimento sobre O nariz do morto, que alguns consideram sua mais importante obra. Perguntei o que de melhor o livro lhe proporcionara, que importância lhe dava no conjunto da obra que escrevera, e como situava O nariz no panorama do nosso memorialismo. As respostas constam no artigo “Depoimento de Villaça”, que publiquei no Jornal da Manhã, de Teresina-PI, em 22 de novembro de 1990. O livro Degustação, a que faz referência, saiu em 1994; a biografia de José Olympio (O descobridor de escritores) somente foi lançada em 2001. Reproduzo, a seguir, a carta em que Villaça tão gentilmente discorreu sobre O nariz do morto. É uma pequena homenagem ao escritor que fez o mundo melhor e a vida mais bela, pela grandeza humana e pela obra literária com que se tornou digno da nossa admiração e do nosso respeito.

rio, 5 agosto 1990

Querido Amigo,

Aí vai o depoimento que me solicitou. Saudades.

Alegrias. O prêmio Jabuti, de São Paulo. O poema de Drummond - “O Nariz do Morto” - no Jornal do Brasil. Uma carta admirável do músico Leonardo Luz. A amizade tempestuosa de Carlos Lacerda. As críticas. A de Wilson Martins, no Estado de S. Paulo, que incorporei como introdução à terceira edição do Nariz. O artigo de Paulo Rónai, que saiu ainda agora no seu livro Pois É e aparecera no Estado de S. Paulo e no Jornal do Comércio. O artigo do poeta Alberto da Costa e Silva, que ele republicou em seu livro recente, O Vício da África e Outros Vícios, editado em Lisboa. E foi a crítica mais transcrita em jornais. Saiu em oito jornais, até em Lisboa, em A Capital. O artigo de Hélio Pólvora, no Jornal do Brasil, que ele aproveitou numa coletânea de artigos críticos. Outros artigos notáveis - o de Carlos Lacerda, o de Homero Senna, o de Eneida, o de Edson Nery da Fonseca, o de Paulo Hecker Filho. Importância na obra - Foi o primeiro dos meus livros de memórias. O primeiro de uma série. Representou para mim uma catarse, uma libertação, uma renovação de vida, algo novo. Ganhei muitos amigos com o Nariz. O admirável filósofo boliviano Guillermo Francovich, que está fazendo noventa anos e mora em Ipanema, num belo apartamento da Vieira Souto, apaixonado que é pelo Rio, escreveu um artigo em espanhol, “La nariz del muerto”, e o publicou em La Paz. Situação no memorialismo nosso - São mais memórias de ordem espiritual do que de ordem cronológica. Mais um livro interior, uma peregrinação interior, do que um livro exterior. José Guilherme Merquior escreveu, agora me lembro, um belo artigo em que situava o Nariz na memorialística brasileira. Minha Formação, de Nabuco, História da Minha Infância e Minha Formação no Recife, de Gilberto Amado, A Alma do Tempo, de Afonso Arinos, os volumes de Pedro Nava, Minha Vida de Menina, de Helena Morley, Alice Dayrell Caldeira Brant, eis os livros de memórias entre os quais eu gostaria de ficar.

O Anel é mais ousado, mais louco, vai mais longe, tem um ímpeto maior. Gosto mais do Anel. O Livro de Antônio é mais sereno, mais equilibrado, mais pacificado. Menos inquieto. É o encontro com a harmonia. Não sei quando terminarei o volume Degustação. Agora, tenho duas tarefas imediatas. Escrever a história da ACM do Rio, que vai fazer cem anos em 93, e escrever a biografia do José Olympio, para os sessenta anos da Casa, a 29 de novembro de 1991. Já assinei contrato.

Beijos para Ana Maria, Mariana e Ana Carolina. E beijo para o ser que vai chegar tão breve. Felicidades, felicidades.

o Villaça



Villaça em Santa Teresa (década de 1980)

Villaça in labore, na sua sala no Pen Club

O NARIZ DE VILLAÇA
Ivo Barroso (crônica publicada no Jornal do Brasil em 4/6/05)

Impressionou-me o laconismo com que a imprensa carioca registrou a morte de Antônio Carlos Villaça - Villaça, o gordo, Villaça, o bom -, ele que se dedicou por algum tempo a escrever obituários sobre mortos ilustres que ainda estavam vivos. O trabalho consistia em manter em estoque nos jornais uma espécie de banco de dados com os traços relevantes das personalidades do momento que, pela idade, pelos boatos ou pelos prognósticos médicos, estivessem, de alguma forma, carimbando passaporte para o undiscover'd country. Era assim uma espécie de cronista do futuro, trabalhando com uma matéria sem risco de obsolescência, já que noticiava o que acabaria certamente por acontecer. Tinha especial preferência pelos acadêmicos, a cujas posses sem falhar comparecia, registrando data, extensão dos discursos, qualidade dos salgadinhos e número de convivas. Fazia as pesquisas em estado de excelente humor, sem agouros nem torcidas subreptícias para que seus escolhidos fossem premiados, tanto que chegou a fazer seu próprio obituário, que, no entanto, ficou esquecido, como se viu, nos arquivos hoje eletrônicos de alguma redação.

Dono de gigabites de memória, sabia de cor trechos de milhares dos livros que lera, desde os tempos de seminário e de suas passagens pelos claustros de algumas ordens monásticas que não chegaram a preencher totalmente o seu anseio de eternidade.

Foi em 1970 que se sentiu em plena euforia com a publicação de O nariz do morto, um de seus primeiros livros de memórias, em que regurgitavam citações, comentários, retratos contemporâneos, revelações surpreendentes, lembranças arrasadoras. O sucesso do livro levou-o a se aprofundar no filão confessional, publicando em 1972 O anel e em 1974 O livro de Antônio, em que relata, entre outras peripécias, sua ''aventura em Paraty'', navegando a bordo de uma lancha adoidada. Never a dull moment ...

Convivia com sua espantosa gordura sempre num clima de arejado humor. Numa viagem de avião, fora obrigado a ocupar duas poltronas e teve enorme dificuldade em entrar e sair do táxi que o transportou ao hotel. Dizia que costumava fazer uma pequena refeição (um franguinho!) antes de seguir para os jantares a que era convidado para não dar o vexame de exagerar na hora da refeição. Mas, apesar de seu tamanho Orson Welles, era homem fino à mesa, dono absoluto da conversação, encanto de todas as ilustres senhoras presentes. Nascera para ser conferencista.

Por algum tempo viveu na sede do PEN Club (do qual era vice-presidente), na Praia do Flamengo, mas sua grande realização como homem de saber foi em Faxinal do Céu, no Estado do Paraná, onde foi realizada uma interessante experiência na área da educação: uma pequena cidade universitária planejada em meio às araucárias para servir à formação de professores, que aí moravam freqüentando cursos e conferências de extensão cultural. Villaça foi dos mestres quem mais se distinguiu: sabia transmitir, além dos ensinamentos múltiplos com que a voracidade da leitura o cumulara, uma filosofia de vida meio zen, que fazia a mente de seus alunos, futuros professores.

De lá voltou com mais dois livros, que agregou à sua produção já bastante vasta: Os saltimbancos da Porciúncula, de 1996, e Diário de Faxinal do Céu, de 1998, em que nos dá, além do relato de sua experiência pedagógica, deliciosos flashes íntimos de personalidades como Juscelino e Drummond.

Pois lá se foi o nosso Villaça, um dos homens mais cultos do país, carregando toda a sua sabedoria sem precisar agora ocupar duas poltronas nem se espremer num táxi para o Além.

