ANTONIO CARLOS VILLAÇA

Em 31 de agosto de 2008 Antonio Carlos Villaça - falecido em 2005 - completaria 80 anos. Esta postagem, com fotos gentilmente enviadas por Carlos Roberto Carvalho, é um presente de aniversário ao grande amigo e escritor.




EM MEMÓRIA DE VILLAÇA
Edmílson Caminha

Tive o privilégio de manter com o escritor Antonio Carlos Villaça uma longa e substanciosa correspondência. Dele recebi 37 cartas, de 1980 a 1991, que agora publicarei no livro O monge do Hotel Bela Vista, para registrar os 80 anos do nascimento desse que é uma das maiores expressões do memorialismo brasileiro.

Em 1990, solicitei-lhe um depoimento sobre O nariz do morto, que alguns consideram sua mais importante obra. Perguntei o que de melhor o livro lhe proporcionara, que importância lhe dava no conjunto da obra que escrevera, e como situava O nariz no panorama do nosso memorialismo. As respostas constam no artigo “Depoimento de Villaça”, que publiquei no Jornal da Manhã, de Teresina-PI, em 22 de novembro de 1990. O livro Degustação, a que faz referência, saiu em 1994; a biografia de José Olympio (O descobridor de escritores) somente foi lançada em 2001. Reproduzo, a seguir, a carta em que Villaça tão gentilmente discorreu sobre O nariz do morto. É uma pequena homenagem ao escritor que fez o mundo melhor e a vida mais bela, pela grandeza humana e pela obra literária com que se tornou digno da nossa admiração e do nosso respeito.

rio, 5 agosto 1990

Querido Amigo,

Aí vai o depoimento que me solicitou. Saudades.

Alegrias. O prêmio Jabuti, de São Paulo. O poema de Drummond - “O Nariz do Morto” - no Jornal do Brasil. Uma carta admirável do músico Leonardo Luz. A amizade tempestuosa de Carlos Lacerda. As críticas. A de Wilson Martins, no Estado de S. Paulo, que incorporei como introdução à terceira edição do Nariz. O artigo de Paulo Rónai, que saiu ainda agora no seu livro Pois É e aparecera no Estado de S. Paulo e no Jornal do Comércio. O artigo do poeta Alberto da Costa e Silva, que ele republicou em seu livro recente, O Vício da África e Outros Vícios, editado em Lisboa. E foi a crítica mais transcrita em jornais. Saiu em oito jornais, até em Lisboa, em A Capital. O artigo de Hélio Pólvora, no Jornal do Brasil, que ele aproveitou numa coletânea de artigos críticos. Outros artigos notáveis - o de Carlos Lacerda, o de Homero Senna, o de Eneida, o de Edson Nery da Fonseca, o de Paulo Hecker Filho. Importância na obra - Foi o primeiro dos meus livros de memórias. O primeiro de uma série. Representou para mim uma catarse, uma libertação, uma renovação de vida, algo novo. Ganhei muitos amigos com o Nariz. O admirável filósofo boliviano Guillermo Francovich, que está fazendo noventa anos e mora em Ipanema, num belo apartamento da Vieira Souto, apaixonado que é pelo Rio, escreveu um artigo em espanhol, “La nariz del muerto”, e o publicou em La Paz. Situação no memorialismo nosso - São mais memórias de ordem espiritual do que de ordem cronológica. Mais um livro interior, uma peregrinação interior, do que um livro exterior. José Guilherme Merquior escreveu, agora me lembro, um belo artigo em que situava o Nariz na memorialística brasileira. Minha Formação, de Nabuco, História da Minha Infância e Minha Formação no Recife, de Gilberto Amado, A Alma do Tempo, de Afonso Arinos, os volumes de Pedro Nava, Minha Vida de Menina, de Helena Morley, Alice Dayrell Caldeira Brant, eis os livros de memórias entre os quais eu gostaria de ficar.

O Anel é mais ousado, mais louco, vai mais longe, tem um ímpeto maior. Gosto mais do Anel. O Livro de Antônio é mais sereno, mais equilibrado, mais pacificado. Menos inquieto. É o encontro com a harmonia. Não sei quando terminarei o volume Degustação. Agora, tenho duas tarefas imediatas. Escrever a história da ACM do Rio, que vai fazer cem anos em 93, e escrever a biografia do José Olympio, para os sessenta anos da Casa, a 29 de novembro de 1991. Já assinei contrato.

