MORREU UM HOMEM E EU LHE PERGUNTO: O BRASILEIRO AINDA TEM CORAÇÃO?, de PAULO POLZONOFF JR.

ARTIGO PUBLICADO ORIGINALMENTE NA GAZETA DO POVO DE 30/10/2024. Copyright © 2024, Gazeta do Povo. Todos os direitos reservados. 



Um homem morreu. Renato Oliveira [foto acima], este era o nome dele. Funcionário de um frigorífico, ele era casado e tinha dois filhos. Para todos os efeitos, porém, Renato Oliveira virou apenas uma estatística da trágica, mas normalizada, violência urbana brasileira. Um número entre dezenas de milhares. Ou, na melhor das hipóteses, um quadro macabro que reforça o imaginário de desespero e impotência do brasileiro: a do homem que morreu enquanto dormia, no ônibus, a caminho do trabalho, durante uma troca de tiros entre policiais e traficantes.


Ah, se vale!

E, no entanto, era um homem, o Renato. Era uma vida. Um brasileiro com sonhos e alegrias, mas também mágoas e arrependimentos. Não é preciso ter conhecido Renato para saber que, dia após dia, ele vislumbrava um futuro. Às vezes pessimista, às vezes otimista. Gosto de pensar que às vezes Renato ignorava a pobreza que o cercava e, mirando o céu azul demais e a esposa e os filhos, dizia de si para si que a vida vale a pena. Ah, se vale.


“Não interessa”

O problema é que Renato não “morreu na contramão atrapalhando o tráfego” para nenhum gênio da música. Tampouco a vida daquele homem, agora morto, é capaz de inspirar os sonolentos e acomodados roteiristas do cinema nacional. “Morreu indo trabalhar, contribuindo para a manutenção do sistema capitalista opressor”, imagino um deles, aquele gordinho de cabelo azul, dizendo. “Era homem e talvez fosse até conservador. Pecado dos pecados, talvez tivesse até votado numa monstruosidade política de extrema direita. Não interessa”.


Indiferentes & distraídos

Má notícia: não interessaria nem se fosse o contrário de tudo isso. Nem se estivesse vestindo uma camiseta com a carona feia do Lula. A esta altura, nem se tivesse sobrenome de grã-fino e se a bala perdida tivesse atingido um carro de luxo, e não um mero coletivo. Porque estamos indiferentes e distraídos. Indiferentes porque distraídos – e nada disso se pode pôr na conta dos políticos, dos influencers e até mesmo dos artistas adestrados para falarem de mé e de muié, mas não da vida que é um moinho e que acaba assim, pá pum.


Marçal, DPVAT, novela

A indiferença e a opção pela distração constante são todas nossas. Minha e sua. Nós que, enquanto Renato deixava de ser o colega de trabalho que ficou de trazer o pão, a mortadela e o refrigerante para se transformar apenas no Homem Morto desta crônica, discutíamos — o quê? Ah, lembro bem e a Internet ajuda. Na manhã daquela quinta-feira, dia 24 de outubro, discutíamos a sabatina de Pablo Marçal com Guilherme Boulos, a rebeldia de alguns governadores contra o DPVAT de Lula e a novela da EBC.


Cúmplices?

Quero, com isso, dizer que somos cúmplices da morte de Renato Oliveira? De jeito nenhum! É pior do que ser cúmplice. Estou dizendo que somos indiferentes. E somos indiferentes, repito, porque estamos distraídos. Porque estamos ocupados demais humilhando adversários em debates, apontando as incoerências no outro, sempre no outro, e ostentando nossa razão que é sempre maior do que a do meu semelhante, aquele burro.


Dilexit nos

Somos indiferentes também porque perdemos o nosso coração. Por falar em coração, eis o que o papa Francisco diz em sua bela encíclica Dilexit nos, referindo-se ao sofrimento causado pelas guerras: “Descarregar a culpa nos outros não resolve este drama vergonhoso. Ver as avós a chorar sem que isso se torne intolerável é sinal de um mundo sem coração”. E quem ousaria dizer que o papa está errado? Pergunta meramente retórica, claro.


Quem o papa pensa que é?

Qualquer um ousaria porque, primeiro, falar em amor soa piegas aos nossos ouvidos intelectualizados, entupidos de racionalismo iluminista. Depois, quem o papa pensa que é para tirar meu direito de descarregar a culpa no primeiro petista ou bolsonarista ou isentão que cruzar a minha frente? E tem mais: esse papa aí é comuna, eu vi nas redes sociais. Por fim, dá licença que vou ver um meme que me mandaram aqui. Hahahahahahaha.


Incômodo passageiro (sem trocadilho)

Mas contrariar o papa, mesmo em questões de fé, é fácil. Qualquer troll consegue. Difícil é olhar para dentro de si e reconhecer que tem um coração há muito transformado em militante. Ou seria um coração zumbi? Um coração submisso aos ditames e às lealdades da ideologia. Ninguém ousaria encarar a verdade de que, para nós, os sobreviventes dessa batalha cotidiana, a morte gratuita de Renato Oliveira não passa de um incômodo passageiro (sem trocadilho) – como o que acomete os amigos de Ivan Ilitch ao saberem que a morte atrapalhou os planos deles para aquela noite.


Vexaminoso egoísmo

E não me venha com justificativas, porque é exatamente disso que se trata este texto: da nossa capacidade de tolerarmos o sofrimento alheio, a ponto de normalizá-lo. (Isso quando não cedemos ao impulso cínico de debocharmos da dor que nos irmana, mas que covardemente rejeitamos). Ou melhor, a ponto de ignorarmos o que o coração (é, você tem um!) nos grita para nos contentarmos com as mentiras sedutoras disso que parece razão, mas que não passa de um vexaminoso egoísmo.


Dedicado a Ivo Korytowski, que não me deixou ficar indiferente.

2024: CENTENÁRIO DA MORTE DE FRANZ KAFKA, AUTOR ESSENCIAL DO SÉCULO XX

Entrevista concedida por Cyro de Mattos à repórter Elis Freire, do Caderno 2 do jornal A Tarde


 

Repórter de A Tarde - Qual a sua trajetória de pesquisa e leitura das obras de Kafka?

