A VOLTA DO PARAFUSO, de HENRY JAMES – UMA RESENHA

 


Henry James é um escritor sui generis, a meio caminho entre o realismo do final do século XIX e o modernismo do início do século XX. Nasceu em berço de ouro. Seu irmão, William James, além de pioneiro da psicologia nos Estados Unidos, criou uma escola filosófica quintessencialmente americana, o Pragmatismo. Henry foi um expatriado por quase toda a vida adulta, vivendo um ano em Paris e depois o resto da vida em Londres, onde se enturmou com a elite intelectual. Nunca se casou. Um ano antes de morrer, naturalizou-se britânico.

Henry é o criador de um clássico da literatura de fantasmas que qualquer aficionado do terror adora: A Volta do Parafuso, uma das obras mais adaptadas da história da literatura: virou balé, virou ópera, virou peça teatral na Broadway, ganhou várias versões no cinema, virou série da Netflix.

O sucesso de A Volta do Parafuso no cinema nos leva a uma reflexão sobre a relação entre a sétima arte e a literatura. O cinema, em certo sentido, é a salvação da literatura. Ao extrair da obra literária a sua essência – trama, personagens, diálogos, drama, ambiência – permite que a literatura rompa os limites de um público mais letrado, mais intelectualizado e chegue ao grande público. Você se emociona com a história de Romeu e Julieta sem ter que quebrar a cabeça com cada expressão e cada trocadilho e cada alusão e cada metáfora de um inglês quatro séculos distante do contemporâneo. Você se emociona com o amor de Swann sem ter que desbastar as frases intermináveis e divagantes da escrita do Proust (sobre isto fiz um vídeo que você pode ver no YouTube). E você curte as aparições dos fantasmas de A Volta do Parafuso sem ter que quebrar a cabeça com o texto às vezes enrolado do James, por exemplo (e olha que esta é uma frase curta, porque também não quero que o artigo fique longo demais):

It sufficiently stuck out that, by tacit little tricks in which even more than myself he carried out the care for my dignity, I had had to appeal to him to let me off straining to meet him on the ground of his true capacity.

(Estava bem claro que, por meio dos pequenos artifícios tácitos com que ele, mais ainda do que eu, cuidava de preservar minha dignidade, foi-me necessário apelar a Miles para que não continuasse a exigir de mim o esforço necessário para igualar-me a ele nos termos de sua verdadeira capacidade.)

Eu não sou o único a achar a prosa do James um tanto enrolada. Sam Jordinsson, em I can’t bear Henry James, que achei na Internet, diz que “wading through his books seems to me to be the literary equivalent of wearing a very stiff and uncomfortable shirt simply in order to attend an endless speech given by a dull and pompous old headmaster” (“percorrer seus livros me parece o equivalente literário a trajar uma camisa muito engomada e desconfortável simplesmente para ouvir um discurso interminável feito por um velho diretor de escola banal e pomposo”) Um outro artigo, intitulado “Henry James: Worst Writer Ever?”, no blog Scarriet, diz: “Poor Henry James. He took so long to say something, and when he finally said it, there was nothing there.” (“Pobre Henry James. Levava tanto tempo para dizer alguma coisa, e quando enfim dizia, não havia nada lá.”).

A Volta do Parafuso também é uma das obras literárias que mais geraram interpretações acadêmicas e da crítica literária, devido a sua suposta ambiguidade: segundo os entendidos, não fica claro se os fantasmas existem mesmo ou são criações da cabeça doentia da governanta. Uma ambiguidade comparável à do Dom Casmurro, do nosso Machado, em que não se sabe se o adultério ocorreu mesmo ou é obra da cabeça ciumenta do Bentinho. Eu que sou uma pessoa objetiva nunca tive dúvida de que o autor deixa bem claro que Capitu cometeu, sim, a traição. Para mim, achar ambiguidade no texto claríssimo do Machado é procurar chifre em cabeça de cavalo. No caso do Henry James, minha opinião é a mesma.