Beijos para Ana Maria, Mariana e Ana Carolina. E beijo para o ser que vai chegar tão breve. Felicidades, felicidades.

o Villaça



Villaça em Santa Teresa (década de 1980)

Villaça in labore, na sua sala no Pen Club

O NARIZ DE VILLAÇA
Ivo Barroso (crônica publicada no Jornal do Brasil em 4/6/05)

Impressionou-me o laconismo com que a imprensa carioca registrou a morte de Antônio Carlos Villaça - Villaça, o gordo, Villaça, o bom -, ele que se dedicou por algum tempo a escrever obituários sobre mortos ilustres que ainda estavam vivos. O trabalho consistia em manter em estoque nos jornais uma espécie de banco de dados com os traços relevantes das personalidades do momento que, pela idade, pelos boatos ou pelos prognósticos médicos, estivessem, de alguma forma, carimbando passaporte para o undiscover'd country. Era assim uma espécie de cronista do futuro, trabalhando com uma matéria sem risco de obsolescência, já que noticiava o que acabaria certamente por acontecer. Tinha especial preferência pelos acadêmicos, a cujas posses sem falhar comparecia, registrando data, extensão dos discursos, qualidade dos salgadinhos e número de convivas. Fazia as pesquisas em estado de excelente humor, sem agouros nem torcidas subreptícias para que seus escolhidos fossem premiados, tanto que chegou a fazer seu próprio obituário, que, no entanto, ficou esquecido, como se viu, nos arquivos hoje eletrônicos de alguma redação.

Dono de gigabites de memória, sabia de cor trechos de milhares dos livros que lera, desde os tempos de seminário e de suas passagens pelos claustros de algumas ordens monásticas que não chegaram a preencher totalmente o seu anseio de eternidade.

Foi em 1970 que se sentiu em plena euforia com a publicação de O nariz do morto, um de seus primeiros livros de memórias, em que regurgitavam citações, comentários, retratos contemporâneos, revelações surpreendentes, lembranças arrasadoras. O sucesso do livro levou-o a se aprofundar no filão confessional, publicando em 1972 O anel e em 1974 O livro de Antônio, em que relata, entre outras peripécias, sua ''aventura em Paraty'', navegando a bordo de uma lancha adoidada. Never a dull moment ...

Convivia com sua espantosa gordura sempre num clima de arejado humor. Numa viagem de avião, fora obrigado a ocupar duas poltronas e teve enorme dificuldade em entrar e sair do táxi que o transportou ao hotel. Dizia que costumava fazer uma pequena refeição (um franguinho!) antes de seguir para os jantares a que era convidado para não dar o vexame de exagerar na hora da refeição. Mas, apesar de seu tamanho Orson Welles, era homem fino à mesa, dono absoluto da conversação, encanto de todas as ilustres senhoras presentes. Nascera para ser conferencista.

Por algum tempo viveu na sede do PEN Club (do qual era vice-presidente), na Praia do Flamengo, mas sua grande realização como homem de saber foi em Faxinal do Céu, no Estado do Paraná, onde foi realizada uma interessante experiência na área da educação: uma pequena cidade universitária planejada em meio às araucárias para servir à formação de professores, que aí moravam freqüentando cursos e conferências de extensão cultural. Villaça foi dos mestres quem mais se distinguiu: sabia transmitir, além dos ensinamentos múltiplos com que a voracidade da leitura o cumulara, uma filosofia de vida meio zen, que fazia a mente de seus alunos, futuros professores.

De lá voltou com mais dois livros, que agregou à sua produção já bastante vasta: Os saltimbancos da Porciúncula, de 1996, e Diário de Faxinal do Céu, de 1998, em que nos dá, além do relato de sua experiência pedagógica, deliciosos flashes íntimos de personalidades como Juscelino e Drummond.

Pois lá se foi o nosso Villaça, um dos homens mais cultos do país, carregando toda a sua sabedoria sem precisar agora ocupar duas poltronas nem se espremer num táxi para o Além.