Villaça com Carlos Roberto e filho Carlos Eugênio na varanda do Pen Club (1987)

Villaça e a profª Miriam dos Santos no hotel em Santa Teresa (1982)

GRANDE VILLAÇA
Ivo Korytowski

Conheci o Villaça em 1992 quando ganhei um prêmio literário da UBE — Villaça fez parte da banca de jurados. Dias depois da premiação, telefonei para ele (eu já havia lido O nariz do morto), meio que inseguro: será que um escritor da fama do Villaça vai dar bola a um ilustre desconhecido como eu? Às primeiras palavras minhas, Villaça já se mostrou receptivo: "Ora viva! Ora viva!" Saudação que era a marca do Villaça. Combinamos almoço em restaurante do Catete.

Villaça era corpulento, devia ter uns 160 quilos, entrar no carro e sair, operação delicada. Eu, aspirante a escritor, diante de "monumento" da literatura, precisava impressionar, ostentar minha "cultura". Falei falei de um fôlego só. Na hora do cafezinho, Villaça educadamente deu a entender: aquele bombardeio deixara-o meio atordoado. Grande Villaça!

Em agosto Villaça comemorava o aniversário, sempre em algum restaurante. Villaça, apetite pantagruélico — desfia rosário de restaurantes e pratos suculentos em capítulo do Degustação: "Filé de peixe com molho de camarão, pirão de batata, filé mignon com fritas. Vinho português. Pêssego em calda com queijo. Ou torta. Licor." Vinha um monte de gente ao aniversário do Villaça, ala inteira do restaurante tinha que ser reservada, cada qual pagava sua conta.

Lembra-me o aniversário de 1995, numa Parmê que existiu alguns anos na Rua das Laranjeiras. Nos jornais, manchetes garrafais e fotos (horripilantes) do massacre de Vigário Geral. Anotei na agenda (eu que não tenho nem um por cento da memória fotográfica do Villaça) os nomes de meus companheiros de mesa: Sinésio Pires Cavalcanti, autor de Lembranças de um fuzileiro naval. Leandro Tocantins, autor de Formação histórica do Acre e de dois livros de memórias. Nilsson Pena (assim anotei na agenda, não sei se escrevi certo), cenógrafo, amigo de Bidu Saião, freqüentador dos saraus de Laurinda Santos Lobo. Incrível a capacidade de fazer amigos do Villaça. Quantos terão ido ao seu sepultamento? Eu próprio não fui — vim a saber de sua morte com dias de atraso.

Na época em que convivi com Villaça, residia ele na sede do Pen Clube (do qual era vice-presidente), à Praia do Flamengo. Passava os dias na biblioteca, cercado de livros, o paraíso de Borges (e de todo amante da literatura). "Aqui estou no mirante do Flamengo. Nunca antes morei assim tão perto do mar. Agora, estou no meu mirante solitário, diante do mar. E vejo a entrada da barra, o Pão de Açúcar". Visitei-o várias vezes no mirante.

Certa vez, eu e um amigo desatamos a questionar, como é que Deus permite tanto mal no mundo, tantas doenças, crimes, Holocausto? (Afinal, Villaça passara período da vida no convento, em busca de Deus). Ao cabo de nossa diatribe, Villaça simplesmente retruca: "Vocês estão querendo fazer o inventário do mundo!" E propôs que descêssemos a paragens mais amenas.

Mas o grande Villaça não estava alheio ao problema da teodicéia. No Degustação, escreve: "A presença do sofrimento no mundo sempre me pareceu uma provocação, um desafio. O sofrimento não é um problema: é um mistério." E mais adiante prossegue: "Eu me pergunto: como afirmar que Deus é bom, quando entramos num hospital? Como falar do amor de Deus a uma mulher cujo filho é idiota, simplesmente porque a mãe contraiu rubéola durante a gravidez? Como falar de Deus a este rapaz que a poliomielite transformou num paralítico? Como falar do amor diante de um campo de concentração? Diante de um hospício? Diante da morte?"

Sua memória, prodigiosa. Eu gostava de levá-lo a passear em meu automóvel pela Zona Sul do Rio de Janeiro. Passávamos por um edifício e o Villaça lembrava: aqui morou (digamos) Carlos Lacerda no período de não sei quando. E assim ia ele apontando as ex-moradas terrenas de homens ilustres que agora habitavam a morada celeste. Villaça dispensava as agendas. As anotações. O computador. A Villaça, bastavam-lhe a velha máquina de escrever e a memória.

Sua pobreza, franciscana. Villaça, tipo do homem que dedicou a vida às coisas do espírito. "A grande experiência da literatura é a experiência da liberdade. A literatura para mim é a liberdade. Ser escritor é, antes e acima de tudo, uma posição diante da vida." Não constituiu família, não amealhou bens. Parecia-me que usava sempre o mesmo terno, surrado — ou seriam vários ternos de mesma aparência? À semelhança do Quintana, morou anos num hotel, o Hotel Bela Vista, em Santa Teresa.

Por ironia do destino, quase ao final da vida, em 2003, ganhou um prêmio polpudo, o Prêmio Machado de Assis, da ABL, pelo conjunto da obra. Apesar da bolada, terminou os dias "despejado" (?) do Pen Clube, em Casa de Repouso no Caju, vítima de depressão... Onde foi parar aquela dinheirama toda?

Em fevereiro de 1996, Villaça telefonou, convidou-me para almoçar, e frisou: hoje eu pago a conta. Estava irritado, inseguro. Por dinheiro (contou-me) aceitara ficar mês e meio enfurnado numa universidade no interior do Paraná pra proferir uma série de palestras a professores — "uns crédulos, acreditam em tudo que a gente diz".

O mês e meio na Universidade do Professor, em Faxinal do Céu, Paraná, "pequena cidade universitária planejada em meio às araucárias para servir à formação de professores" (nas palavras de Ivo Barroso na bela crônica-necrológio sobre o Villaça), acabou se estendendo por alguns anos (com idas e vindas), e aquela acabaria se revelando (volto a dar a palavra ao meu xará) "sua grande realização como homem de saber".

Escreveu Affonso Romano de Sant'ana em crônica-depoimento sobre Faxinal do Céu: "Num dos intervalos de conferências fui visitar Antonio Carlos Villaça, essa viva e modesta memória de nossa cultura. Ele sabe tudo, todos os detalhes não só das obras mas dos próprios autores. É a História viva, contada fraternalmente."

Escreveu Villaça em Diário de Faxinal do Céu: "Aqui é tão tranqüilo, tão sereno, tão quieto. Apenas o canto harmonioso dos pássaros. Apenas. E há os grilos, mais insistentes no inverno. E há a grande paz silenciosa da mata."
Repouse em paz, amigo Villaça!

Antonio Carlos Villaça e o acadêmico Marcos Almir Madeira, no Pen Club

Com Carlos R. Carvalho em 2002, "já debilitado, vislumbrando o fim, e entristecendo" (segundo depoimento do próprio Carlos)

POETAS DE A A Z:

ALEXEI BUENO


Alexei Bueno é autor (entre várias outras obras de peso) da maravilhosa (e recém-lançada) Uma história da poesia brasileira. Precisa dizer mais? Precisa: a revista Poesia Sempre, da Biblioteca Nacional, incluiu Alexei no rol dos 20 melhores poetas brasileiros vivos no final do século XX.

SETE POEMAS DA LAPA

LAPA

Nesta casa antiga,
Sob estas volutas,
Como ri com as putas
Entre uma e outra briga.

Como virei copos
E extingui charutos,
Discuti com brutos,
Vaiei misantropos.

Urinei nas pias,
Vomitei nas portas,
Com passadas tortas
Vi nascer os dias.

Velha, velha casa,
Como ainda és a mesma.
(Não tens dentro a lesma
Que nos funda e abrasa.)

          19-9-2004

I. M. L

Na porta do boteco
Com flores de coroas
Que oferta às moças boas
Ele ergue o seu caneco

De alumínio gravado
Com o escudo do seu time,
E conta o último crime,
E olha o bordel fechado.

Sorrindo, no balcão,
Beberica e, prudente,
Fita a vaga onde, em frente,
Deixou o rabecão.

