CÍRCULO VICIOSO, poema de MACHADO DE ASSIS


Filho de pais humildes - costureira branca nascida nos Açores e operário pintor de casas e dourador mulato forro (não-escravo), Machado de Assis nasceu no Morro do Livramento, Centro do Rio, na época local da chácara da viúva de Bento Barroso Pereira (daí a Ladeira do Barroso). Autodidata, nunca cursou a universidade, o que não o impediu de tornar-se exímio tradutor, teatrólogo, crítico literário, jornalista, contista, folhetinista, romancista, poeta, dedicado funcionário de carreira do Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas e, na maturidade, fundador e presidente da Academia Brasileira de Letras. Vida metódica e visão do mundo cética (lia Schopenhauer), raramente viajou para fora do Rio de Janeiro, cenário de sua obra. (Do meu livro A arte da escrita.)

CÍRCULO VICIOSO

Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:
— "Quem me dera que fosse aquela loura estrela,
Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!"
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:

— "Pudesse eu copiar o transparente lume,
Que, da grega coluna à gótica janela,
Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela!"
Mas a lua, fitando o sol, com azedume:

— "Mísera! tivesse eu aquela enorme, aquela
Claridade imortal, que toda a luz resume!”
Mas o sol, inclinando a rútila capela:

— "Pesa-me esta brilhante auréola de nume...
Enfara-me esta azul e desmedida umbela...
Por que não nasci eu um simples vaga-lume?"


Glossário:
capela = abóbada
nume = divindade
umbela = dossel

MANOEL DE BARROS


Manoel Wenceslau Leite de Barros nasceu em Cuiabá em 1916. Publicou seu primeiro livro de poesia, Poemas concebidos sem pecado, em 1937. A partir de 1960, passou a trabalhar como fazendeiro e criador de gado em Campo Grande, MS. Ao longo das décadas de 1980 e 1990 veio sua consagração como poeta. Sobre Manoel de Barros, escreve Ronaldo Rothgiesser em A clínica poética, uma espécie de manual/manifesto da Confraria dos Bocós: "Manoel é bocó por excelência, ser delirante por natureza e por vocação. Manoel delira de à brinca, padece de um delírio doce e sublime. Nós, confrades delirantes, queremos plantar as sementes da artície, da traquinagem e da brincadeira pois acreditamos piamente que os delírios terapeutam. [...] O que a confraria quer é botar na rua tudo aquilo que Manoel de Barros botou no livro."

UMA DIDÁTICA DA INVENÇÃO

I

Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:
a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca
b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
Etc.
etc.
etc.
Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.

II

Desinventar objetos. O pente, por exemplo.
Dar ao pente funções de não pentear. Até que
ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou
uma gravanha.
Usar algumas palavras que ainda não tenham idioma.

III

Repetir repetir – até ficar diferente.
Repetir é um dom do estilo.

IV

No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava
escrito:
Poesia é quando a tarde está competente para dálias.
É quando
Ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o homem faz sua primeira lagartixa.
É quando um trevo assume a noite
E um sapo engole as auroras.

V

Formigas carregadeiras entram em casa de bunda.

VI

As coisas que não têm nome são mais pronunciadas
por crianças.

VII

No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a voz dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio.

[...]

Glossário:
gravanha: m.q. caruma ('folha de pinheiro seca')

MANUEL BANDEIRA


Manuel Bandeira, desenganado como tuberculoso ainda no final da adolescência, conseguiu salvar-se graças a uma exemplar disciplina e a uma renúncia cruel a vastas possibilidades vitais de um homem saudável. Surgia o poeta, que, em 1917, publicava A cinza das horas, livro diretamente ligado ao último Simbolismo, em que as influências portuguesas e francesas se uniam a uma sensibilidade muito pessoal e a um ouvido dos mais agudos e, sobretudo, dos mais sutis da poesia brasileira. Depois de Carnaval, converte-se definitivamente ao verso livre em Ritmo dissoluto, ao qual se seguiram Libertinagem e o admirável Estrela da manhã, talvez o momento fulcral de sua obra. Bandeira, dono de imensa cultura literária e infalível bom gosto, aproveitou do Modernisno tudo o que esse lhe podia dar, sem cair jamais nos maneirismos da escola. (Alexei Bueno)

DESESPERANÇA

Esta manhã tem a tristeza de um crepúsculo.
Como dói um pesar em cada pensamento!
Ah, que penosa lassidão em cada músculo...

O silêncio é tão largo, é tão longo, é tão lento
Que dá medo... O ar, parado, incomoda, angustia...
Dir-se-ia que anda no ar um mau pressentimento.

Assim deverá ser a natureza um dia,
Quando a vida acabar e, astro apagado, a Terra
Rodar sobre si mesma estéril e vazia.

O demônio sutil das nevroses enterra
A sua agulha de aço em meu crânio doído.
Ouço a morte chamar-me e esse apelo me aterra...

Minha respiração se faz como um gemido.
Já não entendo a vida, e se mais a aprofundo,
Mais a descompreendo e não lhe acho sentido.

Por onde alongue o meu olhar de moribundo,
Tudo a meus olhos toma um doloroso aspecto:
E erro assim repelido e estrangeiro no mundo.

Vejo nele a feição fria de um desafeto.
Temo a monotonia e apreendo a mudança.
Sinto que a minha vida é sem fim, sem objeto...

— Ah, como dói viver quando falta a esperança!

(De A cinza das horas, primeiro livro publicado pelo autor, na sua fase simbolista, em 1917)

A SEREIA DE LENAU

Quando na grave solidão do Atlântico
Olhavas da amurada do navio
O mar já luminoso e já sombrio,
Lenau! teu grande espírito romântico

Suspirava por ver dentro das ondas
Até o álveo profundo das areias,
A enxergar alvas formas de sereias
De braços nus e nádegas redondas.

Ilusão! Que sem cauda aqueles seres,
Deixando o ermo monótono das águas,
Andam em terra suscitando mágoas,
Misturadas às filhas das mulheres.

Nikolaus Lenau, poeta da amargura!
Uma te amou, chamava-se Sofia.
E te levou pela melancolia
Ao oceano sem fundo da loucura.

(Lenau foi poeta austríaco da primeira metade do século XIX; do livro Carnaval, o segundo do autor, publicado em 1919)

MURMÚRIO D'ÁGUA

Murmúrio d'água, és tão suave a meus ouvidos...
Faz tanto bem à minha dor teu refrigério!
Nem sei passar sem teu murmúrio a meus ouvidos,
Sem teu suave, teu afável refrigério.

Água de fonte... água de oceano... água de pranto...
Água de rio...
Água de chuva, água cantante das lavadas...
Têm para mim, todas, consolos de acalanto,
A que sorrio...

A que sorri a minha cínica descrença.
A que sorri o meu opróbrio de viver.
A que sorri o mais profundo desencanto
Do mais profundo e mais recôndito em meu ser!
Sorriem como aqueles cegos de nascença
Aos quais Jesus de súbito fazia ver...

A minha mãe ouvi dizer que era minh'ama
Tranquila e mansa.
Talvez ouvi, quando criança,
Cantigas tristes que cantou à minha cama.
Talvez por isso eu me comova a aquela mágoa.
Talvez por isso eu me comova tanto à mágoa
Do teu rumor, murmúrio d'água...

A meiga e triste rapariga
Punha talvez nessa cantiga
A sua dor e mais a dor de sua raça...
Pobre mulher, sombria filha da desgraça!

-- Murmúrio d'água, és a cantiga de minh'ama.

(De O ritmo dissoluto, terceiro livro do autor, publicado, junto com os dois anteriores, em 1924 sob o título Poesias).