Villaça com Carlos Roberto e filho Carlos Eugênio na varanda do Pen Club (1987)

Villaça e a profª Miriam dos Santos no hotel em Santa Teresa (1982)

GRANDE VILLAÇA
Ivo Korytowski

Conheci o Villaça em 1992 quando ganhei um prêmio literário da UBE — Villaça fez parte da banca de jurados. Dias depois da premiação, telefonei para ele (eu já havia lido O nariz do morto), meio que inseguro: será que um escritor da fama do Villaça vai dar bola a um ilustre desconhecido como eu? Às primeiras palavras minhas, Villaça já se mostrou receptivo: "Ora viva! Ora viva!" Saudação que era a marca do Villaça. Combinamos almoço em restaurante do Catete.

Villaça era corpulento, devia ter uns 160 quilos, entrar no carro e sair, operação delicada. Eu, aspirante a escritor, diante de "monumento" da literatura, precisava impressionar, ostentar minha "cultura". Falei falei de um fôlego só. Na hora do cafezinho, Villaça educadamente deu a entender: aquele bombardeio deixara-o meio atordoado. Grande Villaça!

Em agosto Villaça comemorava o aniversário, sempre em algum restaurante. Villaça, apetite pantagruélico — desfia rosário de restaurantes e pratos suculentos em capítulo do Degustação: "Filé de peixe com molho de camarão, pirão de batata, filé mignon com fritas. Vinho português. Pêssego em calda com queijo. Ou torta. Licor." Vinha um monte de gente ao aniversário do Villaça, ala inteira do restaurante tinha que ser reservada, cada qual pagava sua conta.

Lembra-me o aniversário de 1995, numa Parmê que existiu alguns anos na Rua das Laranjeiras. Nos jornais, manchetes garrafais e fotos (horripilantes) do massacre de Vigário Geral. Anotei na agenda (eu que não tenho nem um por cento da memória fotográfica do Villaça) os nomes de meus companheiros de mesa: Sinésio Pires Cavalcanti, autor de Lembranças de um fuzileiro naval. Leandro Tocantins, autor de Formação histórica do Acre e de dois livros de memórias. Nilsson Pena (assim anotei na agenda, não sei se escrevi certo), cenógrafo, amigo de Bidu Saião, freqüentador dos saraus de Laurinda Santos Lobo. Incrível a capacidade de fazer amigos do Villaça. Quantos terão ido ao seu sepultamento? Eu próprio não fui — vim a saber de sua morte com dias de atraso.

Na época em que convivi com Villaça, residia ele na sede do Pen Clube (do qual era vice-presidente), à Praia do Flamengo. Passava os dias na biblioteca, cercado de livros, o paraíso de Borges (e de todo amante da literatura). "Aqui estou no mirante do Flamengo. Nunca antes morei assim tão perto do mar. Agora, estou no meu mirante solitário, diante do mar. E vejo a entrada da barra, o Pão de Açúcar". Visitei-o várias vezes no mirante.

Certa vez, eu e um amigo desatamos a questionar, como é que Deus permite tanto mal no mundo, tantas doenças, crimes, Holocausto? (Afinal, Villaça passara período da vida no convento, em busca de Deus). Ao cabo de nossa diatribe, Villaça simplesmente retruca: "Vocês estão querendo fazer o inventário do mundo!" E propôs que descêssemos a paragens mais amenas.

Mas o grande Villaça não estava alheio ao problema da teodicéia. No Degustação, escreve: "A presença do sofrimento no mundo sempre me pareceu uma provocação, um desafio. O sofrimento não é um problema: é um mistério." E mais adiante prossegue: "Eu me pergunto: como afirmar que Deus é bom, quando entramos num hospital? Como falar do amor de Deus a uma mulher cujo filho é idiota, simplesmente porque a mãe contraiu rubéola durante a gravidez? Como falar de Deus a este rapaz que a poliomielite transformou num paralítico? Como falar do amor diante de um campo de concentração? Diante de um hospício? Diante da morte?"

Sua memória, prodigiosa. Eu gostava de levá-lo a passear em meu automóvel pela Zona Sul do Rio de Janeiro. Passávamos por um edifício e o Villaça lembrava: aqui morou (digamos) Carlos Lacerda no período de não sei quando. E assim ia ele apontando as ex-moradas terrenas de homens ilustres que agora habitavam a morada celeste. Villaça dispensava as agendas. As anotações. O computador. A Villaça, bastavam-lhe a velha máquina de escrever e a memória.