Então, se há um que lhe peça
Que lembre do seu carro,
Diz, dando um grosso escarro:
— Defunto não tem pressa.

          21-9-2004

FAIT DIVERS

Carlinhos, o segurança,
O terror da Mem de Sá,
Trocou tiros num mafuá
Com o Fuinha, em plena dança.

O Fuinha perdeu a perna.
Depois morreu, no hospital.
O membro encaixou bem mal
No corpo, o que até consterna.

Carlinhos, pior que o Fuinha,
Pagou na hora o seu erro.
Três tiros. No seu enterro
Só foi a sua mãezinha.

          21-9-2004

GLÓRIA

Bêbado, às duas da manhã,
Parei na loja de ovos e aves.
Subi na grade e, em grande afã,
Cacarejei, de ecoar nas traves.

Os galos todos acordaram
Cheios de brio e, num só coro,
Com seu cacarejo enfrentaram
O meu, mais forte, mais sonoro.

Saltavam todas as galinhas.
Penas voavam loja afora.
Ligavam luzes nas vizinhas
Casas. Parti. Criara a aurora.

          21-9-2004

LÁZARO

Cobrimos o mendigo que dormia
Com jornais, os jornais do extinto dia.

De fora só ficaram os sapatos
Cambaios, já roídos pelos ratos.

Acendemos então, junto, uma vela
E arengamos na luz branca e amarela.

Um círculo de povo já envolvia
Nosso pranto, e o pinguço nem tremia.

Volveu por fim do reino dos defuntos.
Debandada! E ele riu. Ríamos juntos.

          21-9-2004

NOTURNO

Sobre os seus saltos, sob a lua cheia,
Os travestis desfilam como garças,
Farsa carnal em meio às outras farsas
Que o mundo absurdo no aéreo chão semeia.

São deusas-mães usando liga e meia,
De ancas imensas, madeixas esparsas,
De enormes seios, piscando aos comparsas,
Buscando otários para a escusa teia.

São Vênus neolíticas chamando
Sombras confusas, entre os cães sem casa
E os negros ébrios. Seu barroco bando

Volveu, pulsante, dos tetos das grutas,
E anda na névoa, como numa vasa,
Rotundas popas balouçando enxutas.

          28-10-2004

TROTTOIR

Os homens vão e vêm na íris das putas
E nenhum pára.
Nenhum ouve suas vozes dissolutas
Nem as encara.

São inúteis as frases mais argutas
Ou sobre a cara
A tinta, o pó. E a vida, quantas lutas,
Como está cara!

Ao longe os filhos, os filhos das putas
Com ladrões, ou pinguços, ou recrutas,
Na noite avara

Dormem cingindo palhaços birutas,
Bonecas louras relesmente hirsutas
Que a lua aclara.

          12-11-2004

ALICE MONTEIRO


ALICE DE CARVALHO MONTEIRO PENNA FIRME é jornalista e carioca da gema. Nasceu no Grajaú. Hoje é moradora de Copacabana, uma babel onde os contrastes se misturam democraticamente. Aos oito anos, escreveu sua primeira poesia intitulada "Pobreza", inspirada na tocante cena de um menino maltrapilho que vendia laranjas em uma estação ferroviária, quando viajava de férias, num trem de madeira para Montes Claros, região Norte de Minas Gerais. Nascia ali sua veia poética.

ANJOS SONÂMBULOS

Beijo de sal e tabaco
na boca da noite.
Arrepio.
Corpo exilado de noites insones,
muito além da lembrança
do que foi.
Amor da noite desconhecida,
secreta noite
dos prazeres da carne.
Desejo,
despudorado silêncio.
E na boca da noite
o grito do gozo
ecoa sem pejo e desaba paredes.
Acorda o mundo,
desperta o pássaro
que canta na janela fechada.
Anjos e demônios
se abraçam em êxtase total.

ABISMOS

Desço ao abismo de mim
quando teu sexo
verte a vida
nas minhas entranhas.
Volto da viagem abissal
porque tuas mãos vigorosas
me arrancam do âmago da terra.
Misturo nossos fluidos
e neste momento difuso,
impreciso e solitário,
todas as criaturas estão em mim.
Sinto-me morrer um pouco,
seduzida e flagelada pelo
infinito prazer que me dás.
Mas este prazer agora
não é mais teu nem meu.
Não nos pertence.
É um prazer abundante
como a água dos mares.
E fecundo como a terra.
É um prazer que me embriaga
como se fosse uma bacante.
É um prazer embriagante
como a morte.
É como um deleite,
tão deslumbrante
como a própria vida.

ALPHONSUS DE GUIMARAENS


O outro nome máximo do Simbolismo brasileiro, Alphonsus de Guimaraens (1870-1921), forma latinizada de Afonso Henriques da Costa Guimarães, nasceu em Ouro Preto, filho de pai português, sendo sua mãe sobrinha materna de Bernardo Guimarães. Aos dezessete anos, período em que escreve os primeiros versos, começa a namorar sua prima Constança, filha do autor d'A escrava Isaura, que vem a falecer, tuberculosa, no final do ano seguinte, 1888. Esse fato marcará toda a obra do poeta, indubitavelmente o grande poeta da morte na literatura brasileira, e o maior poeta católico da língua portuguesa. (Alexei Bueno, Uma história da poesia brasileira)

HÃO DE CHORAR POR ELA OS CINAMOMOS... (na minha modesta opinião, o mais bonito soneto da língua portuguesa)

Hão de chorar por ela os cinamomos,
Murchando as flores ao tombar do dia.
Dos laranjais hão de cair os pomos,
Lembrando-se daquela que os colhia.

As estrelas dirão – “Ai! nada somos,
Pois ela se morreu silente e fria...”
E pondo os olhos nela como pomos,
Hão de chorar a irmã que lhes sorria.

A lua, que lhe foi mãe carinhosa,
Que a viu nascer e amar, há de envolvê-la
Entre lírios e pétalas de rosa.

Os meus sonhos de amor serão defuntos...
E os arcanjos firão no azul ao vê-la,
Pensando em mim: – Por que não vieram juntos?”

ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO

Convidada a entrar na casa, a poesia ficou
ESTÊVÃO BERTONI

O primeiro da família a se arriscar com a pena foi Bernardo, o tio-avô, no século 19. É o autor de A escrava Isaura. O pai, Alphonsus de Guimaraens, como ele, imortalizou-se nos livros escolares como um dos expoentes da poesia simbolista no país.

Ele, Alphonsus de Guimaraens Filho, foi também poeta. Vivia com a casa cheia de amigos obviamente poetas. Em Drummond, tinha um grande amigo. Bandeira foi seu padrinho de casamento.

O matrimônio, por sinal, foi um encontro das letras. Conheceu a mulher ao comemorar, na confeitaria Papi, em Belo Horizonte, um prêmio que recebeu por seu primeiro livro, Lume de estrelas. O local da festa era de propriedade da família dela, também de escritores.

Natural de Mariana (MG), Alphonsus formou-se em direito, em BH. Nos anos 50, foi trabalhar no gabinete do presidente Juscelino Kubitschek. Em 1972, em Brasília, aposentou-se como procurador do Tribunal de Contas da União e partiu definitivamente para o Rio, onde surgiu a rua Lume de Estrelas.

Publicou 25 livros. Mesmo muito caseiro, como lembra o filho, gostava de freqüentar os "sabadoyles", encontros de escritores organizados pelo bibliófilo Plínio Doyle.

Internado com pneumonia, morreu aos 90, na quinta [28/8/08], no Rio. Tinha mal de Parkinson. Deixa três filhos e quatro netos. Nos últimos anos, corrigiu os textos dos netos Augusto e Domingos. São também poetas. (FSP, Obituário, 3.9.2008)

NESTE PRATO

Neste prato tão sujo nada resta
a não ser a memória de uma festa
de ontem, ou de anteontem, ou deste dia.
Eu me lembro da boca: ela comia,

os dentes ágeis, fresca e sensual.
Eu bem me lembro dela, por sinal
mais do que devorante, devorada
por beijos, rubra e amante, rubra e amada.