MARIA THEREZA NORONHA


Maria Thereza Noronha, mineira de Juiz de Fora, considerada por Ivan Proença "uma das melhores poetas do Brasil-hoje" (eu a considero a melhor de todas). Formou-se em Direito pela Universidade Federal dessa cidade e trabalhou como advogada no BNH e Caixa Econômica Federal, no Rio de Janeiro. Participou do Grupo Edições de Minas, de poetas de Juiz de Fora. É aluna da Oficina Literária Ivan Proença. Livros: A Face na água (edição da autora, 1990), Pedra de limiar (Edições de Minas, 1993), A face dissonante (Oficina do Livro, 1995), "Alaúde", seção do livro Poesia em três tempos (Editora Bom Texto, 2001), O verso implume (Oficina do Livro, 2005) e 50 poemas escolhidos pelo autor (Edições Galo Branco, 2008).

Escreveu Carlos Machado no poesia.net: "Praticante de uma poesia essencialmente lírica, Maria Thereza Noronha pertence à estirpe de brilhantes vozes femininas em que se destacam nomes como Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa. O ponto comum entre essas três poetas está na singeleza do verso, que flui leve e musical."

CORES

A dama em preto e branco nos cinzentos
domingos. A amarelinha nos azuis.
Papagaios carmim rosa magenta
levantados no céu, braços em cruz.

Verdes anos. Do rio as pardacentas
águas acalentavam corpos nus.
Mexericas e ameixas cismarentas
ao pôr-do-sol filtravam ouro e luz.

Da imprensa marrom não se sabia.
Laranja, só a fruta merecia
o nome. Na inocência iam as horas.

O bispo em sua roupa solferino.
Nos dedos andarilhos dos meninos
o roxo corrompido das amoras.

Do livro O verso implume

O PROFETA

Chegou sem deixar claro porque vinha.
Viveu ao Deus-dará, lírio do campo
coberto de esplendor, como convinha
a um servo de Deus. Um pirilampo

alumiava suas noites pardas.
Dizia-lhe bom-dia um rouxinol.
Algum lampejo em sua face tarda
à visão de uma garça ou um girassol.

Alimentou-se de ervas e raízes.
Não teceu nem fiou. Tentado, acaso,
rechaçou o demônio e seus matizes.

Partiu como chegou, ao fim do prazo.
E, por anos de vida tão felizes,
lavrou o seu recado em ferro e brasa.

Do livro A face dissonante

CRUZADAS

Cruzei palavras com o vento.
Suspiros e folhas secas
vieram na horizontal
desinências, dissonâncias
na vertical
sussurros e amendoeiras
sopraram em diagonal
anáforas e amor-perfeito
na transversal.

Cruzei palavras com o vento.
Vieram textos canônicos
na vertical
pássaros brancos em bando
na horizontal
sonetos camonianos
no original
e sapos bandeirianos
no Carnaval.

Cruzei palavras com o vento.
Cartas Chilenas chegaram
na horizontal
Castroalvinas flutuantes
espumas na vertical
sermões de Padre Vieira
no areal
Machado de Assis é Aires
no memorial.

Com o vento cruzei palavras.
Vieram folhas em branco
na vertical
vagas estrelas da Ursa
na horizontal
a roca sem fuso ou uso
no vendaval
e um poema esfacelado
na marginal.

Do livro Poesia em três tempos

NO TEMPO EM QUE A CANÇÃO

A música eletrônica me faz nervosa e insone
centopéia no ar gritando com cem pernas
queria envelhecer ao som do gramofone
no tempo em que a canção era abafada e terna.

O tempo onde o mocinho vencia o bandido
e a vida em preto e branco alternava mistérios
vivia-se e ninguém falava ao telefone
e o pai levava o filho a ver o trem de ferro.

Vivia-se e ninguém falava em Microsoft
e a vida, delicada, punha os pés na terra
queria envelhecer ao som de um foxtrote
no tempo em que a canção era abafada e terna.

Do livro O verso implume

ÀS SEIS DA TARDE

Às seis da tarde sempre morro um pouco.
Vou-me embora com o dia. Mas, retorno
para à noite tecer finas mortalhas
onde me abrigarei – mas não tão cedo.

Pela manhã desperto cega e inflável
dependendo do sopro e o espaço em torno.
Devagar, abro os olhos: e aos detalhes
fluidos, olhar mais nítido concedo.

E face ao dia – colhê-lo ou carpi-lo?
Se um tanto tem de flor o outro de cinzas,
desfolhá-lo, indecisa ou despedi-lo?

Que tanto faz me traga as boas-vindas
ou se esconda e ofereça-se em sigilo.
Às seis da tarde morrerei à míngua.

Do livro 50 poemas escolhidos pelo autor

MIRIAN DE CARVALHO


Mirian de Carvalho é Doutora em Filosofia. Leciona Estética na UFRJ. Membro das Associações Brasileira e Internacional de Críticos de Arte. Foi minha colega na oficina literária Ivan Proença.

MORRO DO CASTELO


Espiando a cidade, o morro guardava personagens
de Machado, ao sono da esplanada. Moças
casadoiras em alvoroçada costura.

De manhã, as compras no mercado atiçavam o fogo,
e o cheiro da comida preparava o estômago
para o almoço. Guardado na bilha, o leite.

À hora do café da tarde, o bolo de milho
(de milho moído no quintal). Pão quente.
Pão cheiroso.

Dentro da cristaleira aguardava as visitas a garrafa
de licor. Carambolas na fruteira. E o mundo
resumindo-se na rotina.

E SE INDA HOUVER AMOR

E se inda houver amor eu me completo
ao dividir-me instante em epifania
nos limites da terra eu saberia
do infinito entender voz e dialeto.

Corpo-impulso guiando estes meus passos
escrevendo canção em chão de estrada
a desvelar-me os dons desta esperada
hora que pressentisse o que desfaço.

E se inda houvesse tempo de encontrar
o que dentro de mim ao evadir-se
ficou detido em lume pelo olhar:

doação que se fizesse distraída
motivo de envolver-me agora e sempre
paixão maior que a vida dividida.

Foto do Morro do Castelo de Augusto Malta.

OLAVO BILAC


"Com Raimundo Correia e Alberto de Oliveira, faz parte da famosa trindade dos grandes parnasianos. Grande artista do verso, adquiriu no seu último livro, Tarde, uma serenidade, uma altitude de imaginação e pensamento que ainda mais lhe valoriza a obra." (Álvaro Lins e Aurélio Buarque de Hollanda, Roteiro literário de Portugal e do Brasil).

VELHAS ÁRVORES

Estas velhas árvores, mais belas
Do que as árvores novas, mais amigas:
Tanto mais belas quanto mais antigas,
Vencedoras da idade e das procelas...

O homem, a fera, e o insecto, à sombra delas
Vivem, livres de fomes e fadigas;
E em seus galhos abrigam-se as cantigas
E os amores das aves tagarelas.

Não choremos, amigo, a mocidade!
Envelheçamos rindo! envelheçamos
Como as árvores fortes envelhecem:

Na glória da alegria e da bondade,
Agasalhando os pássaros nos ramos,
Dando sombra e consolo aos que padecem!

O CREPÚSCULO DOS DEUSES

Fulge em nuvens, no poente, o Olimpo. O céu delira.
Os deuses rugem. Entre incêndios de ouro e gemas,
Há torrentes de sangue, hecatombes supremas,
Heróis rojando ao chão, troféus ardendo em pira,

Ilíadas, bulcões de gládios e díademas,
Ossa e Pélio tombando, e Zeus em raios de ira,
E Acrópoles em fogo, e Homero erguendo a lira
Em reverberações de batalhas e poemas...