Cyro de Mattos - Já vai longe o tempo em que eu era um jovem leitor voraz de autores universais.  Entre os intelectuais de Salvador de Bahia, se ouvia falar de Kafka, mas poucos tinham lido algo produzido pelo escritor judeu nascido em Praga. Como os de minha geração, tentava ler o mundo através das notícias trazidas pelos livros. As obras de Kafka não chegavam às livrarias baianas e brasileiras. Um dia procurei o livreiro Dermeval, dono da Livraria Civilização, amigo de Jorge Amado, e fui falar com ele do meu desejo de possuir as Obras Completas de Kafka.  Estava ávido para conhecer o genial fundador do realismo do absurdo, de quem até então só tinha conhecimento vago através da novela A Metamorfose.

Quem primeiro falou-me da grandeza literária do escritor judeu foi Carlos Falk, o guru de minha geração, que era chamada Geração Revista da Bahia, em razão de um grupo de intelectuais jovens que vinha marcando presença nas páginas da revista homônima com os seus primeiros escritos. Tempos depois, as Obras Completas de Kafka, das Edições EMECÊ, de Buenos Aires, finalmente passavam a ter um lugar de destaque na pequena biblioteca do moço universitário.  

     Aos poucos comecei a entrar em contato com o criador da ficção do ilógico, um ficcionista revolucionário na ideia e na forma. Os intelectuais de sua época em Praga achavam que Kafka era aquele jovem estranho, de voz rouca e fraca. Um autor que gostava de escrever histórias sobre insetos. Tive dificuldade no início para entender Kafka. Procurei estudar sobre sua obra para perceber a grandeza de sua revolução na literatura ocidental. Sem pressa fui absorvendo as suas construções do absurdo, penetrando na atmosfera sombria em que vivia o personagem soterrado pelas mãos do destino, sem poder fugir da solidão, que o acompanhava sempre.  O livro Cronistas do Absurdo, de Leo Gilson Ribeiro, foi um excelente guia para que pudesse conhecer os meandros de uma ficção complicada, difícil de ser absorvida.  

Fui separando, fazendo releituras, sem pressa, para melhor conhecer aqueles textos de ficção diferente, de essência alegórica, com uma linguagem descritiva aparentemente realista, e, ao mesmo tempo, com um discurso simbólico, que exige um leitor crítico para a sua compreensão.  Passei a saber de sua maneira de auscultar a solidão, a opressão impassível, cruel e impiedosa, seguidas vezes, quase sem fim na existência. Acostumado com o seu discurso ímpar, tornei-me admirador de um gênio na arte da escrita, de fecundo imaginário calcado nas zonas do sonho. Assim fui me tornando íntimo da grandeza de um autor dono de um legado avançado, sábio inventor na forma intrincada de expor o drama do que não tem sentido.   

 

Repórter - No seu livro Kafka, Faulkner, Borges e outras solidões imaginadas, você reflete, dentre outras coisas, sobre a construção simbólica dos personagens destes três autores. Qual a contribuição de Kafka você enxerga em relação a isso?

 

CM - O personagem em Kafka sempre se mostra como um autômato, um ser inferior prisioneiro dentro de um sistema mecanizado. O ser-estar desse personagem não corresponde a uma sequência lógica expressa através de panoramas humanos lineares. Do ponto de vista da lógica comum, o assunto desenvolvido torna-se cada vez mais absurdo e inexplicável. Do ponto de vista da razão mágica é impressionante a ruptura que o autor empreende no ideário sentimental do romantismo e na fotografia da vida captada pelo discurso naturalista.   

 

Repórter - Para relembrar o trabalho do autor checo que completou 100 anos de morte este ano, qual obra você destacaria e por quê?

 

CMA Metamorfose, O Processo e todos os seus contos.  Porque, como em geral, nesse processo de imaginar o mundo com a sua incoerência tudo ressoa de maneira instigante no plano do absurdo. É uma forma nova de narrar a vida com suas imperfeições, impossibilidades. E, nessa nova construção de produzir o real pior do que é, o resultado onírico prevalece como efeito. Nessa tessitura romanesca de narrar o absurdo do viver não são adotados recursos da estrutura presa à forma romântica ou realista do dizer as questões do mundo. É alegórica sua perspectiva na compreensão dissimulada das fraquezas humanas. É transcendental a palavra simbólica empregada para organizar sensações e percepções, no intuito de conferir outras dimensões da vida e assim através de uma linguagem avançada chegar perto de Deus.

 

Repórter - Como você enxerga a contribuição de Kafka para as artes e a cultura internacionalmente?

 

CM – Soberba.  Como em Pessoa, que aboliu o eu lírico em tom confessional, pelo reflexivo, em Kafka encontramos o domínio mais alto do saber literário criativo localizado num plano mais abstrato, atemporal, em que a ideia predomina como síntese do conteúdo e da forma. A ficção de Kafka não é a da condição humana proveniente da revolta humanista, da inquietação espiritual, da problemática existencialista no interior do indivíduo, da impregnação surrealista e erótica, da linguagem experimentalista como na técnica fragmentária de Joyce, que põe em questão as convenções tradicionais da narrativa e que na ruptura radical e caudalosa da estrutura linguística adere aos mitos da vida. Nem tampouco é a do psicologismo de Proust em busca do tempo perdido.  É mais do que isso. É a ficção do romance e da história breve que funde a narrativa da realidade num plano todo irreal. Suas visões e concatenações da inteligência desenvolvidas com uma linguagem mítica rotulam uma realidade subterrânea, que dá significação ao absurdo da existência como ainda não havia acontecido, e com a qual a crítica especializada não estava preparada para recebê-la no plano adiantado da escritura.  

DO MENINO SE FEZ O HOMEM, de CYRO DE MATTOS (resenha)

 


Do alto de suas oito décadas e meia de vida, Cyro de Mattos pode se orgulhar de ter dedicado sua jornada à nobre causa da criação literária em vários gêneros: poesia, ensaio, conto, romance, crônica, texto jornalístico e infanto-juvenil. Mas, à semelhança de Goethe que, na velhice, surpreendeu o mundo com seu inovador Fausto II, Cyro não deita sobre os louros da vitória, ao contrário, ele sempre surpreende, sempre se renova, cria algo de novo.