Neste prato tão sujo resta vida,
e não só morte. E não só perdida
lembrança, ou desalento, ou coisa assim.

Não é princípio, nem será o fim,
intato, sem fissuras tão mortais.
Podem quebra-lo: não se acaba mais.

(Do livro Todos os sonetos, Edições Galo Branco, 1996)

QUANDO EU DISSER ADEUS...


Quando eu disser adeus, amor, não diga
adeus também, mas sim um "até breve";
para que aquele que se afasta leve
uma esperança ao menos na fadiga

da grande, inconsolável despedida...
Quando eu disser adeus, amor, segrede
um "até mais" que ainda ilumine a vida
que no arquejo final vacila e cede.

Quando eu disser adeus, quando eu disser
adeus, mas um adeus já derradeiro,
que a sua voz me possa convencer

de que apenas eu parti primeiro,
que em breve irá, que nunca outra mulher
amou de amor mais puro e verdadeiro.

(Do livro Poemas reunidos, José Olympio, 1960)

AMÉLIA ALVES


Amélia (Maria de Almeida) Alves é poeta e educadora nascida em Campos dos Goytacazes, onde, após a graduação em Letras foi co-fundadora do Grupo Uni-Verso, pelo qual publicou Vácuo e Paisagem (poesia e prosa poética).

No Rio de Janeiro, fez mestrado em Educação na área de Tecnologia Educacional UERJ), especializando-se em TV Educativa e Educação à Distância, exerceu o magistério universitário nas disciplinas Literatura Infantil, Estética da Expressão Escrita e Teoria da Educação, ao mesmo tempo em que publicou artigos e ensaios em periódicos e revistas especializadas.

Em 2005 publicou seu segundo livro, Atrás das borboletas azuis (Oficina do Livro). Poema abaixo inédito, gentilmente fornecido pela poeta.

CONFIDÊNCIA
     A Drummond

Sou de Campos.
Por isso sou áspera
Como a textura
Da folha da cana.

Nasci em Campos.
Por isso sou plana
tal a plenitude
da planície.

Sou planície.
Por isso sou fluida
como o melado
escorrido entre ferros
e mãos encardidas de sol
e escravidão.

Sou moenda.
Por isso sou seca
como o bagaço
largado pelos currais.

Sou dos Campos dos Goytacazes.
Por isso quero beira de rio — Paraíba,
e vento nordeste
assanhando a cabeleira
dos canaviais.

ANDERSON BRAGA HORTA


Anderson Braga Horta, poeta, contista, crítico literário, tradutor de poesia, nasceu em Carangola, MG, em 1934. Diplomou-se em Direito em 1959, foi jornalista, professor, assessor legislativo da Câmara dos Deputados. Reside há longos anos em Brasília. (Dados e poema obtidos na revista Poesia para todos n. 4).

AFÃ


A vida, essa experiência deletéria
do Ser, que na existência se complica.

A vida, esse impossível que na etérea
face do Cosmos uma ruga implica.

A vida, este sofrer, esta miséria
que uma esperança absurda santifica.

A vida, esta ilusão, maia, aura, aérea
construção que no engano se edifica.

A vida, ávida vide em que a venérea
ave da áurea ventura nidifica.

A vida, esse esplender, essa cinérea
dor de ter sido luz que o céu abdica.

A vida, essa aventura da matéria,
que, no afã de ser Deus, nos multiplica.

ARTUR DA TÁVOLA


Artur da Távola (pseudônimo de Paulo Alberto Monteiro de Barros) é escritor, jornalista (escreve uma coluna para o jornal O Dia), melômano (excelentes seus programas de rádio de música clássica - há anos escreve um livro sobre o compostior romântico Schumann), ex-deputado federal e ex-senador (sempre votei nele; jamais qualquer escândalo maculou sua carreira) e atualmente reitor de uma universidade e diretor da Rádio Roquete Pinto.

A GARÇA

Irritante, egoísta e superior,
macérrima estafeta do sutil
exclamação arrogante e desafeta,
a garça indiferença é solidão.

O silêncio elegante e implacável
como o passo cauteloso de tísica.
Vaidosa, assexuada e impermeável
a garça geômetra é intolerante.

Curiosa, pragmática, pontual,
autista, longilínea, insuportável
em seu hierático olhar de rapina,
a garça não cogita, bica.

Estável, fléxil, sobeja pernalta,
álgido filete de brio, zen na meditação,
virgíneo clarão de um venábulo,
a garça é sina, seca e supina.

Glóssario:
venábulo: espécie de lança ou dardo para caça de feras
supino: alto, elevado, superior

AUGUSTO DOS ANJOS


Curioso, no mínimo, o que se passa com o poeta Augusto dos Anjos. Reconhecidamente, poeta de difícil, muito complexo, vocabulário, a exigir conhecimentos ora puramente científicos, ora filosóficos, para justa e ampla compreensão de seus escritos, poeta cujos versos acabam resultando, por vezes, herméticos e de sofrida "tradução", este mesmo poeta acaba se transformando em escritor dos mais conhecidos, muito lido, e, aqui o mais surpreendente, "decorado", declamado pelo público leitor (ou não).
[...]

Augusto dos Anjos é autor de um só livro, e de um livro que se chama Eu. Indicação curiosa para que vejamos nessa circunstância um autor que, evidentemente, deveria descrever um universo cujo centro era sua própria pessoa. E, interessante, este universo augusto-cêntrico é apresentado dentro de uma avassaladora maioria de versos decassílabos, de tal modo que poderíamos dizer que toda poesia de Augusto é feita em decassílabos, tão raros e tão pouco numerosos os que não têm dez sílabas. Ora, devemos notar que a leitura desses versos nos traz a todo momento a repetição das mesmas idéias. Só o gênio do poeta — dando roupagem a esse pequeno número de idéias — é que faz do livro um dos de maior aceitação entre todos os de poetas brasileiros, além de isolá-lo entre os demais de nossa literatura. (Ivan Cavalcanti Proença, Antologia poética de Augusto dos Anjos)

VENCEDOR

Toma as espadas rútilas, guerreiro,
E à rutilância das espadas, toma
A adaga de aço, o gládio de aço, e doma
Meu coração — estranho carniceiro!

Não podes?! Chama então presto o primeiro
E o mais possante gladiador de Roma.
E qual mais pronto, e qual mais presto assoma
Nenhum pôde domar o prisioneiro.

Meu coração triunfava nas arenas.
Veio depois um domador de hienas
E outro mais, e, por fim, veio um atleta,

Vieram todos, por fim; ao todo, uns cem...
E não pôde domá-lo, enfim, ninguém,
Que ninguém doma um coração de poeta!