Mas o vento, embocando as bramidoras trompas,
Clangora. Rolam no ar, de roldão, num tumulto,
Os numes e os titãs, varridos à rajada:

E ódio, furor, tropel, fastígio, glória, pompas,
Chamas, o Olimpo, - tudo esbate-se, sepulto
Em cinza, em crepe, em fumo, em sonho, em noite, em nada.

A UM POETA

Longe do estéril turbilhão da rua,
Beneditino escreve! No aconchego
Do claustro, na paciência e no sossego,
Trabalha e teima, e lima , e sofre, e sua!

Mas que na forma se disfarce o emprego
Do esforço: e trama viva se construa
De tal modo, que a imagem fique nua
Rica mas sóbria, como um templo grego

Não se mostre na fábrica o suplicio
Do mestre. E natural, o efeito agrade
Sem lembrar os andaimes do edifício:

Porque a Beleza, gêmea da Verdade
Arte pura, inimiga do artifício,
É a força e a graça na simplicidade.


Este, que um deus cruel arremessou à vida,
Marcando-o com o sinal da sua maldição,
— Este desabrochou como a erva má, nascida
Apenas para aos pés ser calcada no chão.

De motejo em motejo arrasta a alma ferida...
Sem constância no amor, dentro do coração
Sente, crespa, crescer a selva retorcida
Dos pensamentos maus, filhos da solidão.

Longos dias sem sol! noites de eterno luto!
Alma cega, perdida à toa no caminho!
Roto casco de nau, desprezado no mar!

E, árvore, acabará sem nunca dar um fruto;
E, homem há de morrer como viveu: sozinho!
Sem ar! sem luz! sem Deus! sem fé! sem pão! sem lar!

DELÍRIO

Nua, mas para o amor não cabe o pejo
Na minha a sua boca eu comprimia.
E, em frêmitos carnais, ela dizia:
– Mais abaixo, meu bem, quero o teu beijo!

Na inconsciência bruta do meu desejo
Fremente, a minha boca obedecia,
E os seus seios, tão rígidos mordia,
Fazendo-a arrepiar em doce arpejo.

Em suspiros de gozos infinitos
Disse-me ela, ainda quase em grito:
– Mais abaixo, meu bem! – num frenesi.

No seu ventre pousei a minha boca,
– Mais abaixo, meu bem! – disse ela, louca,
Moralistas, perdoai! Obedeci...

OLGA SAVARY


Olga Savary nasceu em Belém, Pará, em 1933. Começou a escrever aos 10 anos, quando produziu um jornal artesanal. Tem 23 livros publicados e organizou várias antologias. Saiba tudo sobre Olga visitando a sua página no Palavrarte. Foto: pintura de Valdir Rocha que serviu de "mote" para 42 poetas brasileiros comporem poemas reunidos na antologia Fui eu (informações sobre a antologia e poema obtidos no Jornal de Poesia).

A face do poeta

Fui eu, sou a face pálida
e ocre, o firme olhar fixo
do olho à espreita, olho que vê,
duro como pedra, mole como dúvida,
certa compaixão, algum espanto,
olhar que se expõe e se revela,
pulsar de coração no crânio lívido
à espera da harmonia universal,
tentativa de semear eternidades
no que em meio à solidão do homem
e na vida é coisa breve e fluida,
esperança de melhores dias vindos
de deuses que aprimorem os seres
sonhando uma melhor humanidade.

PAULA CAJATY


Paula escreve desde que amou pela primeira vez, como revela a poeta na apresentação de seu primeiro livro publicado: Afrodite InVerso. Advogada por formação acadêmica, ela sempre encontrou na literatura um caminho para alcançar seus próprios sonhos e prazeres sobre meus temas preferidos: literatura e língua portuguesa.

Em e-mail ao editor deste blog, conta Paula:

"Tenho de reconhecer que não fiz o curso de Letras. No entanto, a paixão pela língua sempre rondou a família.
O mais antigo de que se tem registro foi o Silvio Romero em pessoa, avô de meu avô materno.
Outro tio-avô, este por afinidade, o Nelson Custódio de Oliveira, foi quem fez o livro de português adotado por todo o Colégio Militar: Português ao alcance de todos, que hoje é adotado inclusive em Portugal.
Várias de minhas tias e tias-avós foram professoras de português, e a correção com o idioma sempre foi um grande referencial para a minha profissão, o Direito, onde a palavra escrita e falada têm lugar de destaque."

CHAMPAGNE


Garçom, água mineral!
não é amor...
acabou meu barato
amanhã só resta um enjôo
as dores e meu coração
num caco.

ENCONTRO DE POESIA

ele era poeta
escrevia como se pudesse tê-la
sentindo a vontade no seu olho ao lê-lo
como se ela ousasse ser a única

ela era poeta
escrevia arrebatada, incompleta
e lia, e mais avidamente o lia
como se ainda pudesse
despir a vida
entender o silêncio
rasgar a letrapesar sussurro.

Do livro Afrodite in verso. Foto da autora enviada por sua assessoria de imprensa.

PEDRO NAVA


Prédio na Rua da Glória, 190 onde morou Pedro Nava

Companheiro, na juventude, de Drummond, Emílio Moura, João Alphonsus, Capanema, Milton Campos e outros, contribuiu, na Belo Horizonte dos anos vinte, para a consolidação do movimento modernista. Mas uma vez concluídos seus estudos, não se encaminhou nem para a política, nem para as artes, aparentemente abandonando ensaios de poesia marioandradina, desenhos na linha do expressionismo e investidas contra os "coronéis" do PRM. Dedicou-se à medicina e fez carreira destacada como pioneiro da reumatologia. Em 1972, surpreendeu os velhos amigos, quando publicou Baú de ossos - primeiro dos seis (editados sem interrupçção) volumes de Memórias. (Marilia Rothier Cardoso, Introdução de Pedro Nava, o alquimista da memória)

O defunto

Quando morto estiver meu corpo,
evitem os inúteis disfarces,
os disfarces com que os vivos,
só por piedade consigo,
procuram apagar no Morto
o grande castigo da Morte.

Não quero caixão de verniz
nem os ramalhetes distintos,
os superfinos candelabros
e as discretas decorações.

Quero a Morte com mau gosto!

Dêem-me coroas de panos
Dêem-me as flores do roxo pano,
angustiosas flores de pano,
enormes coroas maciças,
como enormes salva-vidas,
com fitas negras pendentes.

E descubram bem minha cara:
que a vejam bem os amigos.
Que a não esqueçam os amigos
e que ela lance nos seus espíritos
a incerteza, o pavor, o pasmo...
E a cada um leve bem nítida
a idéia da própria morte.

Descubram bem esta cara!

Descubram bem estas mãos:
Não se esqueçam destas mãos!
— Meus amigos! olhem as mãos!
Onde andaram, que fizeram,
em que sexos se demoraram
seus sabidos quirodáctilos?
Foram nelas esboçados
todos os gestos malditos:
até furtos fracassados
e interrompidos assassinatos.

— Meus amigos! olhem as mãos
que mentiram às vossas mãos...
Não se esqueçam!
elas fugiram
da suprema purificação
dos possíveis suicídios...
— Meus amigos! olhem as mãos,
as minhas e as vossas mãos!

Descubram bem minhas mãos!

Descubram todo o meu corpo.
Exibam todo o meu corpo
e até mesmo do meu corpo
as partes excomungadas,
as sujas partes sem perdão
que eu esmagava nos sábados
e que aos domingos renasciam...