Sua pobreza, franciscana. Villaça, tipo do homem que dedicou a vida às coisas do espírito. "A grande experiência da literatura é a experiência da liberdade. A literatura para mim é a liberdade. Ser escritor é, antes e acima de tudo, uma posição diante da vida." Não constituiu família, não amealhou bens. Parecia-me que usava sempre o mesmo terno, surrado — ou seriam vários ternos de mesma aparência? À semelhança do Quintana, morou anos num hotel, o Hotel Bela Vista, em Santa Teresa.

Por ironia do destino, quase ao final da vida, em 2003, ganhou um prêmio polpudo, o Prêmio Machado de Assis, da ABL, pelo conjunto da obra. Apesar da bolada, terminou os dias "despejado" (?) do Pen Clube, em Casa de Repouso no Caju, vítima de depressão... Onde foi parar aquela dinheirama toda?

Em fevereiro de 1996, Villaça telefonou, convidou-me para almoçar, e frisou: hoje eu pago a conta. Estava irritado, inseguro. Por dinheiro (contou-me) aceitara ficar mês e meio enfurnado numa universidade no interior do Paraná pra proferir uma série de palestras a professores — "uns crédulos, acreditam em tudo que a gente diz".

O mês e meio na Universidade do Professor, em Faxinal do Céu, Paraná, "pequena cidade universitária planejada em meio às araucárias para servir à formação de professores" (nas palavras de Ivo Barroso na bela crônica-necrológio sobre o Villaça), acabou se estendendo por alguns anos (com idas e vindas), e aquela acabaria se revelando (volto a dar a palavra ao meu xará) "sua grande realização como homem de saber".

Escreveu Affonso Romano de Sant'ana em crônica-depoimento sobre Faxinal do Céu: "Num dos intervalos de conferências fui visitar Antonio Carlos Villaça, essa viva e modesta memória de nossa cultura. Ele sabe tudo, todos os detalhes não só das obras mas dos próprios autores. É a História viva, contada fraternalmente."

Escreveu Villaça em Diário de Faxinal do Céu: "Aqui é tão tranqüilo, tão sereno, tão quieto. Apenas o canto harmonioso dos pássaros. Apenas. E há os grilos, mais insistentes no inverno. E há a grande paz silenciosa da mata."
Repouse em paz, amigo Villaça!

Antonio Carlos Villaça e o acadêmico Marcos Almir Madeira, no Pen Club

Com Carlos R. Carvalho em 2002, "já debilitado, vislumbrando o fim, e entristecendo" (segundo depoimento do próprio Carlos)

POETAS DE A A Z:

ALEXEI BUENO


Alexei Bueno é autor (entre várias outras obras de peso) da maravilhosa (e recém-lançada) Uma história da poesia brasileira. Precisa dizer mais? Precisa: a revista Poesia Sempre, da Biblioteca Nacional, incluiu Alexei no rol dos 20 melhores poetas brasileiros vivos no final do século XX.

SETE POEMAS DA LAPA

LAPA

Nesta casa antiga,
Sob estas volutas,
Como ri com as putas
Entre uma e outra briga.

Como virei copos
E extingui charutos,
Discuti com brutos,
Vaiei misantropos.

Urinei nas pias,
Vomitei nas portas,
Com passadas tortas
Vi nascer os dias.

Velha, velha casa,
Como ainda és a mesma.
(Não tens dentro a lesma
Que nos funda e abrasa.)

          19-9-2004

I. M. L

Na porta do boteco
Com flores de coroas
Que oferta às moças boas
Ele ergue o seu caneco

De alumínio gravado
Com o escudo do seu time,
E conta o último crime,
E olha o bordel fechado.

Sorrindo, no balcão,
Beberica e, prudente,
Fita a vaga onde, em frente,
Deixou o rabecão.

Então, se há um que lhe peça
Que lembre do seu carro,
Diz, dando um grosso escarro:
— Defunto não tem pressa.

          21-9-2004

FAIT DIVERS

Carlinhos, o segurança,
O terror da Mem de Sá,
Trocou tiros num mafuá
Com o Fuinha, em plena dança.