AUGUSTO FREDERICO SCHMIDT


Saint-Beuve já reparara em pleno romantismo que existe uma poesia caracteristicamente dos gordos e a propósito de umas estâncias bem balançadas de Théophile Gautier exclamara num de seus “Lundis”: “Eis uns versos que um magro nunca poderia fazer.” A poesia de Augusto Frederico Schmidt é assim. Meiga, triste, neo-romântica, mas gorda. Às vezes tem um sabor a Casimiro de Abreu, a Gonçalves Dias, a Fagundes Varela. (Manuel Bandeira, "Um poeta que não quer cantar mais o Brasil" em Crônicas inéditas I)

Schmidt publicou O galo branco em 1948, memórias poéticas, datilografadas por João Conde. Publicara muitos textos no Correio da Manhã, no suplemento literário. Era um prolongamento da sua poesia neo-romântica. Sempre à sombra do enigmático, esquivo Galo Branco, um galo birmanês, elegantíssimo, esguio, longilíneo, solitário, que morava na varanda do apartamento da rua Paula Freitas 20, em frente ao restaurante Le Mazot, em que o poeta muitas vezes se refugiava, triste, ou angustiado, ou melancólico, ou naquelas crises de desespero que o assaltavam. Frágil e trágico poeta. (Antônio Carlos Villaça, "A memorialística brasileira" em Diário de Faxinal do Céu)

QUANDO EU MORRER

Quando eu morrer o mundo continuará o mesmo.
A doçura das tardes continuará a envolver as coisas todas,
Como as envolve agora neste instante.
O vento fresco dobrará as árvores esguias
E levantará as nuvens de poesia nas estradas —
Quando eu morrer as águas claras dos rios rolarão ainda
Rolarão sempre, alvas de espuma...
Quando eu morrer as estrelas não cessarão de se acender
no lindo céu noturno,
E nos vergéis onde os pássaros cantam — as frutas continuarão a ser doces e boas.
Quando eu morrer os homens continuarão sempre os mesmos
E se hão de esquecer do meu caminho silencioso entre eles.
Quando eu morrer os prantos e as alegrias permanecerão
Todas as ânsias e inquietudes do mundo não se modificarão.
Quando eu morrer a humanidade continuará a mesma
Porque nada sou — nada conto e nada tenho
Porque sou um grão de poeira perdido no infinito.
Sinto porém, agora, que o mundo sou eu mesmo
E que a sombra descerá por sobre o universo vazio de mim
Quando eu morrer...

BENEDITA DE MELO


"Exímia sonetista, com um verso musical, Benedita de Melo possui apenas um livro publicado: Luz da minha vida. E é realmente a sua luz, pois a poetisa cega encontra na poesia seu iluminado mundo interior. Sua lírica vem valorizada pela capacidade de fixar conflitos psicológicos e situações do cotidiano." (J.G. de Araújo Jorge)

TRISTEZA MAIOR

Ia ser mãe ou ser mulher, talvez;
Indizível anseio a dominava.
Veio-lhe belo o filho que esperava
Em róseo dia de ridente mês.

Pela primeira e derradeira vez
A criança nos seus braços apertava;
E na falta que ao anjo ela deixava,
Vi quanta falta minha mãe me fez.

Nesse momento de aflições sem termos,
Todos os vendavais, todos os ermos
Previ em torno ao ser por quem sofria.

E no meu modo de sentir ou ver,
Eu não chorei a mãe que ia morrer,
Chorei antes o filho que nascia.

CAIRO TRINDADE


Cairo de Assis Trindade, escritor, ministra oficinas literárias há mais de 10 anos no Rio de Janeiro. Tem quatro livros de poesia publicados, duas peças de teatro encenadas, trabalhou como ator nas peças Hair e Hoje é dia de rock. (Informações e poemas obtidos na revista não funciona n. 10.)

???

ela, toda exclamações!!!
ele, sempre reticências...
nunca acertaram os pontos:
a vida foi uma barra /
— cheia de travessões —
até o ponto final

Via-Gen

ávida
a vida havida
— nave navenida —
sem dúvida
nem dívida
é dádiva
di
vi di
da

sintaxe

cansei de ser objeto
hoje sou sujeito
pleno de predicados

Vate em Transe

poema só se faz poesia
se emitir mensagem
se tiver magia
se for viagem

(o poema não é um monte
de palavras vomitadas:
é um vírus visceral
revolucionário)

e um poeta só será poeta
se for fundo, inteiro, intenso
e viver sempre entre
a vertigem e a voragem

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

ESTE MATERIAL FOI TRANSFERIDO PARA A POSTAGEM "CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE: POESIA DA VIDA". PARA LER CLIQUE AQUI.

CARLOS MACHADO


Carlos Machado é editor do boletim poesia.net, um inventário crítico da produção poética de todos os tempos (com destaque para a poesia brasileira contemporânea e moderna). Carlos Machado também é poeta de mão cheia como mostra em seu Pássaro de vidro, que gentilmente me enviou, do qual selecionei os três poemas abaixo. Para conhecer e assinar o boletim poesia.net, clique aqui.

TREM

Meu destino é perder o trem
para Caxambu.

Há muitos anos vivo na estação.
Todos os dias
os comboios passam.
Deixo passar:
ainda não é hora de partir.

Caxambu fica distante
e é preciso esperar
o momento certo para seguir
uma
vontade
súbita
de me pôr nos trilhos.

Hoje decidi: devo embarcar.
Mas descobri que
nenhum trem passa em Caxambu.

ESFINGES

Alguns, prudentes, não falam com estranhos.
Outros, muito práticos, dizem apenas o necessário
para o bom andamento dos negócios.

Alguns, calmos e sérios, fecham portas e janelas.
Outros, afoitos, ou filhos de um deus sem-terra,
oferecem biscoitos, talvez flores, e longa prosa.

De todos, quem sorri com mais dentes de ouro?
quem finge? quem vê no espelho sua própria esfinge?

ALMA DE RELÓGIO (2)

   É na mudança que as coisas
   acham repouso.
     Heráclito


não dormes:
teu único
repouso
é descobrir-te
em cada momento
sempre
desigual a
ti mesmo

CARLOS PENA FILHO

Aldemir Martins, Gatos

Um fenômeno da poesia pernambucana prematuramente falecido aos 31 anos num desastre de automóvel. Segundo Alexei Bueno em Uma história da poesia brasileira, "dos maiores poetas de sua geração e um dos grandes sonetistas brasileiros. Seu Livro geral, de 1959 [...] é um dos mais importantes livros de sua geração."

A SOLIDÃO E SUA PORTA

Quando mais nada resistir que valha
a pena de viver e a dor de amar
e quando nada mais interessar,
(nem o torpor do sono que se espalha).

Quando, pelo desuso da navalha
a barba livremente caminhar
e até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sozinho na batalha

a arquitetar na sombra a despedida
do mundo que te foi contraditório,
lembra-te que afinal te resta a vida

com tudo que é insolvente e provisório
e de que ainda tens uma saída:
entrar no acaso e amar o transitório.

Mais poemas de Carlos Pena Filho em Poesia.Net

CASIMIRO DE ABREU


[Casimiro José Marques de Abreu nasceu em Barra de São João, RJ, em 1839.] Depois dos primeiros estudos, em Friburgo, o pai fê-lo entrar no comércio. Viu-se o jovem poeta diante de uma profissão que detestava. Daí lhe nasceu o desalento, o desencanto da vida, sentimento ampliado por efeito de constituição frágil e demasiado sensível. Passou quatro anos em Portugal, de onde regressou doente, doença que se agravara pela saudade, pela nostalgia. Essa nostalgia, ele a cantou em versos que se tornaram, em grande parte, muito populares. [Morreu em 1860.] (Álvaro Lins e Aurélio Buarque de Hollanda, Roteiro literário de Portugal e do Brasil, volume II, brasileiros.)

A VALSA

Tu, ontem,
Na dança
Que cansa,
Voavas
Co'as faces
Em rosas
Formosas
De vivo,
Lascivo
Carmim;
Na valsa
Tão falsa,
Corrias,
Fugias,
Ardente,
Contente,
Tranqüila,
Serena,
Sem pena
De mim!

Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
— Não negues,
Não mintas...
— Eu vi!...

Meu Deus!
Eras bela
Donzela,
Valsando,
Sorrindo,
Fugindo,
Qual silfo
Risonho
Que em sonho
Nos vem!
Mas esse
Sorriso
Tão liso
Que tinhas
Nos lábios
De rosa,
Formosa,
Tu davas,
Mandavas
A quem ?!

Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
— Não negues,
Não mintas,..
— Eu vi!...
Calado,
Sozinho

Mesquinho,
Em zelos
Ardendo,
Eu vi-te
Correndo
Tão falsa
Na valsa
Veloz!
Eu triste
Vi tudo!