— Meus amigos! olhem as partes...
Fujam das partes.
Das punitivas, malditas partes...
Eu quero a morte nua e crua
terrífica e habitual,
com seu velório habitual.
— Ah! o seu velório habitual!

Não me envolvam num lençol:
a franciscana humildade,
bem sabeis que se não casa
com meu amor pela Carne,
com meu apego do mundo.

E quero ir de casimira:
de jaquetão com debrum,
calça listrada, plastron
e os mais altos colarinhos.
Dêem-me um terno de ministro
ou roupa nova de noivo...
E assim solene e sinistro
quero ser um tal defunto,
um morto tão acabado,
tão aflitivo e pungente,
que sua lembrança envenene
o que restar aos meus amigos
de vida sem minha vida.

— Meus amigos! lembrem de mim.
Se não de mim, deste morto,
deste pobre terrível morto
que vai se deitar para sempre,
calçando sapatos novos!
Que se vai como se vão
os penetras escorraçados,
as prostitutas recusadas
e os amantes despedidos.
Que se vai como se vão
os que saem enxotados
e tornariam sem brio
a qualquer gesto de chamada.

— Meus amigos, tenham pena,
senão do morto, ao menos
dos dois sapatos do morto!
Dos seus incríveis, patéticos
sapatos pretos de verniz.
Olhai bem estes sapatos
e olhai os vossos também.

          Rio 23.VII.38

POETRIX


O poetrix surgiu como uma “evolução” do haicai. À semelhança do haicai, compõe-se de um terceto (estrofe de três versos), mas o tamanho dos versos é livre, conquanto o poema total não deva exceder trinta sílabas poéticas. É obrigatório um título. Segundo o Primeiro Manifesto Poetrix, trata-se de uma “arte minimalista, ou seja, ele procura transmitir a mais completa mensagem com o menor número de palavras”

Outuno
(Relva do Egypto Rezende Silveira)

Começa o outono...
Folhas secas ao vento –
tapetes voadores

Rio
(Rodrigo Freese Gonzatto)

você chorando
e água
faltando no mundo

Night Business
(Eliana Mora - RJ)

Anoitece.
O ouro cai:
a prata se valoriza.

Esquentes
(Jussara Midlej)

um afago em dó
um beijo em lá
e me mudo pro sol...

Fugaz
(Tê Soares)

Cama desarrumada,
liberdade para as borboletas
estampadas nos lencóis...

Rosa-dos-Ventos

(Goulart Gomes)

Os olhos de Capitu
desgovernando-me a bússola
sem noite, sem céu, sem sul

RAIMUNDO CORREIA


Sobre Raimundo Correia, escreve Waldir Ribeiro do Val (a maior autoridade viva sobre a vida e obra desse poeta) na Introdução de seu Itinerário poético de Raimundo Correia: "Espírito interessado em todas as manifestações do pensamento e instável por temperamento, jamais se satisfez com sua poesia. Devia mesmo admirar-se da receptividade por ela alcançada, do elogio da imprensa, do aplauso dos contemporâneos. E por ser assim é que pôde evoluir de um romantismo extemporâneo, mal bebido em Casimiro de Abreu, para o parnasianismo à moda brasileira [Alberto de Oliveira, Raimundo Correia e Olavo Bilac são considerados a “trindade parnasiana”] e um tanto para o simbolismo, que visitou timidamente. Sobre o poema "Plenilúnio" (ver adiante), disse Manuel Bandeira: “Realmente, não conheço em língua nenhuma, viva ou morta, exemplo mais cabal de lunaridade do que esse poema, que exalta até as raias da loucura o sentimento da vigília noturna.”

Fase romântica:

Noite de Inverno

Hoje eu não saio! a procela
Tem gargalhadas sombrias!
Perdoa-me, oh! minha bela,
Constipam-me as ventanias.

Donzela — que noites frias!
Que dias frios — donzela!
Donzela — há mais de três dias,
Que eu não te vejo à janela!

Pensa em mim como em ti penso,
Do teu quarto no retiro
Vai fazendo o teu crochet.

Que eu, com esse frio imenso,
Ao fogo do amor prefiro
O fogo da chaminé!

Fase parnasiana:

As Pombas

Vai-se a primeira pomba despertada...
Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas
De pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sanguínea e fresca a madrugada...

E à tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais de novo elas, serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bando e em revoada...

Também dos corações onde abotoam,
Os sonhos, um por um, céleres voam,
Como voam as pombas dos pombais;

No azul da adolescência as asas soltam,
Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais...

Fase simbolista:

Plenilúnio

Além nos ares, tremulamente,
Que visão branca das nuvens sai!
Luz entre as franças, fria e silente;
Assim nos ares, tremulamente,
Balão aceso subindo vai...

Há tantos olhos nela arroubados,
No magnetismo do seu fulgor!
Lua dos tristes e enamorados,
Golfão de cismas fascinador!

Astros dos loucos, sol da demência,
Vaga, noctâmbula aparição!
Quantos, bebendo-te a refulgência,
Quantos por isso, sol da demência,
Lua dos loucos, loucos estão!

Quantos à noite, de alva sereia
O falaz canto na febre a ouvir,
No argênteo fluxo da lua cheia.
Alucinados se deixam ir...

Também outrora, num mar de lua,
Voguei na esteira de um louco ideal;
Exposta aos éolos a fronte nua,
Dei-me ao relento, num mar de lua,
Banhos de lua que fazem mal.

Ah! quantas vezes, absorto nela,
Por horas mortas postar-me vim
Cogitabundo, triste, à janela,
Tardas vigílias passando assim!

E assim, fitando-a noites inteiras,
Seu disco argênteo na alma imprimi;
Olhos pisados, fundas olheiras,
Passei fitando-a noites inteiras,
Fitei-a tanto, que enlouqueci!

Tantos serenos tão doentios,
Friagens tantas padeci eu;
Chuva de raios de prata frios
A fronte em brasa me arrefeceu!

Lunárias flores, ao feral lume,
— Caçoilas de ópio, de embriaguez —
Evaporaram letal perfume...
E os lençóis d'água, do feral lume
Se amortalhavam na lividez...

Fúlgida névoa vem-me ofuscante
De um pesadelo de luz encher,
E a tudo em roda, desde esse instante,
Da cor da lua começo a ver.

E erguem por vias enluaradas
Minhas sandálias chispas a flux...
Há pó de estrelas pelas estradas...
E por estradas enluaradas
Eu sigo às tontas, cego de luz...

Um luar amplo me inunda, e eu ando
Em visionária luz a nadar,
Por toda a parte, louco, arrastando
O largo manto do meu luar...

Glossário:
frança: ramo superior ou copa de árvore
éolo: vento forte

REJANE SOBREIRA MINATO

Rejane Sobreira Minato nasceu em 1944 na capital paraibana. Participou do movimento artístico Geração 59. Transferiu-se para o Rio em 1962. Graduou-se em Serviço Social e Museologia. Em 1999 lançou seu primeiro livro, Aranha de breu. Em 2009 lançou Relembranças à deriva, comemorando meio século da Geração 59, do qual extraí este "Casarão". Para ler sua tese sobre o bairro carioca de São Cristóvão clique aqui.



CASARÃO


Fachada em cantaria acumulando anos de estrada;
telhas francesas escondidas pela platibanda larga;
pombos vadios fazendo amor na cumeeira;
gatos arredios enroscados na soleira sombreada;
pinho de riga em prontidão no forro mal pintado,
que abafa o desabar da tempestade
apara grito, medo, sujeira e goteira vazada.