O Fuinha perdeu a perna.
Depois morreu, no hospital.
O membro encaixou bem mal
No corpo, o que até consterna.

Carlinhos, pior que o Fuinha,
Pagou na hora o seu erro.
Três tiros. No seu enterro
Só foi a sua mãezinha.

          21-9-2004

GLÓRIA

Bêbado, às duas da manhã,
Parei na loja de ovos e aves.
Subi na grade e, em grande afã,
Cacarejei, de ecoar nas traves.

Os galos todos acordaram
Cheios de brio e, num só coro,
Com seu cacarejo enfrentaram
O meu, mais forte, mais sonoro.

Saltavam todas as galinhas.
Penas voavam loja afora.
Ligavam luzes nas vizinhas
Casas. Parti. Criara a aurora.

          21-9-2004

LÁZARO

Cobrimos o mendigo que dormia
Com jornais, os jornais do extinto dia.

De fora só ficaram os sapatos
Cambaios, já roídos pelos ratos.

Acendemos então, junto, uma vela
E arengamos na luz branca e amarela.

Um círculo de povo já envolvia
Nosso pranto, e o pinguço nem tremia.

Volveu por fim do reino dos defuntos.
Debandada! E ele riu. Ríamos juntos.

          21-9-2004

NOTURNO

Sobre os seus saltos, sob a lua cheia,
Os travestis desfilam como garças,
Farsa carnal em meio às outras farsas
Que o mundo absurdo no aéreo chão semeia.

São deusas-mães usando liga e meia,
De ancas imensas, madeixas esparsas,
De enormes seios, piscando aos comparsas,
Buscando otários para a escusa teia.

São Vênus neolíticas chamando
Sombras confusas, entre os cães sem casa
E os negros ébrios. Seu barroco bando

Volveu, pulsante, dos tetos das grutas,
E anda na névoa, como numa vasa,
Rotundas popas balouçando enxutas.

          28-10-2004

TROTTOIR

Os homens vão e vêm na íris das putas
E nenhum pára.
Nenhum ouve suas vozes dissolutas
Nem as encara.

São inúteis as frases mais argutas
Ou sobre a cara
A tinta, o pó. E a vida, quantas lutas,
Como está cara!

Ao longe os filhos, os filhos das putas
Com ladrões, ou pinguços, ou recrutas,
Na noite avara

Dormem cingindo palhaços birutas,
Bonecas louras relesmente hirsutas
Que a lua aclara.

          12-11-2004

ALICE MONTEIRO


ALICE DE CARVALHO MONTEIRO PENNA FIRME é jornalista e carioca da gema. Nasceu no Grajaú. Hoje é moradora de Copacabana, uma babel onde os contrastes se misturam democraticamente. Aos oito anos, escreveu sua primeira poesia intitulada "Pobreza", inspirada na tocante cena de um menino maltrapilho que vendia laranjas em uma estação ferroviária, quando viajava de férias, num trem de madeira para Montes Claros, região Norte de Minas Gerais. Nascia ali sua veia poética.

ANJOS SONÂMBULOS

Beijo de sal e tabaco
na boca da noite.
Arrepio.
Corpo exilado de noites insones,
muito além da lembrança
do que foi.
Amor da noite desconhecida,
secreta noite
dos prazeres da carne.
Desejo,
despudorado silêncio.
E na boca da noite
o grito do gozo
ecoa sem pejo e desaba paredes.
Acorda o mundo,
desperta o pássaro
que canta na janela fechada.
Anjos e demônios
se abraçam em êxtase total.

ABISMOS

Desço ao abismo de mim
quando teu sexo
verte a vida
nas minhas entranhas.
Volto da viagem abissal
porque tuas mãos vigorosas
me arrancam do âmago da terra.
Misturo nossos fluidos
e neste momento difuso,
impreciso e solitário,
todas as criaturas estão em mim.
Sinto-me morrer um pouco,
seduzida e flagelada pelo
infinito prazer que me dás.
Mas este prazer agora
não é mais teu nem meu.
Não nos pertence.
É um prazer abundante
como a água dos mares.
E fecundo como a terra.
É um prazer que me embriaga
como se fosse uma bacante.
É um prazer embriagante
como a morte.
É como um deleite,
tão deslumbrante
como a própria vida.