Mas mudo
Não tive
Nas galas
Das salas,
Nem falas,
Nem cantos,
Nem prantos,
Nem voz!

Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
— Não negues
Não mintas...
— Eu vi!

Na valsa
Cansaste;
Ficaste
Prostrada,
Turbada!
Pensavas,
Cismavas,
E estavas
Tão pálida
Então;
Qual pálida
Rosa
Mimosa
No vale
Do vento
Cruento
Batida,
Caída
Sem vida.
No chão!

Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
— Não negues,
Não mintas...
Eu vi!

CASTRO ALVES


Em 1868, escreveu Machado de Assis sobre o jovem poeta Castro Alves, de passagem pelo Rio com destino à Academia de São Paulo: "A musa do Sr. Castro Alves tem feição própria.. Se se adivinha que a sua escola é a de Victor Hugo, não é porque o copie servilmente, mas porque uma índole irmã levou-o a preferir o poeta das Orientais ao poeta das Meditações [Lamartine]. Não lhe aprazem certamente as tintas brancas e desmaiadas da elegia; quer antes as cores vivas e os traços vigorosos da ode. Como o poeta que tomou por mestre, o Sr. Castro Alves canta simultaneamente o que é grande e o que é delicado, mas com igual inspiração e método idêntico; a pompa das figuras, a sonoridade do vocábulo, uma forma esculpida com arte, sentindo-se por baixo desses lavores o estro, a espontaneidade, o ímpeto. Não é raro andarem separadas estas duas qualidades da poesia: a forma e o estro. Os verdadeiros poetas são os que as têm ambas. Vê-se que o Sr. Castro Alves as possui; veste as suas idéias com roupas finas e trabalhadas [...]" (R. Magalhães Junior, Vida e obra de Machado de Assis, Volume 2)

ADORMECIDA

UMA NOITE, eu me lembro... Ela dormia
Numa rede encostada molemente...
Quase aberto o roupão... solto o cabelo
E o pé descalço do tapete rente

Estava aberta a janela. Um cheiro agreste
Exalavam as silvas da campina...
E ao longe, num pedaço do horizonte,
Via-se a noite plácida e divina.

De um jasmineiro os galhos encurvados,
Indiscretos entravam pela sala,
E de leve oscilando ao tom das auras,
Iam na face trêmulos - beijá-la.

Era um quadro celeste!...A cada afago
Mesmo em sonhos a moça estremecia...
Quando ela serenava... a flor beijava-a...
Quando ela ia beijar-lhe... a flor fugia...

Dir-se-ia que naquele doce instante
Brincavam duas cândidas crianças...
A brisa, que agitava as folhas verdes,
Fazia-lhe ondear as negras tranças!

E o ramo ora chegava ora afastava-se...
Mas quando a via despeitada a meio,
P'ra não zangá-la... sacudia alegre
Uma chuva de pétalas no seio...

Eu, fitando esta cena, repetia
Naquela noite lânguida e sentida :
"Ó flor! - tu és a virgem das campinas!
"Virgem! - tu és a flor da minha vida!..."

TEUS OLHOS (Barcarola)

Teus olhos são negros, negros,
Como as noites sem luar...
São ardentes, são profundos,
Como o negrume do mar;

Sobre o barco dos amores,
Da vida boiando à flor,
Douram teus olhos a fronte
Do Gondoleiro do amor.

Tua voz é a cavatina
Dos palácios de Sorrento,
Quando a praia beija a vaga,
Quando a vaga beija o vento;

E como em noites de Itália,
Ama um canto o pecador,
Bebe a harmonia em teus cantos
O Gondoleiro do amor.

Teu sorriso é uma aurora,
Que o horizonte enrubesceu,
— Rosa aberta com biquinho
Das aves rubras do céu.

Nas tempestades da vida
Das rajadas no furor,
Foi-se a noite, tem auroras
O Gondoleiro do amor.

Teu seio é vaga dourada
Ao tíbio clarão da lua,
Que, ao murmúrio das volúpias,
Arqueja, palpita nua;

Como é doce, em pensamento,
Do teu colo no langor
Vogar, naufragar, perder-se
O Gondoleiro do amor!?

Teu amor na treva é — um astro,
No silêncio uma canção,
É brisa — nas calmarias,
É abrigo — no tufão;

Por isso eu te amo, querida,
Quer no prazer, quer na dor,
Rosa! Canto! Sombra! Estrela!
Do Gondoleiro do amor.

CASTRO MENESES


"A obra deixada por Castro Meneses, apesar de escassa, é uma das mais formosas do nosso momento literário. Entretanto ela está longe, bem longe de representar o que havia de possibilidades naquele espírito excepcional." (Manuel Bandeira em crônica de 1920). Álvaro de Sá Castro Meneses nasceu em Niterói (RJ) em 3 de junho de 1883 e faleceu no Rio de Janeiro a 7 de março de 1920. "Mas como morreste cedo!" (Bandeira). Pertenceu ao grupo simbolista que fundou a revista Rosa Cruz (1901) e a sua principal obra é a Estrada de Damasco (1920).

Calipso

Pela doce paciência de enfermeira
com que procuras encantar-me a vida,
renovando em minha alma a fé perdida
depois de morta a crença derradeira;

Pelo sorriso bom de companheira
que a novas esperanças me convida,
quando vejo, na estrada percorrida
dos meus sonhos a extinta sementeira;

Pela graça de irmã de Caridade
com que teu meigo afeto me persuade
de que lutar confiante é o meu dever;

Bendita sejas Flor de mansuetude,
em cujo seio, finalmente,
pude descansar a cabeça e adormecer...

CECÍLIA MEIRELES


Na Nota Editorial a Flor de poemas, antologia por ele organizada, escreve Paulo Mendes Campos: “Não há poeta moderno em língua portuguesa mais harmonioso do que Cecília Meireles; do princípio ao fim, com o mesmo fino fio de seda a incomparável artífice-e-artista teceu as suas peças inconsúteis [...] Só há uma monotonia em Cecília Meireles: é a inacreditável qualidade de seus versos, é o nítido tecido conjuntivo de toda a sua obra.”

Motivo

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.

O Rei do Mar

Muitas velas. Muitos remos.
Âncora é outro falar...
Tempo que navegaremos
não se pode calcular.

Vimos as Plêiades. Vemos
agora a Estrela Polar.
Muitas velas. Muitos remos.
Curta vida. Longo mar.

Por água brava ou serena
deixamos nosso cantar,
vendo a voz como é pequena
sobre o comprimento do ar.
Se alguém ouvir, temos pena:
só cantamos para o mar...

Nem tormenta, nem tormento
nos poderia parar.
(Muitas velas. Muitos remos.
Âncora é outro falar...)
Andamos entre água e vento
procurando o Rei do Mar.

Pescaria

Cesto de peixes no chão.
Cheio de peixes, o mar.
Cheiro de peixe pelo ar.
E peixes no chão.

Chora a espuma pela areia,
na maré cheia.

As mãos do mar vêm e vão,
as mãos do mar pela areia
onde os peixes estão.

As mãos do mar vêm e vão,
em vão.
Não chegarão
aos peixes do chão.

Por isso chora, na areia,
a espuma da maré cheia.

CLÁUDIO ARAGÃO


“Quando penso em Cláudio Aragão, vejo um milagre brasileiro que se multiplica por esta terra como pães e peixes bíblicos: é o milagre de Vitalino que veio do nada para tornar-se mago do mundo mítico de barro [...] Cláudio veio em 1963 ao Rio num pau-de-arara, atravessando com um grupo de retirantes paisagens de seca e morte durante duas semanas para instalar-se em seguida com mãe e irmã num sótão de subúrbio e depois numa favela. [...] Terminados os estudos universitários, além de lutar pelo sustento, como infelizmente a maioria dos intelectuais e artistas neste país, dedicou-se à literatura.” (Wira Selanski, Prefácio de Anjo Feio)

Cláudio Aragão
é autor de A história da seleção brasileira em cordel e das histórias de vários times de futebol também em forma de cordel, editadas pela Bom Texto.