Primeiro, temos que levar em conta a época em que foi publicada a história, 1898, em plena era vitoriana, quando as pessoas, num mundo pré-eletricidade, vivendo em ambientes mal iluminados por velas e lamparinas, acreditavam, sim, em fantasmas. O que aconteceu é que, logo no início do século XX, a onda avassaladora do freudianismo, querendo interpretar tudo – até a história da Chapeuzinho Vermelho – à luz da repressão sexual, caiu como uma luva para a protagonista da história do James, e aí inventaram de dizer que a governanta era mentalmente perturbada por ser sexualmente reprimida. Pra mim é botar chifre em cabeça do cavalo.

Existem várias provas de que se trata de uma história de fantasmas e não de delírio psiquiátrico. Em primeiro lugar, em seus Notebooks (que são suas anotações depois reunidas em livro), James indica que, ao escrever a obra, teria se inspirado em uma história real contada pelo Arcebispo de Canterbury. Além disso, James escreveu outras histórias de fantasmas que não dependiam da imaginação do narrador, por exemplo, Owen Wingrave. Mas a prova mais clara de que é uma história de fantasmas (e não de um delírio) é o diálogo que ocorre na narrativa de moldura que abre o livro e que é omitida nas versões para o cinema.

Antes preciso explicar o que é uma narrativa de moldura. É uma historinha que, à semelhança da moldura de um quadro, enquadra a história principal do livro. O exemplo clássico são As Mil e Uma Noites, onde a narrativa de moldura é a história do sultão que matava uma mulher por noite até deparar com Shehazade e se encantar com suas narrativas. A Volta do Parafuso começa com um prólogo onde um grupo de pessoas reunidas em torno da lareira, na véspera do Natal, comenta um caso tenebroso de uma aparição que surgiu para uma criança, an appearance, of a dreadful kind, to a little boy sleeping in the room with his mother and waking her up in the terror of it (uma aparição, das mais terríveis, testemunhada por um menininho que dormia no quarto com a mãe e que a acordou apavorado). Um dos participantes, o Douglas, diz que conhece uma história ainda pior que, em vez de uma só criança, envolve duas. É aí que entra a expressão “turn of the screw”, “volta do parafuso”, que dá título ao livro, e que voltará a aparecer mais para o final. Diz Douglas que Nobody but me, till now, has ever heard. It's quite too horrible [...] It's beyond everything. Nothing at all that I know touches it (“ninguém até então ouviu essa história. É horrível demais. [...] Supera todas as outras. Nada que eu conheço se compara a ela”) Se fosse uma mera história de alucinação, e não de fantasmas reais, o Douglas não faria esta onda toda.

Outra prova de que os fantasmas são reais é que, quando a governanta descreve para Mrs. Grose as características de uma aparição masculina, esta reconhece tratar-se do ex-empregado Peter Quint, falecido. Se aquela aparição fosse puro delírio, não corresponderia a uma pessoa real que a babá nunca conheceu. No filme de 1951, cujo roteiro foi reescrito por Truman Capote para se adotar ao enfoque psicológico escolhido pelo diretor, ela vê uma fotografia de Quint no sótão, mas esta cena não existe no livro. Tem um trecho no início do Capítulo 8 do livro que reforça o que estou dizendo: how, if I had ‘made it up’, I came to be able to give, of each of the persons appearing to me, a picture disclosing, to the last detail, their special marks (“como, caso eu estivesse inventando, poderia ter esboçado retratos que revelavam cada detalhe e cada característica das pessoas que me apareceram”)

Li o texto no original inglês mas cotejei com duas traduções. A tradução de Paulo Henriques Britto para a Companhia das Letras é mais fiel à estrutura do inglês. A de Guilherme da Silva Braga para a editora L&PM é mais livre, na tentativa de deixar o texto mais claro. Na Nota do Tradutor, ele aborda as dificuldades do texto: “uma obra de sintaxe rebuscada, que por vezes beira o barroco”. Mas as duas traduções são boas de ler. No texto deste vídeo publicado no meu blog eu dou exemplos das duas traduções. 