Por fora, só1ido retângulo projetado
nas altas colunas de concreto inviolado.
Por dentro, paredes frágeis de estuque violentado,
divisórias separando sexos, e beliches alugados,
testemunhando o longo corredor espreguiçado
na faixa contínua de chapisco amarelado.

Um banheiro mofado, conservado a custo,
espremido na sequência da cozinha desbotada,
ladrilhada de quadrado casado e divorciado.
Um vaso encardido, sem tampa
sem vestígio de perfume algemado
combina com as veias de seu craquelado.
Uma descarga de cordão ensebado respinga
no cesto improvisado que espera notícia
em jornal fragmentado, e na manchete
de golpe fardado atapetando o chão recém-lavado.

Porão frio, engradado abriga o sobejo e também
o feroz canino Rex, rei de raça que, espargindo graça,
todas as noites, quando ganha sua alforria;
e ao carinho verdadeiro está sempre dizendo amém,
ainda policia, pericia todos os cantos, recantos,
disfarçando a valentia tão bem que, até parece
que é libertado para não vigiar ninguém.

Uma portada larga, do tamanho de enrijecidas marcas,
com poeira de extintas malícias e teias esvanecidas;
antenada nas vencidas réstias e palestras,
permitindo se entregar, sem reserva, à chave-mestra;
deixando que em seus degraus externos se abanque
o rádio hesitante, a pilha, o operante
que empilha sorte na bateria alcalina
e a reboque traz a nostálgica voz estanque.

Duas janelas de postigos emperrados,
se comunicam entremeadas de singeleza,
de frestas, de farpas, de estranheza,
de poros inquietos consolidando apelos,
de azul cobalto prenunciando o querer bem,
enquanto nos beirais marmorizados
pousam pares de cotovelos
que se revezam felizes para ver além. 

RIBEIRO COUTO


"Ribeiro Couto é uma mistura dos melhores e dos piores instintos, alma de uma instabilidade que raia pela agitação. Não tem outra paixão senão a curiosidade de viver e de exprimir a vida. Picou-o nos calcanhares o demônio do delírio ambulatório. É um sensual incontentável. É um ambicioso incontentável." (Manuel Bandeira em crônica de 1921, quando Ribeiro Couto tinha 23 anos.)

Cais

Na amurada do cais uma mulher doente,
Como uma ave que desce o vôo, vem pousar.
E fica junto a mim, melancolicamente,
Olhando o mar, olhando o mar, olhando o mar.

Asas além no céu de cinza... O vento é frio.
E a mulher, apoiando o rosto sobre a mão,
Contempla no horizonte o vulto de um navio,
E os velames que vêm... e os que vão...

Chega-se para mim... Estará comovida?
Ela sofre... no estranho olhar dessa mulher
Noto a fulguração de quem sonha na vida
Uma felicidade inédita qualquer.

Chega-se mais... A tarde tem uns tons antigos.
Abraçamo-nos... Anda uma carícia no ar...
E ficamos os dois, como velhos amigos,
Olhando o mar, olhando o mar, olhando o mar.

SALOMÃO ROVEDO


Poeta, contista, romancista, nascido em João Pessoa em 1942 e desde 1963 residindo no Rio: é tudo que sei de Salomão Rovedo. Descobri-o no Jornal de Poesia (clique) ao procurar no Google poemas sobre Copacabana.

OS MARES

Mar primordial.
Mar principalmente carioca.

Origem e fim de tudo,
bate no Rio de Janeiro
mandado por Iemanjá
ou por Posídon.
Banha Uiaras de areia,
engole atrevidos, ousados.

Mar de cores impuras,
que manda a saúde embora.
Bendito seja o fruto
do teu profundo ventre,
zelai os pescadores.

Trazei no toldo das ondas
o alimento de todos os dias,
o sal amargoso do batismo,
o sal da fé e da vida.

Mar que aceita surfistas,
travessos amantes notívagos,
ambos enfeitiçados
pelo encanto das sereias.
Barcos, iates, saveiros,
mar de engolir navios.

Mar de desertos e praias:
Copacabana – verde de musgo,
Arpoador – altar de beleza,
Ipanema – convite ao carinho,
Leblon – caminho da Barra.

Grande ventre de silêncios,
algas negras que geram
moléculas viscerais,
amniótico líquen,
negro ventre abençoado,
rezai por nós predadores.

Mar perdido por meandros
das praias do Recreio,
lagoas, seios, pântanos,
coxas, restinga de Vênus,
rumo a outros litorais.

Mar de liturgias e orações,
mar essencial, onde navegam
pensamentos e pirilampos,
mar que é rio, mar de rosas,
mar da antropogênese de nós.

STELLA LEONARDOS

A obra poética de Stella Leonardos da Silva Lima Cabasse é multiforme, rica na experimentação de várias linguagens, tendo se dedicado, nos últimos tempos, ao romanceiro, cancioneiro e a rapsódia, onde o histórico e as tradições populares, dos vários recantos do Brasil, lhe servem de substrato para o que alguns críticos literários já chegaram a situar como seu neotrovadorismo. [...]

Varias vezes premiada, homenageada com medalhas e outras distinções, a atividade literária e cultural de Stella Leonardos começa na década de 50, quando lança Poesia em três tempos (1956), que conquista o Prêmio Olavo Bilac da Academia Brasileira de Letras. E durante as quatro décadas seguintes não parou mais, em destaque outros livros de poesia: Rio cancioneiro (1960), Cancioneiro de Natal (1964), Cantares na antemanhã (1970), Cancioneiro romeno (1972), e daí em diante desenvolvendo seu Projeto Brasil, ou seja, dedicando a cada estado um cancioneiro ou uma rapsódia. (Da quarta capa de Saga do planalto.)



ERNESTO ROQUE: TE LEMBRAS?

(Nota: Ernesto Roque dos Santos foi um seresteiro de Diamantina.)

Nas noites de Diamantina
entre serestas sonhantes
passa o jovem Juscelino.

Lento passo, devaneando.

(Morena da luta nova!

"Quem ama para dar provas
Deve três cousas cumprir:
Tocar violão, fazer trovas,
Havendo luar não dormir".

Morena da lua nova!

Não me põe assim à prova,
não despreza meu sentir.
Deste amor não te dou prova?
Três coisas não sei cumprir?
Ao violão não faço trova?
Se faz lua: vou dormir?)

Nas noites de Diamantina
passa o jovem Juscelino
na passada largoandante,
o coração seresteando.

No céu: lágrimas? diamantes?

(Do livro Saga do planalto)

MENINO ARRIEIRO

Por uma antiga vereda
que envereda em bosque verde
vem vindo o menino arrieiro:

— Minha lua, luazinha,
luz um pouco esse teu luar,
luz uma luz pequenina,
luz capaz de me enluarar!

Bandos de sombras espiam,
conspiram pelo caminho,
vão perseguindo o menino.

— Eu trago dois cavalinhos
que não podem ser roubados:
são pequenos e retintos.
Padre Vlad há de comprá-los.

Um clarão arde no muro,
bruxoleia e tenta, bruxo,
tornar o menino mudo.

— Arreda, lua, o perigo!
Eu te darei de penhor
à entrada de meu redil,
uma fresca manjedoura...

Surge vulto mal-assombro.
Vovô Cotoaranza assoma?
O canto menino some.

Mas — sorriso que alumia —
a lua vem aclarar.
Dilui o bruxo sombrio.
E o menino ri ao luar.

(Do livro Cancioneiro romeno)

TROVAS


Bebo dez... volto às duas!