POESIA

Pouco sei dos prótons e nêutrons.
Do cálculo binário, da origem do Homem,
das estrelas perdidas, dos planetas distantes.
Posso dizer que não decorei
nenhuma canção de guerra.
Ouvi falar, muito de longe,
dos cossacos e dos Kamikazes
e quando o Homem pisou na lua,
confesso,
eu dormia.

Desprezo profundamente
a arrogância humana,
visto que pouco sei do valor do ouro,
da moeda corrente, das terras usurpadas.
Pouco sei dos novos planos do Homem
para o futuro.
Sei apenas dos raios de sol
furando a floresta, trazendo vida.
Sei apenas dos pássaros
voando mais alto que as balas dos canhões.

(do livro Anjo Feio)

SOBRE AS ÁGUAS DO JORDÃO

Tava sentado no leito do Rio Jordão
2.030 anos atrás
quando vi Cristo ameaçar entrar no mar
caminhar sobre as águas.
— Faz isso não, Mestre!
Essa raça não vale um banho!

Os 12 apóstolos me lançaram
um olhar de reprovação.

Foi quando o Senhor os repreendeu:
— Acalmai vossos pensamentos
e deixar vir a mim os Poetas!

CLÁUDIO FELDMAN

"Poeta, escritor e roteirista, professor aposentado de língua e literatura. Polígrafo!!! Cláudio [Bauru, SP, 29.08.44] é um talento ímpar, prolífico, versátil, divertido, criativo. Merece os adjetivos." (Antonio Miranda)


CAVALOS


Os cavalos brancos dos heróis
Suportaram suas duras nádegas
Em mil campos de batalha
Mas não puderam descansar na morte:
Mumificados em estátuas
Continuam a carregá-los
Eternidade adentro
Com o peso adicional do bronze

CONCEIÇÃO ALBUQUERQUE


Carioca, com formação em Direito, funcionária pública federal aposentada. Conceição recebeu o Prêmio Cecília Meireles em 1996 com o livro de poesias inédito Perfil de sombras, concedido pela UBE. Participou como co-autora do livro Poesia em três tempos, publicado em 2001 pela editora Bom Texto, justamente com Maria Thereza Noronha e Rafael Pitanguy.

ESTAÇÕES

Dias tristes esfrego no tanque
levo ao varal e deixo
que lhes acolha o vento.
Os alegres, diluo-os em água
translúcida e doce, à janela
ao dispor de beija-flores
rumo aos longes, pra voltar.

Assim escrevo:
Inventando outono em qualquer dia:
pra me desfolhar, entrar no rio
e me chover de sol.

Germino, germino sem parar.
Cobrem-me folhas e flores
algum orvalho, nenhum bocejo.
Primavero-me.

Até que o inverno me surpreenda
tênue tal fio de teia
enredando-me em palavras, precisas vias
para alcançar o poema.

CRUZ E SOUZA, JOÃO DA


Nascido em Desterro, atual Florianópolis, em 1861, filho de escravos (pai pedreiro e mãe lavadeira), foi vítima do preconceito racial e teve uma vida infeliz, num ambiente de pobreza. O que não o impediu de se tornar, nas palavras de Alexei Bueno, “um dos poetas formalmente mais perfeitos da poesia brasileira, nada devendo, muito ao contrário, a todos os parnasianos coevos, os grandes propugnadores da perfeição formal” (Alexei Bueno, Uma história da poesia brasileira, p. 214).

Sobre Cruz e Souza, disse Artur da Távola em discurso pronunciado no Senado Federal: "Ele tem a característica simbolista e tem a característica parnasiana pela pureza do verso. Tudo isso saído daquele menino pobre, filho de escravos alforriados, massacrado, que até quando morreu — e nem todos o sabem — sem dinheiro para que se lhe transportasse o corpo de Minas Gerais para o Rio de Janeiro, teve o seu cadáver jogado em um trem de animais, onde conseguiu uma vaga para transportar o corpo para o Rio de Janeiro, onde foi enterrado."

Três dias antes da morte, aos 36 anos, compôs seu último poema, “Sorriso Interior”, “de placidez quase milagrosa, exemplo sem igual, nas nossas letras, de superação espiritual de uma situação concreta”, nas palavras de Alexei Bueno.

SORRISO INTERIOR

O ser que é ser e que jamais vacila
Nas guerras imortais entra sem susto,
Leva consigo esse brasão augusto
Do grande amor, da nobre fé tranqüila.

Os abismos carnais da triste argila
Ele os vence sem ânsias e sem custo...
Fica sereno, num sorriso justo,
Enquanto tudo em derredor oscila.

Ondas interiores de grandeza
Dão-lhe essa glória em frente à Natureza,
Esse esplendor, todo esse largo eflúvio.

O ser que é ser transforma tudo em flores...
E para ironizar as próprias dores
Canta por entre as águas do Dilúvio!

VIOLÕES QUE CHORAM...

Ah! plangentes violões dormentes, mornos,
Soluços ao luar, choros ao vento...
Tristes perfis, os mais vagos contornos,
Bocas murmurejantes de lamento.

Noites de além, remotas, que eu recordo,
Noites da solidão, noites remotas
Que nos azuis da Fantasia bordo,
Vou constelando de visões ignotas.

Sutis palpitações à luz da lua,
Anseio dos momentos mais saudosos,
Quando lá choram na deserta rua
As cordas vivas dos violões chorosos.

Quando os sons dos violões vão soluçando,
Quando os sons dos violões nas cordas gemem,
E vão dilacerando e deliciando,
Rasgando as almas que nas sombras tremem.

Harmonias que pungem, que laceram,
Dedos Nervosos e ágeis que percorrem
Cordas e um mundo de dolências geram,
Gemidos, prantos, que no espaço morrem...

E sons soturnos, suspiradas magoas,
Mágoas amargas e melancolias,
No sussurro monótono das águas,
Noturnamente, entre ramagens frias.

Vozes veladas, veludosas vozes,
Volúpias dos violões, vozes veladas,
Vagam nos velhos vórtices velozes
Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.

Tudo nas cordas dos violões ecoa
E vibra e se contorce no ar, convulso...
Tudo na noite, tudo clama e voa
Sob a febril agitação de um pulso.

Que esses violões nevoentos e tristonhos
São ilhas de degredo atroz, funéreo,
Para onde vão, fatigadas do sonho
Almas que se abismaram no mistério.

Sons perdidos, nostálgicos, secretos,
Finas, diluídas, vaporosas brumas,
Longo desolamento dos inquietos
Navios a vagar à flor de espumas.

Oh! languidez, languidez infinita,
Nebulosas de sons e de queixumes,
Vibrado coração de ânsia esquisita
E de gritos felinos de ciúmes!

Que encantos acres nos vadios rotos
Quando em toscos violões, por lentas horas,
Vibram, com a graça virgem dos garotos,
Um concerto de lágrimas sonoras!

Quando uma voz, em trêmolos, incerta,
Palpitando no espaço, ondula, ondeia,
E o canto sobe para a flor deserta
Soturna e singular da lua cheia.

Quando as estrelas mágicas florescem,
E no silêncio astral da Imensidade
Por lagos encantados adormecem
As pálidas ninféias da Saudade!

Como me embala toda essa pungência,
Essas lacerações como me embalam,
Como abrem asas brancas de clemência
As harmonias dos Violões que falam!

Que graça ideal, amargamente triste,
Nos lânguidos bordões plangendo passa...
Quanta melancolia de anjo existe
Nas visões melodiosas dessa graça.

Que céu, que inferno, que profundo inferno,
Que ouros, que azuis, que lágrimas, que risos,
Quanto magoado sentimento eterno
Nesses ritmos trêmulos e indecisos...