TEXTO ORIGINAL

To hold her perfectly in the pinch of that, I found I had only to ask her how, if I had "made it up," I came to be able to give, of each of the persons appearing to me, a picture disclosing, to the last detail, their special marks—a portrait on the exhibition of which she had instantly recognized and named them.

TRADUÇÃO DO PAULO HENRIQUES BRITTO

Para fazê-la comprometer-se por completo quanto a esse ponto, constatei, bastava perguntar-lhe como, se eu havia “inventado” a história, me fora possível apresentar, para cada uma das pessoas que me aparecera, uma imagem que revelava, até o mínimo detalhe, suas características específicas – um retrato com base no qual, ao lhe ser exibido, ela pôde reconhecê-las e nomeá-las no mesmo instante.

TRADUÇÃO DO GUILHERME DA SILVA BRAGA

Para conduzi-la até este ponto, bastou lhe perguntar como eu – caso estivesse inventando – poderia ter esboçado retratos que revelavam cada detalhe e cada característica das pessoas que me apareceram; que possibilitaram meu reconhecimento imediato, a ponto de a sra. Grose os poder nomear.

Embora o título original seja, The Turn of the Screw, A Volta do Parafuso, algumas traduções portuguesas preferiam acrescentar um “outra”, A Outra Volta do Parafuso, para que não fique a impressão de que se trata do verbo voltar, como em A Volta do Boêmio. Algumas pessoas compram A Outra Volta do Parafuso achando que é uma continuação de A Volta do Parafuso e quebrem a cara ao constatarem que se trata do mesmo livro. Segundo o dicionário Oxford, a turn of the screw é “an additional degree of pressure or hardship added to a situation that is already extremely difficult to bear” (“um grau adicional de pressão ou dificuldade acrescentado a uma situação que já é extremamente difícil de suportar.”)


O LIVRO DOS FRAGMENTOS, de ANTONIO CARLOS VILLAÇA – UMA RESENHA

 


Ingressar num convento constitui uma escolha de vida radical, que requer uma vocação fora do comum: você abre mão de casar, procriar, ter dinheiro, ter sua casa, seu carro, sua profissão; faz votos, de silêncio, de pobreza, de obediência, e vai em busca do mais esquivo, mais fugidio dos seres: Deus. Entra no mosteiro para nunca mais sair de lá. É raro, improvável a gente deparar com alguém que foi para o mosteiro, virou monge, e aí deu o estalo, não era bem isto que eu queria, e saiu. Até porque deixar um mosteiro imagino que seja complicado, como sair da máfia, do tráfico, eles tentam dissuadir você de sair, imagino. Mas Antonio Carlos Villaça sentiu o chamado da vocação, ingressou no Mosteiro de São Bento no Rio de Janeiro, não se adaptou lá dentro, foi embora e nos revelou o dia-a-dia, o ramerrão da vida monástica ao dar a lume, em 1970, seu livro que se inscreve entre as obras-primas da literatura memorialística brasileira, O nariz do morto, ombreando com outros grandes autores de memórias como Gilberto Amado, Afonso Arinos de Melo Franco e Pedro Nava.

Entre este ponto alto de sua produção literária e sua derradeira obra, O livro dos fragmentos, publicado postumamente pela Civilização Brasileira graças ao empenho do crítico literário André Seffrin (já que, no final da vida, Villaça, abandonado num asilo de velhos no Caju, sofria de depressão e perdera toda iniciativa), medeiam 35 anos. Digamos que é seu testamento intelectual. É como se dissessevejam, vocês, quem fui, grande ensaísta, pensador católico de renome, conferencista pelos quatro cantos do país... fui a tudo que é palestra, li livros e mais livros, em francês, em português, fui aos enterros das pessoas eminentes, ouvi os discursos dos grandes oradores, privei das mesas mais refinadas, entrevistei o grande MaritainDediquei a vida à reflexão, à leitura, contemplação, convivência, à busca de um sentido para a vida... Em suma, nas suas próprias palavras: “Sou um giróvago. Um itinerante. Um peregrino. Sempre en route. Sempre à procura de novos caminhos, no vasto mundo.”