Agora eis que Cyro de Mattos resolve destilar sua experiência de vida e nos surpreende com seu romance de formação Do menino se fez o homem. Não se trata de obra autobiográfica, e sim de uma obra de autoficção: ficção baseada até certo ponto na vivência do autor ou, nas palavras do próprio Cyro, “reinvenção do real com as experiências do autor, que assim procedendo cria outro ego”. E o que é um romance de formação? O termo é uma tradução do alemão Bildungsroman e o criador do gênero foi o genial poeta alemão Johann Wolfgang von Goethe com sua obra Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. Trata-se do romance que descreve o desenvolvimento de um personagem, desde a sua infância ou adolescência até a maturidade, como esclarece o verbete “Bildungsroman” da Wikipédia. Da criança (ou adolescente) se faz o homem.

Segundo Massaud Moisés, no seu Dicionário de termos literários, podem-se considerar romances de formação na literatura brasileira, “até certo ponto, [...] O Ateneu (1888), de Raul Pompéia, Amar, verbo intransitivo (1927), de Mário de Andrade, os romances do ciclo do açúcar (1933-1937), de José Lins do Rego, Mundos mortos (1937), de Octávio de Faria [...]”.

O romance de Cyro narra a trajetória de Frederico, o Didico, filho de um pai sério, rigoroso e taciturno que dedica a vida a amealhar um patrimônio para garantir o conforto de sua família (e, quando a esposa adoece, também para cobrir de agrados uma amante mais jovem com quem passa a viver). O pai não poupa conselhos ao filho mais novo para que siga o mesmo caminho de trabalho duro e esforço que ele trilhou. Quando o filho consegue passar no exame de admissão para o ginásio – exame existente até certa época no sistema educacional brasileiro que permitia a passagem do curso primário para o curso ginasial, que hoje correspondem, respectivamente, às quatro primeiras e três ultimas séries do primeiro grau – recompensa-o com uma nota de dez cruzeiros e aconselha: “Não vá fazer besteira e gastar o dinheiro à toa. A economia, meu filho, é a base da prosperidade e sem sacrifício não há independência. Não se esqueça que do menino se faz o homem.”

Só que, em vez de fazer daquela nota a sua “moeda número um” do Tio Patinhas, guardando-a e multiplicando-a, o menino cai nas tentações de um parque de diversões que se instala na cidade, com suas luzes feéricas, suas guloseimas e brinquedos irresistíveis, e torra o dinheiro numa quermesse tentando, em vão, ganhar a bola de futebol que lhe permitiria escalar os times das peladas da rapaziada. Chega em casa sem o dinheiro e sem a bola, e leva do pai uma surra memorável que ficará gravada na memória e o inspirará, mais à frente, a tentar evitar que outras crianças de sua cidade passem pelo mesmo trauma, criando um parque onde crianças até doze anos não pagam.

Até chegar lá, desenrola-se todo o processo de formação: o ginásio local, o internato na capital Salvador, a solidão e medo na primeira noite no novo ambiente, a faculdade de direito, o primeiro grande amor por uma moça paulista, a doença da mãe, a volta triunfal dez anos depois à cidade natal, onde se estabelece como um grande advogado mas, em vez de se preocupar em enriquecer advogando para as famílias ricas da região, decide advogar em prol dos pobres. Foi assim que “do menino se fez o homem”. Uma história edificante, narrada com plasticidade e poeticidade (lembremos que, além de prosador, Cyro é um exímio poeta), levando o leitor a se esquecer de si mesmo e se transportar à pele do personagem. Bem fez o Colégio Jorge Amado, em Itabuna, que adotou o romance, publicado pela Fundação Casa de Jorge Amado (Salvador), para os alunos do oitavo ano, que o usarão para uma oficina e peça de teatro.

VIAGEM A PERNAMBUCO

 


Domingo, 22 de setembro de 2024: São Paulo-Recife-Olinda

 

O voo noturno pela Latam é mais barato, deveria decolar às 18:55 mas atrasou uma hora. Os assentos são apertados e o avião vai lotado. O tempo de voo é o mesmo de uma viagem a Buenos Aires, três horas. No meu tempo de Rede Ferroviária serviam um jantar a bordo, agora só um lanchinho. Eu sabia que o Brasil era grande mas não sabia que era tão alto, teria dito o presidente das piadas (Costa e Silva) quando anunciaram que a aeronave sobrevoava o país a 10 mil metros de altura. Chegamos à capital pernambucana lá pelas onze e um simpático taxista nos trouxe à nossa Pousada Histórica Convento da Conceição – antigo convento convertido em hotel no Alto da Sé, com vista para a cidade, terraço, claustros. Deveríamos ter vindo em julho para a festa de setenta anos do  Sérgio, que tem aqui uma filha, Bárbara, e um neto, João, de um namoro do tempo em que percorria o país de alto a baixo vendendo as mercadorias da fábrica de óculos de nosso pai, como conto em meu livro Minhas Memórias de Meu Pai.

 

Segunda-feira, 23 de setembro: Olinda I

 

Olinda,
Das perspectivas estranhas,
Dos imprevistos horizontes,
Das ladeiras, dos conventos e do mar. [...]

Joaquim Cardoso, Olinda

 

Ó linda situação para se fundar uma vila!

Na segunda-feira o núcleo histórico de Olinda estava semivazio, com restaurantes, museus e sorveterias (faz calor) fechados, porque funcionaram sábado e domingo, de modo que não é o dia ideal para iniciar um passeio de reconhecimento, mas não sabíamos. Fizemos uma longa caminhada para obter uma primeira impressão, e dois importantes templos que abrem hoje salvaram o dia: Convento de São Francisco com a Igreja de Nossa Senhora das Neves e a Igreja e Mosteiro de São Bento.

Sobre a origem do nome Olinda os guias contam uma versão que Gilberto Freyre também consigna em seu “guia prático, histórico e sentimental” da cidade (pág. 23): “[...] foi o próprio Duarte Coelho, primeiro donatário de Pernambuco, que exclamou diante do monte: Ó linda situação [posição] para se fundar uma vila!