Que anelos sexuais de monjas belas
Nas ciliciadas carnes tentadoras,
Vagando no recôndito das celas,
Por entre as ânsias dilaceradoras...

Quanta plebéia castidade obscura
Vegetando e morrendo sobre a lama,
Proliferando sobre a lama impura,
Como em perpétuos turbilhões de chama.

Que procissão sinistra de caveiras,
De espectros, pelas sombras mortas, mudas.
Que montanhas de dor, que cordilheiras
De agonias aspérrimas e agudas.

Véus neblinosos, longos véus de viúvas
Enclausuradas nos ferais desterros
Errando aos sóis, aos vendavais e às chuvas,
Sob abóbadas lúgubres de enterros:

Velhinhas quedas e velhinhos quedos
Cegas, cegos, velhinhas e velhinhos
Sepulcros vivos de senis segredos,
Eternamente a caminhar sozinhos;

E na expressão de quem se vai sorrindo,
Com as mãos bem juntas e com os pés bem juntos
E um lenço preto o queixo comprimindo,
Passam todos os lívidos defuntos...

E como que há histéricos espasmos
na mão que esses violões agita, largos...
E o som sombrio é feito de sarcasmos
E de Sonambulismos e letargos.

Fantasmas de galés de anos profundos
Na prisão celular atormentados,
Sentindo nos violões os velhos mundos
Da lembrança fiel de áureos passados;

Meigos perfis de tísicos dolentes
Que eu vi dentre os vilões errar gemendo,
Prostituídos de outrora, nas serpentes
Dos vícios infernais desfalecendo;

Tipos intonsos, esgrouviados, tortos,
Das luas tardas sob o beijo níveo,
Para os enterros dos seus sonhos mortos
Nas queixas dos violões buscando alivio;

Corpos frágeis, quebrados, doloridos,
Frouxos, dormentes, adormidos, langues
Na degenerescência dos vencidos
De toda a geração, todos os sangues;

Marinheiros que o mar tornou mais fortes,
Como que feitos de um poder extremo
Para vencer a convulsão das mortes,
Dos temporais o temporal supremo;

Veteranos de todas as campanhas,
Enrugados por fundas cicatrizes,
Procuram nos violões horas estranhas,
Vagos aromas, cândidos, felizes.

Ébrios antigos, vagabundos velhos,
Torvos despojos da miséria humana,
Têm nos violões secretos Evangelhos,
Toda a Bíblia fatal da dor insana.

Enxovalhados, tábidos palhaços
De carapuças, máscaras e gestos
Lentos e lassos, lúbricos, devassos,
Lembrando a florescência dos incestos;

Todas as ironias suspirantes
Que ondulam no ridículo das vidas,
Caricaturas tétricas e errantes
Dos malditos, dos réus, dos suicidas;

Toda essa labiríntica nevrose
Das virgens nos românticos enleios;
Os ocasos do Amor, toda a clorose
Que ocultamente lhes lacera os seios;

Toda a mórbida música plebéia
De requebros de faunos e ondas lascivas;
A langue, mole e morna melopéia
Das valsas alanceadas, convulsivas;

Tudo isso, num grotesco desconforme,
Em ais de dor, em contorsões de açoites,
Revive nos violões, acorda e dorme
Através do luar das meias noites!!

CYRO DE MATTOS

Cyro de Mattos nasceu em Itabuna, cidade da região cacaueira da Bahia. Poeta, contista e cronista, é autor de 35 livros, entre eles: Os brabos, contos, Prêmio Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras; Vinte poemas do rio, edição bilíngüe em inglês-português, Palimage Editores, Viseu, Portugal; Poemas escolhidos, Segundo Prêmio Internacional Maestrale Marengo d'Oro, Gênova, Itália; O menino camelô, poesia infantil, Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Artes; O goleiro Leleta e outras fascinantes histórias de futebol, Prêmio Hors Concours Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores (Rio). É membro da Academia de Letras da Bahia. Seus poemas e contos foram traduzidos e publicados nos Estados Unidos, México, Itália, Rússia, Alemanha e Dinamarca.

ITABUNA

Encontro-me no verde de teus anos,
Como sonho menino nos outeiros,
Afoitas minhas mãos de cata-ventos
Desfraldando estandartes nessas ruas.

São meus todos esses frutos maduros:
Jaca, cacau, mamão, sapoti, manga.
E esta canção que trago na capanga
É o vento soprando nos quintais.

Quem me fez estilingue tão certeiro
Nos verões das caçadas ideais?
Quem nesse chão me plantou com raízes

Fundas até que me dispersem ventos
Da saudade e solidão? Ó poema!
Ó recantos! Ó águas do meu rio!

GALO

Melhor tê-lo no seu clarim da aurora
Anunciando claras madrugadas,
Observá-lo rubro com bico e espora
Nas rações benditas, multiplicadas

Por mãos de orvalho, telúricas na hora
Sem rinha e rude medo das caçadas.
Melhor senti-lo nos quintais de outrora,
Pluma escavando o verde das jornadas

Do que encontrá-lo na multidão rouco,
Incolor pelo alto, no asfalto louco
Ou sabê-lo solitário das noites

Que passam sempre anônimas e tristes.
Vê-lo, assim, emudecido na sorte
Imutável que o tomba para a morte.

Imagem do galo obtida no site de histórias infantis O Sótão da Inês

DORA LOCATELLI



Dora Locatelli nasceu em Passa Quatro, MG, na década de 1940, escreve desde menina, foi professora de português e literatura por mais de 30 anos brasileira, publicou um livro de contos (esgotado) e um ensaio sobre José Cândido de Carvalho, e acaba de lançar seu primeiro livro de poesias, a raiz do tambor, prefaciado por Igor Fagundes

PERCEPÇÃO

De repente
tudo se integra no mesmo ritmo:
o tropel do cavalo insone
a crina ondulando
o vento nos galhos
o acalanto no berço
os sinais das estrelas.
Tudo é uma só musica
e o canto em mim
uma só urgência.
De um pulo ligo a lâmpada
e minha janela acesa
é um grito luminoso
nesta sinfonia.

MOTO CONTÍNUO

Como um pingo
Um pingo
de torneira
um
a
um
uma nota
de um disco emperrado
uma só batida
num surdo
uma só ideia
verrumando
única
pingando
uma
uma
uma
única
dor.
Isso fura pedra.
Mata.

PANO RÁPIDO EM 3 TEMPOS

O que te desespera, homem,
é ser apenas uma molécula invisível
na vastidão deste planeta
é ser o NADA incognoscível
na infinitude do universo.

O que te glorifica, homem,
é, na vastidão deste planeta,
ter a rútila luz da lucidez
ser uno, único, imenso TUDO
em tua consciência de ti mesmo
e do mundo a teu redor.

Mas tua glória, ó rei,
é, ao mesmo tempo,
teu paraíso e teu inferno.
A consciência de teu destino é dor.
Oscilas entre a centelha de Deus
e o tridente do Diabo.

SENHORA DONA DAS ESTAÇÕES

Não dependo de estações:
teço o outono e o inverno
na ponta de minha agulha
marcadas em ponto de cruz.

Sou uma espécie de fada
tendo a casa em primavera
em plena manhã gelada
e nostálgicas folhas de outono
num verão que exaspera.

O mistério está bem perto:
encerrado no barrado
das toalhas do banheiro
a estação espera
teu olhar libertador;
pula, entranha-te no peito
na casa, nos móveis, na alma.
O coração passarinha
ciclos do tempo brotando
bordados por tuas mãos,
como se a vida
fosse sempre mágica.


FIM DE SEMANA


Despeço-me do mundo
como quem arruma bolsas
para um fim de semana.
A vida abriu a boca
e
ouvi verdades desconhecidas.
Calço pantufas e flutuo serena
sem pressa.
Feito um pássaro que abre as asas
e se dilue no horizonte.

Despeço-me numa paz silenciosa.