ALPHONSUS DE GUIMARAENS


O outro nome máximo do Simbolismo brasileiro, Alphonsus de Guimaraens (1870-1921), forma latinizada de Afonso Henriques da Costa Guimarães, nasceu em Ouro Preto, filho de pai português, sendo sua mãe sobrinha materna de Bernardo Guimarães. Aos dezessete anos, período em que escreve os primeiros versos, começa a namorar sua prima Constança, filha do autor d'A escrava Isaura, que vem a falecer, tuberculosa, no final do ano seguinte, 1888. Esse fato marcará toda a obra do poeta, indubitavelmente o grande poeta da morte na literatura brasileira, e o maior poeta católico da língua portuguesa. (Alexei Bueno, Uma história da poesia brasileira)

HÃO DE CHORAR POR ELA OS CINAMOMOS... (na minha modesta opinião, o mais bonito soneto da língua portuguesa)

Hão de chorar por ela os cinamomos,
Murchando as flores ao tombar do dia.
Dos laranjais hão de cair os pomos,
Lembrando-se daquela que os colhia.

As estrelas dirão – “Ai! nada somos,
Pois ela se morreu silente e fria...”
E pondo os olhos nela como pomos,
Hão de chorar a irmã que lhes sorria.

A lua, que lhe foi mãe carinhosa,
Que a viu nascer e amar, há de envolvê-la
Entre lírios e pétalas de rosa.

Os meus sonhos de amor serão defuntos...
E os arcanjos firão no azul ao vê-la,
Pensando em mim: – Por que não vieram juntos?”

ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO

Convidada a entrar na casa, a poesia ficou
ESTÊVÃO BERTONI

O primeiro da família a se arriscar com a pena foi Bernardo, o tio-avô, no século 19. É o autor de A escrava Isaura. O pai, Alphonsus de Guimaraens, como ele, imortalizou-se nos livros escolares como um dos expoentes da poesia simbolista no país.

Ele, Alphonsus de Guimaraens Filho, foi também poeta. Vivia com a casa cheia de amigos obviamente poetas. Em Drummond, tinha um grande amigo. Bandeira foi seu padrinho de casamento.

O matrimônio, por sinal, foi um encontro das letras. Conheceu a mulher ao comemorar, na confeitaria Papi, em Belo Horizonte, um prêmio que recebeu por seu primeiro livro, Lume de estrelas. O local da festa era de propriedade da família dela, também de escritores.

Natural de Mariana (MG), Alphonsus formou-se em direito, em BH. Nos anos 50, foi trabalhar no gabinete do presidente Juscelino Kubitschek. Em 1972, em Brasília, aposentou-se como procurador do Tribunal de Contas da União e partiu definitivamente para o Rio, onde surgiu a rua Lume de Estrelas.

Publicou 25 livros. Mesmo muito caseiro, como lembra o filho, gostava de freqüentar os "sabadoyles", encontros de escritores organizados pelo bibliófilo Plínio Doyle.

Internado com pneumonia, morreu aos 90, na quinta [28/8/08], no Rio. Tinha mal de Parkinson. Deixa três filhos e quatro netos. Nos últimos anos, corrigiu os textos dos netos Augusto e Domingos. São também poetas. (FSP, Obituário, 3.9.2008)

NESTE PRATO

Neste prato tão sujo nada resta
a não ser a memória de uma festa
de ontem, ou de anteontem, ou deste dia.
Eu me lembro da boca: ela comia,

os dentes ágeis, fresca e sensual.
Eu bem me lembro dela, por sinal
mais do que devorante, devorada
por beijos, rubra e amante, rubra e amada.

Neste prato tão sujo resta vida,
e não só morte. E não só perdida
lembrança, ou desalento, ou coisa assim.

Não é princípio, nem será o fim,
intato, sem fissuras tão mortais.
Podem quebra-lo: não se acaba mais.

(Do livro Todos os sonetos, Edições Galo Branco, 1996)

QUANDO EU DISSER ADEUS...


Quando eu disser adeus, amor, não diga
adeus também, mas sim um "até breve";
para que aquele que se afasta leve
uma esperança ao menos na fadiga

da grande, inconsolável despedida...
Quando eu disser adeus, amor, segrede
um "até mais" que ainda ilumine a vida
que no arquejo final vacila e cede.