Igreja da Misericórdia

O roteiro que tracei começaria pela visita à Igreja da Misericórdia aqui perto do hotel, que estava fechada, mas fotografei a casa contígua que, segundo o guia do Gilberto Freyre (p. 142), foi a única salva do  incêndio  que os holandeses atearam à cidade em 1631

a casa contígua que, segundo o guia do Gilberto Freyre, foi a única salva do  incêndio  que os holandeses atearam à cidade em 1631

de onde se descortina a vista da cidade morro abaixo com seus telhados vermelhos, o mar azul-turquesa ao fundo e os prédios de Recife ao longe à direita

Seguimos a Rua Bispo Coutinho, a mais alta do núcleo histórico, de onde se descortina a vista da cidade morro abaixo com seus telhados vermelhos, o mar azul-turquesa ao fundo e os prédios de Recife ao longe à direita. Aproximamo-nos do Farol de Olinda, que ainda funciona (acende as luzes de noite como pudemos constatar do pátio de nossa pousada-convento), mas não pode mais ser visitado por dentro, e cujo outeiro, no alto do qual se ergueu, foi sendo ocupado por casas de população de baixa renda e (pelo que ouvimos) não é área segura para turistas. 

Aproximamo-nos do Farol de Olinda

O Brasil de 90 milhões em ação da Copa de 1970 hoje abriga 200 e lá vai fumaça e, embora sejamos uma economia pujante que exporta aviões e alimentos para meio mundo, as eternas crises políticas impedem que um novo milagre econômico eleve nossa renda per capita a níveis de primeiro mundo, incorporando à classe média as hordas de pobres que habitam as periferias das nossas cidades inchadas.

 

CONVENTO DE SÃO FRANCISCO E IGREJA DE NOSSA SENHORA DAS NEVES

Igreja de Nossa Senhora das Neves encaixada entre dois dos diversos blocos do convento. Uma ideia da disposição do conjunto é dada pelo Google Maps. O livro Patrimônio Construído assim descreve a fachada da igreja: "A igreja se abre em arcada tripla encimada por três janelas de verga reta no coro. Acima da cimalha, frontão barroco com nicho central. Nos cunhais ao nível do coro, em partido típico de tantos conventos franciscanos, duas volutas saem dos cunhais pousando sobre o pavimento térreo mais largo."

O convento de São Francisco, primeiro convento franciscano brasileiro, construído em 1585, abriga ainda alguns frades (não reclusos, exercem atividades externas também, alguns cursam universidade), que rezam por nós, seculares, agnósticos, ou mesmo ateus. Pode ser visitado de segunda a sábado e abriga um tesouro, o maior acervo de azulejaria portuguesa dos séculos XVII e XVIII do Nordeste  no claustro (dezesseis painéis rococó que relatam milagres de São Francisco e seu apreço pela natureza); capela do capítulo (único cômodo remanescente do convento original, onde os capítulos das Regras da vida franciscana eram lidos, com azulejos nas paredes laterais do barroco luso-brasileiro do século XVII); e Igreja de Nossa Senhora das Neves (azulejos nas paredes laterais com cenas da vida de Cristo)  prazer para os olhos e o espírito que nos legou o colonizador luso, junto com o idioma de Camões.

maior acervo de azulejaria portuguesa dos séculos XVII e XVIII do Nordeste 

Capela do Capítulo: azulejos nas paredes laterais do barroco luso-brasileiro do século XVII 

Capela do Capítulo: Santo Antônio

“Dos conventos de Olinda, hoje de pé e com religiosos, que merecem a visita do turista, destaca-se o de São Francisco, fundado em 1585, incendiado pelos holandeses em 1631 e reconstruído de 1715 a 1755 – ano em que terminaram as obras de reconstrução. [...] O interior da igreja do convento ostenta painéis de azulejo representando a vida de Nossa Senhora que são dos mais bonitos de Olinda.” (Gilberto Freyre, Olinda: 2º Guia Prático, Histórico e Sentimental de Cidade Brasileira, 6ª edição, Global Editora, pág. 100)

costa de Olinda, com seus barquinhos, quebra-mar e o oceano azul turquesa
 

IGREJA E MOSTEIRO DE SÃO BENTO

Para baixo todo santo ajuda, de modo que descemos a ladeira de São Francisco, que nos levou à costa de Olinda, com seus barquinhos, quebra-mar e o oceano azul turquesa. Sob um calor de verão carioca margeamos o Parque do Carmo, adentrando-o um pouquinho, em demanda da Igreja e Mosteiro de São Bento, que reabriria às 14 horas. 


O conjunto conheceu uma história tortuosa, como narra o guia de Gilberto Freyre: originalmente construído em 1599, foi arruinado pelo incêndio de Olinda de 1631 ateado pelos holandeses. “Nos meados do século XVIII, iniciou-se a reconstrução do Mosteiro de São Bento de Olinda, que resultaria no seu aspecto atual. Não se acabou de vez, mas por partes, essa reconstrução, pode-se dizer que foi trabalho feito com vagar ou paciência beneditina.” (Gilberto Freyre, Olinda, págs. 101-2) Se você olhar o conjunto do alto no Google Maps, verá que “o mosteiro forma uma quadra em torno do claustro [...] A igreja ocupa uma das alas [...] Na década de 1770, a capela-mor foi ampliada, tomando para isso o espaço da sacristia; um corpo saliente nos fundos do mosteiro foi edificado a fim de abrigar uma nova sacristia”. (Alexei Bueno, Augusto da Silva Telles e Lauro Cavalcanti, Patrimônio Construído: As 110 mais belas edificações do Brasil, Capivara Editora) Um módico ingresso dá acesso à igreja, em cujo interior guias se alternam descrevendo o templo e sua história. A nave única, em rococó leve, destoa da capela-mor profunda, cujo grande retábulo, folheado a ouro, aponta para a chegada do neoclassicismo.

capela-mor profunda (foto de Valdiney Pimenta obtida no Wikimedia Commons

O centro histórico, pitoresco, colorido – mas sem a homogeneidade arquitetônica de cidades históricas como Ouro Preto e  Parati – é palco do famoso Carnaval que, para preservar as construções antigas e os supostos túneis subterrâneos do tempo da invasão holandesa, utiliza bonecos gigantes em vez de carros alegóricos ou trios elétricos. 

O centro histórico, pitoresco, colorido


Subimos de volta ao hotel de Uber e, após o descanso, fomos jantar camarão ao catupiry regado a caipirinha num restaurante, o Estrela de Olinda, na orla da parte moderna (o Bairro Novo), com direito a caminhada para fazer a digestão no calçadão a beira-mar. Na volta o motorista do Uber contou causos do tempo em que percorria o país como carreteiro (caminhoneiro). Certa vez, ao dar carona a um colega achando que poderia ajudá-lo nos momentos de cansaço, descobriu que este sequer sabia interpretar a sinalização de “ultrapassagem segura” da carreta em frente, mas quando deu carona a uma mulher sem esperar nada dela, aí sim se surpreendeu com sua destreza ao volante do caminhão.”