A trova é uma quadra, com sentido completo e independente, composta de redondilhas maiores - em outras palavras, quatro versos de sete sílabas. Mas não são quatro versos quaisquer. A trova bem feita tem que ser um "achado": seu último verso deve conter uma conclusão que surpreenda o leitor.

Meu barracão na favela,
onde vou vivendo ao léu,
na moldura da janela
não tem vidraça; - Tem céu! (José Antonio Jacob)

Ficou pronta a criação
sem um defeito sequer,
e atingiu a perfeição
quando Deus fez a mulher. (Eva Reis)

Não há nada mais profundo,
mais belo e comovedor,
nem maior poder no mundo
que um simples gesto de amor. (Eno Teodoro Wanke)

No meu humilde viver
a solidão é tamanha
que só me falta perder
a sombra que me acompanha. (José Carlos de L.G.)

As almas de muita gente
São como o rio profundo:
A face tão transparente,
E quanto lodo no fundo!... (Belmiro Braga )

A mentira é sonho lindo
neste meu mundo encantado.
Sonhando, minto dormindo,
mentindo, sonho acordado. (Sinval Cruz)

Para ter com quem falar,
A velhinha sem ninguém
Vai ao padre confessar
Os pecados que não tem... (José Carlos de L.G.)

Na hora incerta do revés,
Pensa o marido nas ruas:
- Bebo duas... volto às dez
ou bebo dez... volto às duas! (Osvaldo Mascarenhas)

Quanta vez, junto a um jazigo,
Alguém murmura de leve:
- Adeus para sempre, amigo!
E o morto diz: - Até breve!... (Belmiro Braga)

VALDEZ


Em 1999, quando lancei minha Caixinha de Surpresas, talvez a primeira revista eletrônica de poesia a circular na Internet, conheci uma série de poetas que faziam do ciberespaço seu canal de divulgação (que denominei Geração Internet), entre eles Valdez, de João Pessoa. Valdez de Oliveira Cavalcanti mantinha um site muito bonito, Cancioneiro, que a esta altura do jogo parece que saiu do ar. Em e-mail que me enviou, contou: "Gostaria, realmente, de dedicar-me à poesia. Falta tempo, sou advogado. Vez ou outra surpreendo os nossos juizes com uma petição em versos, para fugir à rigidez do linguajar jurídico. Mas estudo, e daqui a alguns anos, garanto, saberei tudo sobre poesia como compensação por não ser um bom poeta." De Valdez aprecio, em especial, o soneto "Ser Criança":

SER CRIANÇA

Pisar no lodo, chafurdar na lama;
Cara no vento, flauteando flores...
Na inocência..., não saber de amores...;
Não se queimar na perigosa chama...

Pular, correr, viver com desatino,
livre do pejo, dor..., ansiedade...
Não ter paixões..., jamais sentir saudade!
Curtir a vida simples de menino.

Pião na mão, caniço, baladeira...
Nunca pensar..., viver de brincadeira;
Nunca guardar rancores ou lembrança.

Desejo de esquecer esses teus olhos,
Que são na minha vida meus abrolhos...
Vontade de voltar a ser criança!

VERA TAVARES


Vera Tavares nasceu na pequena Aracaju - "onde as estrelas brilham com mais intensidade e o sol nasce mais disposto, mais alegre" - mas vive no Rio de Janeiro. Diz Vera: "Do céu recebi o maior e melhor presente - ter nascido poeta. Original passaporte. Aceito em qualquer mundo." O poema abaixo é de seu recente (e surpreendente) livro Camarim do tempo (Oficina do Livro).

SONHO AO CONTRÁRIO

Vive a sonhar o poeta, um viciado.
Sonha de todo jeito: dormindo, acordado,
dentro de um cubo, no ápice de um prisma,
ou simplesmente em linha reta.
Tem uma queda pelas paralelas.
Brinca com as letras:
espreme, estica o alfabeto.

As letras esvoaçantes vão e voltam
e caem numa folha de papel.
Ajeitam-se, pouco a pouco, e formam um verso.
Verso que vira versos. Poeta-criador
— usina de idéias. Idéias hilariantes, mirabolantes.
Poeta-palhaço — vê tudo ao contrário.
Arruma, quando acorda, um por um os paradoxos.

Segue em busca de novas aventuras.
Levam-no, a plagas distantes, os antagonismos.
Mexendo, incitando a memória refazem-se histórias.
Trocam, as palavras, de significado.
Poeta-mágico, semântica retocada,
surpreendente fonte brota, aflora.
No lugar da dor faz nascer o amor.

E o poeta segue viagem no trem de seus sonhos.

LIBERDADE

Sem nenhum mistério,
nem presa a qualquer critério.
Mas nua, nua
tal por Deus moldada.
E desembaraçada, desimpedida
para no céu brilhar. E flutuar
solta redonda estonteante.
Lua nua, lua leve, lua livre.
Livre das algemas dos românticos corações
ou outras atribuições.
Liberta para correr de um lado pra outro.
A qualquer hora transitar
no céu imenso, extenso
sem precisar mudar de cara
— afinar a silhueta, ou
crescer centímetro por centímetro
e ficar imensa de gorda.

Lua, leveza levando alhures
Luz magia e beleza.

DÁDIVA

Desgrudar da terra um dia.
Areia movediça
— luta lida liça.
Livre de fardo voar.
Voar nas asas da liberdade,
Nas promessas do PAI confiar:
As aves não semeiam, nem ceifam,
Nem recolhem nos celeir
os.

Sobrevoar a terra por um dia,
dar de cara com o horizonte,
visitar rios vales montes.
Perder-se na imensidão.
Livre leve lúcido — sonhar.
Sonhar que é lírio-do-campo:
Não trabalham, nem fiam.
Mas curam, adornam, perfumam.

O hoje basta.

VINICIUS DE MORAES


Vinicius de Moraes atravessou a vida conjugando opostos. Militante católico na juventude, cheio de freios, moralismo e metafísicas, mais tarde será boêmio convicto, devoto de Mãe Menininha do Gantois. Ocupa cargos diplomáticos de importância em várias capitais e depois se recolhe para uma paz hippie nas areias da Bahia. Nutre simpatias pelo fascismo na década de 1930 e compõe o hino da UNE, União Nacional dos Estudantes, nos anos 60. Múltiplo, sua vida parece às vezes reunir facetas dispersas do temperamento brasileiro. (Da orelha do livro de José Castelo, Vinicius de Moraes: O poeta da paixão. Poema "Revolta", da fase metafísica do poeta, obtido nesse livro. No meu livro Manual do poeta, a ser lançado este ano pela Ciência Moderna, observo que o "Soneto à Lua" é um exemplo perfeito de soneto camoniano, que, além de versos decassílabos, utiliza rimas opostas nos dois quartetos (ABBA/ABBA) e rimas cruzadas nos tercetos (CDC/DCD). Observe que o soneto como um todo utiliza apenas quatro rimas diferentes, A, B, C e D, o que constitui um desafio para o sonetista.)

Revolta

Alma que sofres pavorosamente
A dor de seres privilegiada
Abandona o teu pranto, sê contente
Antes que o horror da solidão te invada.

Deixa que a vida te possua ardente
Ó alma supremamente desgraçada.
Abandona, águia, a inóspita morada
Vem rastejar no chão como a serpente.

De que te vale o espaço se te cansa?
Quanto mais sobes mais o espaço avança...
Desce ao chão águia audaz, que a noite é fria.

Volta, ó alma, ao lugar de onde partiste
O mundo é bom, o espaço é muito triste...
Talvez tu possas ser feliz um dia.