Quando eu disser adeus, quando eu disser
adeus, mas um adeus já derradeiro,
que a sua voz me possa convencer

de que apenas eu parti primeiro,
que em breve irá, que nunca outra mulher
amou de amor mais puro e verdadeiro.

(Do livro Poemas reunidos, José Olympio, 1960)

AMÉLIA ALVES


Amélia (Maria de Almeida) Alves é poeta e educadora nascida em Campos dos Goytacazes, onde, após a graduação em Letras foi co-fundadora do Grupo Uni-Verso, pelo qual publicou Vácuo e Paisagem (poesia e prosa poética).

No Rio de Janeiro, fez mestrado em Educação na área de Tecnologia Educacional UERJ), especializando-se em TV Educativa e Educação à Distância, exerceu o magistério universitário nas disciplinas Literatura Infantil, Estética da Expressão Escrita e Teoria da Educação, ao mesmo tempo em que publicou artigos e ensaios em periódicos e revistas especializadas.

Em 2005 publicou seu segundo livro, Atrás das borboletas azuis (Oficina do Livro). Poema abaixo inédito, gentilmente fornecido pela poeta.

CONFIDÊNCIA
     A Drummond

Sou de Campos.
Por isso sou áspera
Como a textura
Da folha da cana.

Nasci em Campos.
Por isso sou plana
tal a plenitude
da planície.

Sou planície.
Por isso sou fluida
como o melado
escorrido entre ferros
e mãos encardidas de sol
e escravidão.

Sou moenda.
Por isso sou seca
como o bagaço
largado pelos currais.

Sou dos Campos dos Goytacazes.
Por isso quero beira de rio — Paraíba,
e vento nordeste
assanhando a cabeleira
dos canaviais.

ANDERSON BRAGA HORTA


Anderson Braga Horta, poeta, contista, crítico literário, tradutor de poesia, nasceu em Carangola, MG, em 1934. Diplomou-se em Direito em 1959, foi jornalista, professor, assessor legislativo da Câmara dos Deputados. Reside há longos anos em Brasília. (Dados e poema obtidos na revista Poesia para todos n. 4).

AFÃ


A vida, essa experiência deletéria
do Ser, que na existência se complica.

A vida, esse impossível que na etérea
face do Cosmos uma ruga implica.

A vida, este sofrer, esta miséria
que uma esperança absurda santifica.

A vida, esta ilusão, maia, aura, aérea
construção que no engano se edifica.

A vida, ávida vide em que a venérea
ave da áurea ventura nidifica.

A vida, esse esplender, essa cinérea
dor de ter sido luz que o céu abdica.

A vida, essa aventura da matéria,
que, no afã de ser Deus, nos multiplica.

ARTUR DA TÁVOLA


Artur da Távola (pseudônimo de Paulo Alberto Monteiro de Barros) é escritor, jornalista (escreve uma coluna para o jornal O Dia), melômano (excelentes seus programas de rádio de música clássica - há anos escreve um livro sobre o compostior romântico Schumann), ex-deputado federal e ex-senador (sempre votei nele; jamais qualquer escândalo maculou sua carreira) e atualmente reitor de uma universidade e diretor da Rádio Roquete Pinto.

A GARÇA

Irritante, egoísta e superior,
macérrima estafeta do sutil
exclamação arrogante e desafeta,
a garça indiferença é solidão.

O silêncio elegante e implacável
como o passo cauteloso de tísica.
Vaidosa, assexuada e impermeável
a garça geômetra é intolerante.

Curiosa, pragmática, pontual,
autista, longilínea, insuportável
em seu hierático olhar de rapina,
a garça não cogita, bica.

Estável, fléxil, sobeja pernalta,
álgido filete de brio, zen na meditação,
virgíneo clarão de um venábulo,
a garça é sina, seca e supina.

Glóssario:
venábulo: espécie de lança ou dardo para caça de feras
supino: alto, elevado, superior

AUGUSTO DOS ANJOS


Curioso, no mínimo, o que se passa com o poeta Augusto dos Anjos. Reconhecidamente, poeta de difícil, muito complexo, vocabulário, a exigir conhecimentos ora puramente científicos, ora filosóficos, para justa e ampla compreensão de seus escritos, poeta cujos versos acabam resultando, por vezes, herméticos e de sofrida "tradução", este mesmo poeta acaba se transformando em escritor dos mais conhecidos, muito lido, e, aqui o mais surpreendente, "decorado", declamado pelo público leitor (ou não).
[...]