Terça-feira, 24 de setembro: Recife I

 

de cuja varanda, onde tomamos o café da manhã, se descortina a mesma vegetação pontilhada de coqueiros retratada por Frans Post no século XVII

Estamos hospedados na Pousada Histórica Convento da Conceição, na parte mais alta de Olinda, que ocupa as dependências de um antigo convento, com claustro e tudo, e de cuja varanda, onde tomamos o café da manhã, se descortina a mesma vegetação pontilhada de coqueiros retratada por Frans Post no século XVII. Deveríamos ter vindo em julho para o aniversário de setenta anos do meu irmão Sérgio, que tem uma filha, Bárbara, e um neto, João, em Recife, mas meu pós-operatório da hérnia de disco me obrigou a protelar a viagem e cá estou, em final de setembro, enfim recuperado das dores. Gilberto Freyre menciona o antigo convento à página 105 de seu guia: “Um recolhimento de Olinda que se tornou célebre pelos seus doces chamados ‘doces de freiras’ foi o da Conceição de Olinda, no alto da [Ladeira da] Misericórdia.”

Após um passeio exploratório por Olinda no primeiro dia, neste segundo dia fizemos nossa primeira incursão à vizinha Recife, com duas visitas imperdíveis para os aficionados por arte e cultura: a casa onde morou o genial sociólogo, antropólogo e escritor Gilberto Freyre e o complexo de deixar o visitante boquiaberto que reúne as coleções do empresário Ricardo Brennand.

 

CASA-MUSEU MAGDALENA E GILBERTO FREYRE da FUNDAÇÃO GILBERTO FREYRE


Se no Rio o chalé onde residiu Machado de Assis por grande parte da vida foi demolido, aqui se preservou a vivenda do século XIX onde Gilberto Freyre morou por mais de quarenta anos, no bairro que deve seu nome ao antigo engenho que se erguia no que outrora constituía a zona rural de Recife: Apipucos. A casa está aberta a visitas guiadas de meia em meia hora, de segunda a sexta-feira, das 9:00 às 16:30.

Não é permitido fotografar o interior da casa, mas o folder distribuído dá uma boa ideia do conteúdo:

“Uma biblioteca. É essa a lembrança que vem à mente do visitante que percorre os ambientes da Casa-museu. Os livros estão por toda parte. Nas estantes da sala de estar, no chão do gabinete de trabalho, na mesa da antessala e onde mais for possível acomodar uma rica coleção de aproximadamente 40 mil volumes.

Mas não se tem dúvida de que se trata de uma casa. Uma casa acolhedora e rica em elementos do cotidiano. De tal forma, que a sensação é que, ao ultrapassar cada porta, vamos nos deparar com seus moradores envolvidos em sua rotina diária. Com Gilberto e Magdalena, sentados no solário, recebendo os amigos com conhaque de pitanga ou com o escritor esparramado confortavelmente na poltrona de seu gabinete de trabalho.

Diversidade é a palavra apropriada para definir as coleções que formam o acervo da Casa-museu. Em cada ambiente, o visitante encontra uma mistura harmoniosa de objetos de origem e estilo variados, recolhidos por Freyre nas suas viagens ou presenteados por amigos e parentes.

Imagens sacras católicas se juntam a peças em marfim e ébano de origem africana. Porcelanas orientais e cerâmicas regionais dividem espaço, nos móveis em madeira de lei, com prataria inglesa e portuguesa.

Azulejos portugueses, que tratam da vida de Nossa Senhora, ilustram as paredes, juntamente com quadros de artistas brasileiros, como Cícero Dias, Lula Cardoso Ayres, Di Cavalcanti, Francisco Brennand, Baltazar da Câmara e do próprio Gilberto.”

Azulejaria na lateral da casa de Gilberto Freyre
 

INSTITUTO RICARDO BRENNAND

Quem vem a Recife pela primeira vez, ou não vem faz tempo, não espera encontrar nessa metrópole nordestina um complexo artístico e cultural tão rico, tão diversificado, tão “primeiro mundo”. Considerado um dos dez melhores museus brasileiros (em alguns rankings em primeiro lugar), o Instituto impressiona 1) pela área ocupada (77.603 m2) nas terras do antigo Engenho São João; pelos jardins de esculturas; 2) pela arquitetura “historicista” que os puristas podem tachar de “pastiche”, mas que conseguem criar uma ambiência que nos transporta ao continente europeu; 3) pelas variadas e vastas coleções do empresário Ricardo Brennand: artes plásticas e decorativas, arte sacra, arte oriental, papel machê mexicano, globos terrestres, mapas cartográficos, iconografia da Recife e Rio antigos, tapeçarias francesas, biombo japonês, louças e porcelanas  inclusive algumas produzidas de 1947 a 1965 pela Fábrica de Porcelanas Brennand e uma coleção sui generis de 1270 “xícaras de bigode” com uma saliência em meia-lua na borda que impede que o bigode se molhe  armas brancas e armaduras medievais, documentos raros do período da ocupação holandesa (1630-54), sala de figuras de cera representando a ascensão e queda de Nicolas Fouquet. 

arquitetura “historicista” 

uma ambiência que nos transporta ao continente europeu

artes plásticas


armaduras medievais

O nome do instituto homenageia o tio Ricardo Lacerda de Almeida Brennand, de quem seu sobrinho Ricardo Coimbra de Almeida Brennand, o criador do museu, “herdou o bom gosto pelas artes e peças de antiguidade”. “Tio Ricardinho”, uma figura introspectiva que se autodenominava O Taciturno, foi pai de Francisco Brennand, importante ceramista e escultor que também deixou sua marca na cidade de Recife.

tio Ricardo Lacerda de Almeida Brennand, o “Tio Ricardinho”, uma figura introspectiva que se autodenominava O Taciturno

Custa crer que uma única pessoa tenha conseguido reunir tamanho acervo de objetos, alguns de valor inestimável: maior coleção privada do mundo de obras do pintor de panoramas neerlandês Frans Post; cenas venezianas do pintor de paisagens urbanas Canaletto que orçam às dezenas de milhões de dólares; tapeçarias Gobelins de temática tropical; grupos escultóricos chineses, estonteantes pelo detalhismo, em marfim de mamute, um animal extinto! Ricardo foi um industrial que, a certa altura da vida, vendeu sua fábrica de cimento a um grupo português e, com o montante arrecadado, construiu esse colosso recifense.