Soneto à Lua

Por que tens, por que tens olhos escuros
E mãos lânguidas, loucas, e sem fim
Quem és, que és tu, não eu, e estás em mim
Impuro, como o bem que está nos puros?

Que paixão fez-te os lábios tão maduros
Num rosto como o teu criança assim
Quem te criou tão boa para o ruim
E tão fatal para os meus versos duros?

Fugaz, com que direito tens-me presa
A alma, que por ti soluça nua
E não és Tatiana e nem Teresa:

E és tão pouco a mulher que anda na rua
Vagabunda, patética e indefesa
Ó minha branca e pequenina lua!

O Poeta Aprendiz

Ele era um menino
Valente e caprino
Um pequeno infante
Sadio e grimpante.
Anos tinha dez
E asas nos pés
Com chumbo e bodoque
Era plic e ploc.
O olhar verde-gaio
Parecia um raio
Para tangerina
Pião ou menina.
Seu corpo moreno
Vivia correndo
Pulava no escuro
Não importa que muro
E caía exato
Como cai um gato.
No diabolô
Que bom jogador
Bilboquê então
Era plim e plão.
Saltava de anjo
Melhor que marmanjo
E dava o mergulho
Sem fazer barulho.
No fundo do mar
Sabia encontrar
Estrelas, ouriços
E até deixa-dissos.
Às vezes nadava
Um mundo de água
E não era menino
Por nada mofino
Sendo que uma vez
Embolou com três.
Sua coleção
De achados do chão
Abundava em conchas
Botões, coisas tronchas
Seixos, caramujos
Marulhantes, cujos
Colocava ao ouvido
Com ar entendido
Rolhas, espoletas
E malacachetas
Cacos coloridos
E bolas de vidro
E dez pelo menos
Camisas-de-vênus.
Em gude de bilha
Era maravilha
E em bola de meia
Jogando de meia-
Direita ou de ponta
Passava da conta
De tanto driblar.
Amava era amar.
Amava sua ama
Nos jogos de cama
Amava as criadas
Varrendo as escadas
Amava as gurias
Da rua, vadias
Amava suas primas
Levadas e opimas
Amava suas tias
De peles macias
Amava as artistas
Das cine-revistas
Amava a mulher
A mais não poder.
Por isso fazia
Seu grão de poesia
E achava bonita
A palavra escrita.
Por isso sofria.
Da melancolia
De sonhar o poeta
Que quem sabe um dia
Poderia ser.

VIRGÍNIA DE OLIVEIRA


Gosto deste poema "delirante" de Virgínia de Oliveira. Mostra que em poesia, assim como nos sonhos e desenhos animados, tudo é possível. Natural de Indaiatuba, SP, Virgínia é professora de língua portuguesa e tem um livro de poesias publicado pela Editora Scortecci, Quando os sonhos vencem a solidão (1988).

HOJE, SOMENTE HOJE

Hoje eu sou uma idéia, um perfume de rosas
e te trago um presente, a lua prata partida .
Hoje sou uma história bandida,
manchete de jornal - o pecado sangrento,
uma dança, teu cigarro, tua mentira, um lamento.

Hoje, somente hoje, eu sou a pressa
da vida conduzida pelo metrô,
sou a miséria dos restos de comida
nos grandes centros da metrópole.
Sou parto fórceps, beijo-arrepio,
vidro que corta a dor, um calafrio.

E ainda hoje também sou óleo diesel queimado,
pedra de moinho e um lindo amor trigal
contra o vento, arqueado, alimento de passarinho.

HOJE EU ME PROPONHO A SER O QUE QUERO!!!

Eu sou tudo e o todo esquecido por ti.
Sou teu desejo, tuas mãos, teus lábios sedentos,
sou tua pele leite, teu suor, teus cabelos molhados
      de repente
sou tua lágrima e tua dúvida, uma dádiva, tua dívida
(coisa repetida que já fiz, que já senti e que já li).
Sou o medo que atravessa tua língua e a faz maledicente,
falante e depois, um marasmo- silêncio cortante.

Sou o espelho de teu ego.
Teu íntimo, teu âmago, teu verso
espalhado em transparentes sementes.

E tu és desse jeito: incapaz de ser o que realmente és.
Então, hoje, somente hoje e porque o tempo assim me perdoa,
eu sou o teu destino, tua inspiração e tu és pedaço de mim.

Tu podes ser sem padecer em mim,
uma parte do céu, uma onda do mar,
tronco de árvore, barranco, grão de areia.
E podes ser o mistério da lua cheia,
o pó seco da Seca, seno e co-seno
        viola
          tamborim
            capoeira
          amendoim
            candomblé
          berimbau
             café
              fruta no pé
            serafim
             e
              carnaval

És telha da tulha e as horas do relógio,
ampulheta, uma fagulha, a fantasia -
te veste de alegria e aprende a ser feliz.

E hoje, só hoje, eu sou o teu gozo no ato
e também tua solidão, um abandono, teu sapato.
Sou o que te anima e o que mais te aborrece,
teu ódio, teu enigma, uma praga, tua prece.

Eu sou tudo isso e o que tu desejas.
Hoje, somente hoje, eu te convido
a me olhar de uma maneira mais insana.
Hoje posso ser tua lama, água, tua cama
e te banhar o corpo ou te conter em chamas.

Sou os dentes que te cravam o corpo no leito
e a mórbida bala certeira em teu peito.
Sou teu riso, teu desprezo e a chuva calma.

Hoje eu sou teu vinho, teu mel servido em taça.
Me toma, me bebe com sutileza e graça.
Observa-me. Sou um lírio brotando no asfalto
à espera do beija-flor escondido na flor de tu'alma!

WALDIR RIBEIRO DO VAL


Vamos beber, amigo...

Waldir Ribeiro do Val
nasceu em Ariranha, SP, em 1928. Bacharel em direito. Diretor da Editora Galo Branco, especializada em poesia. Autor de três livros de poesia e de estudos notáveis sobre o poeta maranhense Raimundo Correia (inclusive o Itinerário poético de Raimundo Correia publicado em 2006). Foi secretário literário de Augusto Frederico Schmidt e está preparando sua biografia. Os poemas aqui apresentados são da revista Poesia para todos n. 6, editada pela Galo Branco.

CONVITE

Vamos beber, amigo.
Beber ao violino que está tocando,
a essa canção que vem pelo ar,
à parede pintada de azul.

Apenas um convite.
Beber ao céu, ao mar,
aos automóveis patinando no asfalto,
à súplica do vento.

Vamos beber, amigo.
Beber à música dos rios,
aos sorrisos das crianças,
aos olhares expressivos,
às palavras saídas
de bocas vermelhas.

Vamos beber a este navio
que nos leva numa longa viagem
indefinida.

Vamos beber, amigo, vamos beber à vida.

HÁ UM MOMENTO

Há na tarde clara um momento
em que uma borboleta cansada
pousa na estátua branca do parque.
Há um momento em que o vento
agita as folhas e os cabelos das jovens
que movem carrinhos de crianças.
Há um momento, um breve momento,
em que os automóveis passam
riscando o cristal da tarde.

Há um momento, um momento indeciso,
em que olho o horizonte e busco
no ar grave da noite próxima
um gesto de esperança.