Augusto dos Anjos é autor de um só livro, e de um livro que se chama Eu. Indicação curiosa para que vejamos nessa circunstância um autor que, evidentemente, deveria descrever um universo cujo centro era sua própria pessoa. E, interessante, este universo augusto-cêntrico é apresentado dentro de uma avassaladora maioria de versos decassílabos, de tal modo que poderíamos dizer que toda poesia de Augusto é feita em decassílabos, tão raros e tão pouco numerosos os que não têm dez sílabas. Ora, devemos notar que a leitura desses versos nos traz a todo momento a repetição das mesmas idéias. Só o gênio do poeta — dando roupagem a esse pequeno número de idéias — é que faz do livro um dos de maior aceitação entre todos os de poetas brasileiros, além de isolá-lo entre os demais de nossa literatura. (Ivan Cavalcanti Proença, Antologia poética de Augusto dos Anjos)

VENCEDOR

Toma as espadas rútilas, guerreiro,
E à rutilância das espadas, toma
A adaga de aço, o gládio de aço, e doma
Meu coração — estranho carniceiro!

Não podes?! Chama então presto o primeiro
E o mais possante gladiador de Roma.
E qual mais pronto, e qual mais presto assoma
Nenhum pôde domar o prisioneiro.

Meu coração triunfava nas arenas.
Veio depois um domador de hienas
E outro mais, e, por fim, veio um atleta,

Vieram todos, por fim; ao todo, uns cem...
E não pôde domá-lo, enfim, ninguém,
Que ninguém doma um coração de poeta!

AUGUSTO FREDERICO SCHMIDT


Saint-Beuve já reparara em pleno romantismo que existe uma poesia caracteristicamente dos gordos e a propósito de umas estâncias bem balançadas de Théophile Gautier exclamara num de seus “Lundis”: “Eis uns versos que um magro nunca poderia fazer.” A poesia de Augusto Frederico Schmidt é assim. Meiga, triste, neo-romântica, mas gorda. Às vezes tem um sabor a Casimiro de Abreu, a Gonçalves Dias, a Fagundes Varela. (Manuel Bandeira, "Um poeta que não quer cantar mais o Brasil" em Crônicas inéditas I)

Schmidt publicou O galo branco em 1948, memórias poéticas, datilografadas por João Conde. Publicara muitos textos no Correio da Manhã, no suplemento literário. Era um prolongamento da sua poesia neo-romântica. Sempre à sombra do enigmático, esquivo Galo Branco, um galo birmanês, elegantíssimo, esguio, longilíneo, solitário, que morava na varanda do apartamento da rua Paula Freitas 20, em frente ao restaurante Le Mazot, em que o poeta muitas vezes se refugiava, triste, ou angustiado, ou melancólico, ou naquelas crises de desespero que o assaltavam. Frágil e trágico poeta. (Antônio Carlos Villaça, "A memorialística brasileira" em Diário de Faxinal do Céu)

QUANDO EU MORRER

Quando eu morrer o mundo continuará o mesmo.
A doçura das tardes continuará a envolver as coisas todas,
Como as envolve agora neste instante.
O vento fresco dobrará as árvores esguias
E levantará as nuvens de poesia nas estradas —
Quando eu morrer as águas claras dos rios rolarão ainda
Rolarão sempre, alvas de espuma...
Quando eu morrer as estrelas não cessarão de se acender
no lindo céu noturno,
E nos vergéis onde os pássaros cantam — as frutas continuarão a ser doces e boas.
Quando eu morrer os homens continuarão sempre os mesmos
E se hão de esquecer do meu caminho silencioso entre eles.
Quando eu morrer os prantos e as alegrias permanecerão
Todas as ânsias e inquietudes do mundo não se modificarão.
Quando eu morrer a humanidade continuará a mesma
Porque nada sou — nada conto e nada tenho
Porque sou um grão de poeira perdido no infinito.
Sinto porém, agora, que o mundo sou eu mesmo
E que a sombra descerá por sobre o universo vazio de mim
Quando eu morrer...