Custa crer que uma única pessoa tenha conseguido reunir tamanho acervo de objetos: detalhe da pintura O Colecionador de Renato Meziat mostrando o colecionador Ricardo Brennand

O complexo abriga cinco edificações que procuram recriar o estilo gótico Tudor: 1) o restaurante; 2) a Galeria Lourdes Brennand que entre uma exposição temporária e outra, exibe a coleção de arte pernambucana dos séculos XX e XXI do acervo do Instituto; 3) a pinacoteca/biblioteca/cafeteria; 4) o Castelo São João com a coleção de armas brancas (inclusive canivetes), armaduras, cintos de castidade, relógios e quadros de nus femininos; 5) a capela Nossa Senhora das Graças. A inteira custa 50 reais, mas na última terça-feira do mês, exatamente o dia em que fomos, a entrada é grátis, e aí o instituto lota, principalmente de turmas escolares ruidosas.

coleção de arte pernambucanaMenino com pião, 1uadro de Reynaldo Fonseca de 2012

quadros de nus femininos


Quarta-feira, 25 de setembro: Porto de Galinhas, Ipojuca


Viajar ao Nordeste sem visitar alguma praia é como ir a Paris e não ver a Torre Eiffel. Quem como eu está acostumado ao mar brabo de águas geladas das praias cariocas surpreende-se com o mar calmo de águas mornas da costa nordestina. Calmo devido aos arrecifes e quebra-mares, que fazem com que o mar quebre lá longe, criando piscinas naturais. O mar quente atrai os tubarões, tornando as praias recifenses perigosas ao banho. Mas existem outras praias onde esses predadores não dão as caras, e tivemos a ventura de conhecer a Dora (81 9245-6047), taxista que põe toda sua família para trabalhar em seus vários táxis adaptados e organiza passeios privados ou em grupos a Porto de Galinhas, Praia dos Carneiros, Itamaracá etc.

O Nordeste leva a sério a indústria do turismo, com uma organização de primeiro mundo, embora empregue muitos informais também. O veículo pega você no hotel de manhã cedinho, o motorista interage, contando causos, mostrando as coisas, e não despeja você simplesmente numa faixa de areia qualquer... fomos deixados num “receptivo”, que é uma estrutura impecavelmente organizada, onde por sessenta reais por pessoa pudemos utilizar o restaurante, toaletes, chuveiros, guarda-sóis (que também servem de guarda-chuva), cadeiras de praia, bem como reverter esse valor em consumação de bebidas, petiscos, almoço. Você não manuseia dinheiro durante a estadia, acertando as contas ao final. 

guarda-sóis (que também servem de guarda-chuva)

consumação de bebidas

Queijo de coalho, carne de sol com macaxeira, arroz e feijão de corda: quantas delícias saboreamos! As praias nordestinas são imensas, algumas parecem não ter fim. Existem pousadas para todas as faixas de renda, também vimos muita construção civil, e uma plêiade de serviços são prestados: passeios em versão modernizada da clássica jangada, mergulhos subaquáticos, passeios de buggy. Meninos pintam na hora pequenos panoramas marinhos e vendem por vinte reais – “quando eu ficar famoso como o Picasso vai valer vinte mil”, apregoou um deles. Perguntei a outro onde aprendeu a pintar, respondeu que nasceu com esse dom. Até chope artesanal se vende na areia. Em alguns momentos choveu, mas chuva no paraíso não molha.

versão modernizada da clássica jangada

O turismo poderia alçar o nossos irmãos nordestinos a níveis de renda caribenhos. Pois mares caribenhos, estes já temos! Falta melhor discernimento político.

 

Quinta-feira, 26 de setembro: Olinda II

Ladeira da Misericórdia

Segundo dia da exploração de Olinda. Hoje rodamos o núcleo histórico de Olinda literalmente de alto a baixo e de baixo a alto. Três ladeiras descem a encosta íngreme por onde se eleva o núcleo histórico: Ladeira da Misericórdia, Ladeira da Sé e Ladeira de São Francisco. Se você desce uma das ladeiras de uma só vez, depois vai ter que subir, e se para baixo todos os santos ajudam, para cima os diabos atrapalham. Então o segredo é ir descendo aos poucos, alternando trechos de ladeira com ruas planas, ziguezagueando até chegar embaixo. Não esqueça de se proteger do sol com boné, uma sombrinha e protetor solar.

IGREJA DE NOSSA SENHORA DO AMPARO

igreja barroca de Nossa Senhora do Amparo

Saímos de nosso “convento” no alto da Sé e seguimos a Rua Saldanha Marinho à direita até a igreja barroca de Nossa Senhora do Amparo, abordada por Gilberto Freyre na pág. 115 de seu guia: “Outra igreja velha de Olinda é a do Amparo que já existia em 1613; foi destruída pelo incêndio de 1631 e reconstruída em 1644. [...] Não é igreja que tenha alguma coisa de grandioso; mas o trabalho de talha de sua capela-mor não é desprezível; e seus altares laterais – o do Bom Jesus e o de Santa Cecília [padroeira da música] – são dignos de ser olhados.” Chama a atenção a incomum coloração rosa dos altares e o piso de ladrilhos hidráulicos.

Santa Cecília [padroeira da música]
 

MUSEU REGIONAL DE OLINDA

Pegamos a Rua do Amparo em direção ao Museu Regional de Olinda (Rua do Amparo, 128), “reunindo móveis, imagens, painéis e que merece a visita do turista, não só pelos objetos que abriga como pela própria casa onde foi instalado: um bom e velho sobrado que recorda, com outros edifícios da vizinhança, a Olinda de 1700.” (Gilberto Freyre, Olinda, pág. 150) Uma zeladora conduz com simpatia e senso de humor o visitante pelos aposentos da casa-museu, que não podem ser fotografados.

Casa colorida na Rua do Amparo, 257

Seguindo a Rua do Amparo, adentramos a Rua da Bica dos Quatro Cantos para ver a antiga bica de mesmo nome.