WANDA LINS


Wanda Lins — poesia radicalmente original, paranormal, paradoxal, paralática — nasceu no Rio de Janeiro em 1949. Aos doze anos foi viver na França, onde se formou pela École Supérieure d’Interprètes et Traducteurs. Em 1986, publicação do livro Les Monstrillons. Em novembro de 99 volta para o Brasil, em janeiro de 2000 começa a escrever em português. Em 2005 lança o intrigante & instigante livro de poesias 50 tempestades (Oficina do Livro), de onde selecionei os dois poemas abaixo.

se fosse

se fosse uma curva seria parabólica
saída do chapéu cônico de uma bruxa diabólica

se fosse uma linha seria duas paralelas
retas infinitas magrelas

se fosse um ângulo seria paralático
nada como ser um ângulo galático

se fosse um objeto sem dúvida um parabelo
verde e amarelo

e se fosse um raciocínio
seria pitbullmente paradoxal

mas não sou nada disso
sou

eu

parahybana e paranormal

Mar do Norte


sinto-me hoje como uma praia
do Mar do Norte
sob o chumbo algodoado
do céu invernal

gris a mais não poder

deserta

tão somente algumas gaivotas
mergulhando e bicando
a tristeza encrespada do mar

POEMAS NATALINOS


CANÇÃO DO DEUS MENINO
Cyro de Mattos


Alegre como passarinho
Lá vou eu pelo caminho
Cantando porque nasceu
Em Belém o Deus Menino.

Esse menino que nasceu
Na manjedoura em Belém
Como estrela nos fascina
Na cidade ou na campina.

Quer os homens como irmãos
Convivendo em comunhão
Dentro de cada coração
Pelos ares ou no chão.

Quer os bichos sem matança,
A vida sem agressão,
A vida sem solidão,
A vida como uma dança.

Alegre como passarinho
Lá vou eu pelo caminho
Cantando porque nasceu
Em Belém o Deus Menino.


Do livro Ecológico

NATAL
Angela Nassim (lynn)


...e depois do Natal
tudo volta ao cotidiano
da materialidade
esquece-se o sentido
da festa vivida

e o Messias?
ficou pregado na cruz


POEMA I da "Primeira Dor" do
Setenário das Dores de Nossa Senhora

Alphonsus de Guimaraens



Nossa-Senhora vai... Céu de esperança
Coroando-lhe o perfil judaico e fino...
E um raio de ouro que lhe beija a trança
É como um grande resplandor divino.

O seu olhar, tão cheio de ondas, lança
Clarões longínquos de astro vespertino.
Sob a túnica azul uma alva Criança
Chora: é o vagido de Jesus Menino.

Entram no Templo. Um hino do Céu tomba.
Sobre eles paira o Espírito celeste
Na forma etérea de invisível Pomba.

Diz-lhe o velho Simeão: "Por uma Espada
Já que Ele te foi dado e que O quiseste,
A Alma terás, Senhora, traspassada..."


NUMAS PALHINHAS DEITADO
João Saraiva


Numas palhinhas deitado,
abrindo os olhos à luz,
loiro, gordinho, rosado,
nasce o Menino Jesus.

Uma vaquinha bafeja
seu lindo corpo divino,
de mansinho, que a não veja
e não se assuste o Menino.

Meia-noite. Canta o galo.
Por essa Judéia além
dormem os que hão de matá-lo
quando for homem também.

E, pensativa, a Mãe Pura
ouve, fitando Jesus,
os rouxinóis na espessura
de um cedro que há de ser cruz!...


Extraído de “O Natal na Poesia”, artigo de Dom Marcos Barbosa publicado no Jornal do Brasil de 24/12/81

O ANÚNCIO FEITO A MARIA
Maria Thereza Noronha


Abre-se a asa do Arcanjo
e nela se vê, pousada,
a cabeça coroada
de um rei além deste mundo.

Abre-se a asa do Arcanjo
sobre a sombra de Maria.
E a ela, grave, anuncia
o filho oculto nas nuvens.

Das asas de ouro o Arcanjo
doura a fronte de Maria
com um diadema de luzes
que ofusca a pele do dia.

E ao assombro de Maria,
tal um espelho, do lado
esquerdo na asa, reflete
um coração trespassado.

Não à dor que se anuncia
o amor de mãe sangre e trema:
vê apenas um menino
cheirando a leite e alfazema.

E estende os braços de alfanje
rumo à asa esquerda do Arcanjo.
Enquanto Este já ia longe
deixando um rastro de plumas.

Bizarro e áureo tapete
– facho de luz entre brumas –
onde, serena, a mãe vela
seu ninho de cruz e estrelas.


Do livro A face dissonante

NUM POSTAL COM DOIS CACHORRINHOS E ENFEITES DE NATAL — PERDÃO, COM UM GATO E UM CACHORRINHO
Carlos Drummond de Andrade

Este gato não é de araque,
é de copo de conhaque,
e o malandro cacholinho
fica olhando de fininho
para ver se a dona chega
e acaba com a bagunça.
Enquanto a dona não vem,
os dois fazem seu Natal
entre bolas, contas, flores,
pois neste mundo, afinal,
os dois bichinhos de truz,
como as damas e os senhores,
são filhinhos de Jesus.


Do livro Poesia errante

SONETO DE NATAL
Alphonsus de Guimaraens Filho


É Natal. Foram tantos os Natais...
Pois que é Natal mais uma vez, apreende
esse cântico longo que se estende
por terras, mares, não termina mais.

Natal mais uma vez. Uma vez mais,
o menino que só a estrela entende,
os pais que a treva inquieta, ela, a quem rende
a certeza das coisas abissais.

Pois que é Natal, pensemos no menino,
apenas no menino. E o contemplemos
no berço onde ora está, tão pequenino.

Já quanto aos pais, a meditar deixemos.
Sabem os pais qual a hora do destino.

Fingindo não saber, sonhando olhemos.

Do livro Todos os sonetos, da Editora Galo Branco.



VESTE-SE A TERRA DE AZUL
Maria Isabel (Ferreira), terceira carmelita

Veste-se a terra de azul
enxuga o pranto da espera
foi encontrado um Menino
nos braços da Primavera

Maria rosa orvalhada
nuvenzinha aparecida
deixaste chover o Justo
sobre o deserto da vida.

Adeus chão do nunca mais
adeus abismos do medo
chegou quem nos levará
como um anel em seu dedo.


Extraído de “O Natal na Poesia”, artigo de Dom Marcos Barbosa no Jornal do Brasil de 24/12/81. Poema possivelmente nunca publicado em livro, dedicado a Dom Marcos.

POEMA II da “Segunda Dor” do Setenário das Dores de Nossa Senhora
Alphonsus de Guimaraens


Fora uma estrela de fulgor imenso
Que os guiara, em noite incerta, ao Lugar-Santo...
Mirra trouxera Beltesar: incenso
Gaspar: Melchior o ouro que fulge tanto.

Eram vales e montes, e era o denso
Bosque, e o campo espraiado em verde manto:
E ao luar, todo de jaspe, e ao sol intenso,
Seguiam na asa de celeste encanto.

Quando se viram sob o mesmo teto
Que abrigara a Família imaculada,
Brotou-lhes na Alma a Flor do etéreo Afeto.

E os Reis Magos, o olhar humilde e terno,
Os Diademas tiraram, poeira e nada,
Diante d’Aquele que era o Verbo eterno...


SONETO DE NATAL
José Antonio Jacob


Essa mulher, que sonha, sofre e chora,
E o escasso seio estende, e o acaricia,
Ao filho magro, que seu leite implora,
Podia se chamar Virgem Maria.

O que lhe importa se essa noite é fria
E além da porta é Natal lá fora,
Se Jesus Cristo nasce todo dia
E está dormindo no seu colo agora?

Ela é Nossa Senhora da Pureza,
Cuida da nossa vida de pobreza
E ora por nós que somos filhos seus...

Essa Mulher, que sonha, sofre e chora,
Só pode ser então Nossa Senhora,

A Mãe de todos nós... A Mãe de Deus!




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