É como se dissesse estas coisas. Ele que, na reta final da jornada da vida, sofreu dois rudes golpes. Viu o dinheiro do prêmio Machado de Assis ganho em 2003, única quantia polpuda que chegou a obter na sua vida materialmente tão franciscana, bloqueado por uma ação trabalhista movida por um enfermeiro, e viu-se despejado de seu “mirante” na sede do Pen Clube  no nono andar de um prédio da Praia do Flamengo, onde passava o dia na biblioteca recebendo pessoas (tinha sempre alguém o visitando)  e degredado para os confins do asilo lá no Caju, onde quase ninguém mais o visitou. E onde ele definhou.

O livro dos fragmentos é exatamente o que promete o título (não há propaganda enganosa): sucessão de fragmentos de reminiscências, quase um fluxo de consciência joyceano jorrando de sua prodigiosa memória. Reminiscências, na maior parte, da cena intelectual, já que Villaça teve este condão de conviver com a intelectualidade, e os intelectuais gostavam de interagir com ele. Pelo livro vão desfilando escritores, políticos, diplomatas, religiosos, uma procissão. Villaça conheceu todo mundo. Seu aniversário, em restaurantes, atraía uma “multidão”.

Vemos passar pelas páginas (entre muitos, muitos outros): Jaime Ovalle, “boêmio de Deus” (Villaça prima pelas caracterizações sintéticas, precisas), Abade Tomás Keller, “o abade desequilibrado”, André Seffrin, “tão sério, tão estudioso. Tão elite e tão povo, ao mesmo tempo”, Waldir Ribeiro do Val, “que buscou sempre a poesia e a encontrou”, Augusto Frederico Schmidt, “íntimo de ministros, de magnatas, de presidente. E desejoso de ser apenas um mendigo”, José Lins do Rego, que “tinha paixão pelo Flamengo”, Cyro dos Anjos, “o melhor anfitrião do mundo”, Marco Lucchesi, “um humanista, um erudito, um sábio renascentista”, o talentoso Edmílson Caminha, etc. etc. etc.

Villaça é um exímio cultor do estilo modernista da frase curta, sem esparramação, como bem observa Seffrin no texto das orelhas (“linguagem solta, leve, à vontade, quase telegráfica”). Escreve com lirismo, com sentimento, com coração, num (segundo Edgard Leite) estilo muito particular de frases curtas que era muito bonito de se ler, muito difícil de ser imitado, porque tinha uma métrica, uma melodia, um movimento muito próprio. A certa altura, atinge o paradoxo: O erótico é profundamente místico. Nada mais religioso do que um prostíbulo. O prostíbulo me lembra um convento. Encerro esta apreciação de O livro dos fragmentos com um belo trecho onde Villaça descreve o mar (porque eu também gosto de sentir a presença marinha, o contato da água salgada):

Mar desconhecido, mar sempre desconhecido.

É sempre novo, o mar. O mar é estranho. O mar é desafiador. Abyssus abyssum invocat. O abismo atrai o abismo. Mar abissal. Mar sempre novo. mar que me assusta. E ali está ele, o mar. Pertinho de mim. O mar poderoso, o mar violento, o mar insaciável. O mar que se move sempre. Vai e vem, enigmático.

Vi o Mediterrâneo. Vi o Atlântico. Vi o Pacífico. Vi o mar. E agora o revejo, o mar, o mar desconhecido, o mar da Praia de Leste, sempre novo. [...]

Vejo o mar. Em silêncio. Da minha varanda, da minha poltrona, vejo o mar tão perto. Ele me fala, noite e dia. À noite, ouço a voz do mar, o ruído surdo e envolvente do mar, o rugido do mar. O mar nos fala. O mar nos chama. [...] (pp. 117-118)

Texto de Ivo Korytowski