Bica dos Quatro Cantos

SOBRADO MOURISCO DA RUA DO AMPARO

De lá retornamos para conhecer o sobradinho no no 28 da Rua do Amparo, uma típica casa do século XVII que teria escapado à descaracterização, com beiral (em vez das platibandas das casas mais recentes), balcão mourisco que, não fossem aa duas aberturas frontais, seria um perfeito "muxarabi”, e portas com vergas e ombreiras retas de pedra. O muxarabi autêntico é todo fechado por treliças, permitindo que quem está dentro veja quem passa na rua, mas não vice-versa. Aliás raras as cidades brasileiras que ainda conservam casas residenciais daquele século. 

sobradinho no no 28 da Rua do Amparo, uma típica casa do século XVII que teria escapado à descaracterização

Pegamos a rua do Bonfim, na Ladeira da Misericórdia tiramos algumas fotografias, prosseguimos pela Bonfim passando pela igreja de mesmo nome, dobramos à direita na ladeira da Sé até a Praça João Alfredo, onde outra casa do século XVII pode ser encontrada (aqui), e logo em frente fomos dar na Praça da Abolição, onde uma casa neoclássica com azulejos na fachada que abriga o maracatu Nação Pernambuco chama a atenção.

 na Ladeira da Misericórdia tiramos algumas fotografias

casa neoclássica com azulejos na fachada

IGREJA DE NOSSA SENHORA DO CARMO

Em pequena elevação na Praça da Abolição ergue-se a Igreja do Carmo. “A igreja do extinto convento dos carmelitas de Olinda começou a ser construída em 1588. Em 1615 ainda estava em obras. Incendiada pouco depois, quando da invasão holandesa, conservou muito do seu arcabouço primitivo, sendo restaurada em 1704. Do convento, que, tendo caído em ruína, foi infelizmente demolido em 1907, restaram apenas o vestíbulo da portaria, ligado à torre direita da igreja, e resquícios dos fundamentos que ainda afloram do solo.

Em pequena elevação na Praça da Abolição ergue-se a Igreja do Carmo

restaram apenas o vestíbulo da portaria

No frontispício, destaca-se, como um dos elementos mais antigos, a portada em arco pleno e ombreiras, ladeada por dois pares de colunas de capital jônico encimadas por pináculos em pirâmide. Ao nível do coro, duas janelas de verga reta com coroamento de feição renascentista e um nicho entre elas, acima da portada. O frontão é de estilo barroco, e as duas torres são abertas com um par de seteiras, encimadas por sineiras de arco pleno. No interior, destaca-se a capela-mor, com o teto pintado e retábulo de talha dourada e feição clássica, os vários altares das capelas laterais e a balaustrada torneada do coro.” (Alexei Bueno, Augusto da Silva Telles e Lauro Cavalcanti, Patrimônio Construído: As 110 mais belas edificações do Brasil, Capivara Editora) Quem quiser visitar seu interior tem de se informar dos dias e horários das missas, afixados na entrada, mas que não anotei.

No frontispício, destaca-se, como um dos elementos mais antigos, a portada em arco pleno e ombreiras, ladeada por dois pares de colunas de capital jônico encimadas por pináculos em pirâmide. Ao nível do coro, duas janelas de verga reta com coroamento de feição renascentista e um nicho entre elas, acima da portada. O frontão é de estilo barroco, e as duas torres são abertas com um par de seteiras, encimadas por sineiras de arco pleno.

O forte calor nos convidou a tomar um açaí (seguido de mais um segundo) num quiosque da praça com banquinhos e cadeiras de plástico onde um grupo de classe média “antipetista” reclamava da péssima gestão do prefeito da cidade nessas vésperas das eleições municipais. Um meia-idade pernambucano, atarracado e bonachão, tipo Dorival Caymmi, que ficava ali sentado cumprimentando todo mundo que passava, descobrimos ser o dono do quiosque. Enquanto o filho e o neto atendiam os clientes, ficava distraindo os transeuntes, puxando papo, ou ouvindo umas musiquinhas do Carnaval recifense, Galo da Madrugada. Como na vez anterior, pretendíamos subir ao hotel de Uber, mas ele nos convenceu de que a ladeira de Santo Antônio é menos íngreme que as demais, de modo que fomos subindo devagarinho, que devagar se vai ao longe, daí eu ter escrito, no início deste dia, que rodamos o núcleo histórico de Olinda literalmente de alto a baixo e de baixo a alto.

uma construção “de uma quase desconcertante radicalidade modernista”, a Caixa d’Água

O centro histórico de Olinda, embora Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade desde 1982, não é homogêneo como o de Ouro Preto, e sim uma mistura: casas dos séculos XVII ao XX; uma construção “de uma quase desconcertante radicalidade modernista”, a Caixa d’Água no Alto da Sé; um hotel-fazenda, em vasta propriedade com piscina. Comentei essa característica com Alexei Bueno e ele observou: “Olinda não tem uma unidade de arquitetura civil preservada como Parati, Ouro Preto, Tiradentes, ou mesmo o núcleo colonial da Cidade Alta de Salvador, mas conservou duas ou três casas do século XVII, o que no Brasil não é pouca coisa, fora as edificações religiosas e a paisagem, que são admiráveis.”

a paisagem

Além disso, é segura e pacata, qual cidade do interior, um oásis em meio ao burburinho da metrópole. Você pode rodar, pode sair à noite andando pelos becos, ruas à procura daquele restaurante que viu no Google Maps, sem correr risco. O único senão é que às vezes guias, que vivem do turismo, o abordam, ou então já vão dando explicações sem você pedir, e você se sente na obrigação de dar uma gorjetinha, mas nunca coagem, e contam fatos interessantes. Um rapaz que nos abordou, ante as casas multicores, perguntou: sabe por que as casas têm cores diferentes? Porque antigamente não tinham numeração como as atuais e se identificava o proprietário pela cor da sua casa.

 

CATEDRAL DA ARQUIDIOCESE DE OLINDA E RECIFE (SÉ METROPOLITANA – MATRIZ DE SÃO SALVADOR DO MUNDO)

No alto ainda paguei dois reais (a última nota de papel moeda na minha carteira) para visitar a Catedral da Arquidiocese de Olinda e Recife. Trata-se do templo mais antigo de Olinda, de 1584, em estilo maneirista, de transição entre o renascentista e o barroco. Eu abordei os estilos arquitetônicos praticados no Brasil em postagem do meu outro blog que você pode ler aqui.

Catedral da Arquidiocese de Olinda e Recife (Sé Metropolitana – Matriz de São Salvador do Mundo). A fachada se divide em três blocos principais, com o corpo da catedral ladeado por duas torres sineiras iguais. As torres, com pilastras em relevo nos cantos, são de secção quadrada e mostram somente duas estreitas aberturas retangulares sobrepostas até o nível do coruchéu, que tem aberturas em arco redondo para os sinos e um arremate superior prismático, com pequenos pináculos nos cantos. O corpo da igreja tem no nível térreo três portas, sendo a central maior e em arco, e encerrada em um frontispício com dois pares de colunas jônicas. Sobre as portas laterais, janelas quadradas que se ligam à cornija que delimita o nível do frontão de empenas retas, com óculo inscrito, cruz no topo e pináculos laterais.

No ano de 1676, com a criação do Bispado de Olinda, foi elevada à condição de Catedral. Diversas intervenções e reformas descaracterizaram o estilo original da fachada, até que, entre 1974 e 1976, a edificação foi restaurada, readquirindo na medida do possível suas feições originais, segundo informa o site da arquidiocese de Olinda e Recife. Gilberto Freyre, na pág. 86 de seu guia de Olinda, conta: “Atravessou a guerra holandesa. Os holandeses lhe faltaram com o respeito, mas não a destruíram. Ao contrário, depois ela cresceu. Tornou-se catedral.” O interior é despojado, mas a maior atração é a vista de Olinda e Recife do terraço da igreja.

a maior atração é a vista de Olinda e Recife do terraço da igreja

À noite lanche no McDonald’s do Shopping Patteo Olinda, que shopping também é cultura. É?

 

Sexta-feira, 27 de setembro: Praia dos Carneiros

 

Não precisa ir mais para o Caribe, o Caribe é aqui. Achamos a nossa praia dos sonhos, sem precisar ir para o Caribe. Praia dos Carneiros, em Tamandaré, Pernambuco.

o Caribe é aqui

O transporte nos apanhou às seis e vinte da manhã. Juntou-se ao grupo uma mãe de Santa Maria, RS, com as duas filhas. Por 30 reais por cabeça pudemos usufruir as dependências e serviços do receptivo Bora Bora: “o paraíso é aqui”. Um espaçoso complexo com todos os confortos que se possam desfrutar à beira-mar: bangalôs, redes, espreguiçadeira e ampla área de mesas servidas por um exército de garçons jovens e atenciosos, em suma, “o maior e melhor receptivo do litoral sul de Pernambuco”, segundo opinião de um Local Guide do Google Maps. Acesso direto à piscina natural de tonalidade caribenha que é o mar em frente. Mansinho e morninho. 

Embarcamos num catamarã

Embarcamos num catamarã com animador, Thalis Carneiros (procurem no Instagram), e trio de forró. Primeira parada, banco de areia. E o Thalis vai animando a galera com seu canto desafinado e informações: a praia deve seu nome a uma família de portugueses proprietários daquelas terras em tempos remotos, ele conta. Conta também uns causos jocosos: Por exemplo, num dos passeios, ao anunciar que parariam no banco de areia, alguém perguntou: o que tem no banco de areia? (Areia, claro!) E adverte que, ao fim da parada (que dura uns vinte minutos), dará três apitos: ao primeiro, corram todos para o barco. Ao segundo, embarquem. Ao terceiro, já era, porque o catamarã acabou de partir!

trio de forró

a singela Capela de São Benedito, em frente à qual todos os casais querem tirar sua selfie

Segunda parada, a praia onde você toma um “banho de argila”, ou melhor, umas mulheres locais esfregam um lodo “rejuvenescedor” no seu rosto, tronco e pernas e depois oferecem uns sabonetes medicinais feitos desse lodo para você comprar. Terceira parada, a singela Capela de São Benedito, em frente à qual todos os casais querem tirar sua selfie, em meio a uma paisagem paradisíaca de coqueiros. Você pode agendar seu casamento nessa capela. De volta ao receptivo, almoçamos um peixe à milanesa fresquinho. Que Caribe qual nada, o Caribe é aqui!

paisagem paradisíaca de coqueiros

Jantar num restaurante italiano de massas caseiras, Don Francesco Trattoria, no centro da muvuca em Olinda, os Quatro Cantos: caro e bom.

 

Sábado, 28 de setembro: Recife II

 

a primeira sinagoga do Brasil

Pegamos um Uber até o Marco Zero de Recife, apinhado devido à regata Recife-Fernando de Noronha que estava começando por lá. Percorremos a Rua do Bom Jesus, antiga Rua dos Judeus, com seu casario histórico que inclui a primeira sinagoga do Brasil, do tempo dos holandeses. Depois atravessamos a ponte sobre o Rio Capibaribe rumo à Praça da República onde fica o Palácio do Campo das Princesas e o Teatro Santa Isabel, mas por ser sábado, à medida que nos afastávamos do Marco Zero, o Centro ia se tornando cada vez mais ermo, e não nos sentimos à vontade. 

Mas nosso objetivo hoje era visitar pela segunda vez o Instituto Ricardo Brennand, que na terça-feira estava cheio demais por ser dia de visita gratuita. Contemplamos mais uma vez, agora em um ambiente menos apinhado, mais calmo, os tesouros artísticos ali reunidos

os tesouros artísticos ali reunidosFrans Post, Paisagem de Olinda com ruínas do Convento do Carmo

No final da tarde, eis que toca o telefone do meu celular, algo raro. Na era do WhatsApp as pessoas raramente telefonam. Era minha sobrinha Bárbara (filha do Sergio, que vive em Luanda) a quem eu avisara que iria ao Brennand, dizendo que morava não longe dali e sugerindo que fôssemos jantar em sua casa. Ela nos apanhou de carro, e coroamos o dia com um agradável jantar no quintal da casa (fazia calor) daquela família tão simpática, acolhedora e unida, como deveriam ser todas as famílias.

família tão simpática, acolhedora e unida, como deveriam ser todas as famílias

 

Domingo, 29 de setembro: Olinda-Recife-São Paulo

 

Bárbara repetiu o delicioso cozido que tanto sucesso fez no aniversário do Sergio em julho e nos levou, saciados, ao aeroporto, onde pegamos nosso avião de volta ao lar.


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