Vê-se em Infância (1945), de Graciliano Ramos, que a vida em seu começo ofereceu ao escritor de Alagoas momentos de amargura e pessimismo. Forjada dos contatos com as pessoas de alma pobre e as coisas em estado atrasado, a vida não poderia nas raízes latejar o coração pequeno com batidas leves. Assim, nas queimaduras de uma poeira áspera que se acumulava no cotidiano, o escritor de amanhecer hostil fora acostumado aos maus tratos e castigos.
Nascido em Quebrangulo, interior de Alagoas, o autor de Vidas Secas (1938), romance constituído de episódios autônomos, que podem ser considerados como contos, não guardou nenhuma lembrança de sua cidade natal. Cedo se transferiu para Buíque onde se criou numa zona de indústria pastoril, no interior de Pernambuco. Muitos fatos dessa época estão arrolados em suas memórias infantis atravessadas de dores e incompreensões. As informações precisas sobre pessoas e fatos lá estão alinhavadas de maneira pungente, expostas nas páginas ausentes de serenidade, desde o amanhecer até quando chegava a noite onde tudo é silêncio e a vida respira abafada na travessia solitária formada com sonhos pesados, carentes de ternura.
Dessa poeira cinzenta trouxe pedaços de pessoas, quase sempre más, ridículas, para o seu mundo interior, o qual seria articulado depois em forma de ficção, operada como permanente auscultação de um contínuo psicologismo angustiante. Agora a realidade produzida pelo artista da palavra se vestia com a roupagem do estilo despojado, focado numa humanidade despreparada para o bem-estar, sempre acompanhada de momentos opressivos. No discurso que une o passado ao clássico moderno, sem filiação aos tempos românticos, nem ao beletrismo, avultam as atitudes de rancor, seguidas vezes vão ser encontradas em suas personagens cercadas de atmosfera sombria feita de niilismo devastador.
Encontram-se nessas memórias da vida calejada com a hostilidade as marcas pessimistas dos gestos fornecidos pelos castigos que os pais afligiam ao filho, como bolos de palmatória, chicotadas, cascudos e puxões de orelha, prisão na loja onde convivia com as baratas, ratos e insetos. O pai e a mãe apresentavam-se grandes, temerosos, criaturas desconhecidas como se fossem seres misteriosos. O pai tinha imaginação fraca, era incrédulo, expandia a índole perversa com as surras cometidas no filho, a mais absurda a que fora exercida com o cinturão grosso. A mãe tinha uma índole carregada de sentimentos movidos com a dureza do cotidiano. Montava, atirava, era categórica na atitude imperiosa que comanda.
O espírito infantil de Graciliano Ramos recolheu-se na imagem de que a mãe era uma senhora sempre a mexer-se com uma boca má, olhos que em momentos de raiva se inflamavam com um brilho de loucura. Ente difícil que na harmonia conjugal se afrouxava, amaciava as arestas, relaxava os dedos que batiam na cabeça, dobrados, tendo a dureza de martelos. Pedaços de seus gestos foram capturados pelo escritor nas rugas, olhos nervosos, boca irritada, mãos nada suaves. O pai e a mãe eram dois seres que impunham obediência e respeito com suas vozes absolutas.
Nesse círculo familiar, em que o céu era terrível, natural que os seres e os objetos se tornassem irreconhecíveis, absorvessem nos dias uma atmosfera difícil de fluir sem rancor. Nesta circulava uma humanidade formada com aflições e dissabores. Normal que a submissão de movimentos infantis fosse uma constante, conduzida em suas circunstâncias críticas para uma composição feita de negações e inércia, como soubera com forte tristeza nas primeiras impressões que teve com a justiça através da surra tomada com o cinturão grosso.
Na surra terrível com o confronto desigual de forças, entre o algoz prepotente e a vítima encurralada, a parte que lhe cabia no polo passivo de um processo cruel era constituído de elementos que o atormentavam. Irrompiam das fissuras que tinham a perda de suas características humanas, destituídas do estar gregário harmonioso em família.
“Sozinho, vi-o de novo cruel e forte, soprando, espumando. E ali permaneci, miúdo, insignificante, tão insignificante e miúdo como as aranhas que trabalhavam na telha negra.” (página 31)
Subalterno da voz absurda admitia que era justo o que se fazia com ele. Na surra que tomou com o cinturão grosso acontecera seu primeiro contacto com a justiça, colocando-o na situação irremediável de réu considerado como uma coisa reles, derrotado pela impotência. Na cela de sua passividade frequente não tinha como se opor a toda essa miserável situação adversa.
De suas memórias infantis mestre Graciliano Ramos com um estilo realista traz imagens e figuras que marcaram os passos sem auroras. Nos movimentos de uma narrativa que não cedeu à facilidade, pouco faz concessões à esperança, suas criaturas aparecem com a marca de coisas desagradáveis. Chico Brabo era perverso com o menino de dez anos, mas prestativo com os da rua. Uma das recordações mais desagradáveis que lhe ficaram das pessoas na infância estava em Fernando, sujeito magro, de aspecto tenebroso, impertinente, nunca fora visto sorrindo. Sua fisionomia viscosa, de coisa úmida, dava a sensação repugnante de uma lesma vertebrada e muito ágil.
De todas as páginas escritas com a mão de mestre, nessas memórias que evocam os primeiros movimentos de um autor com a suas experiências negativas de vida, sobressaem algumas que de tão verdadeiras fazem pensar que a vida é inviável quando se move com a insensatez dos desarranjos, má vontade, conflito, soluço. Entre aquelas que chegam impregnadas desse conteúdo pelo avesso, destacam-se como páginas de análise arguta da natureza humana, resultantes de uma narrativa concisa e revoltante, por exemplo, “Um Incêndio”, “Um Enterro” e “Venta-Romba”.
Em “Um Incêndio”, o menino vai com o amigo José conhecer um incêndio nas cabanas pobres com a cobertura de folhas de Ouricuri. Tinha conhecimento até aquele momento do fogo com suas pequenas labaredas quando se cozinhava a comida no fogão a lenha ou nas fogueiras de São João. Fogo imenso com labaredas altas e fumaça impelida para o céu como uma nuvem cinzenta, densa, nunca lhe ocorrera na visão. Daí a decepção quando encontrou os tocos de uma cabana queimada pelo fogo. Teve a atenção chamada pelo grupo de pessoas que se lamentavam em torno de um resto de gente, um torrão sem braços e pernas, a cabeça queimada, o rosto como uma careta feia na qual pelos buracos dos olhos desciam uma gosma nojenta. Era de uma menina preta que havia morrido queimada no incêndio. Havia duas meninas pretas que estavam cozinhando a comida na cabana enquanto os pais trabalhavam no eito. A centelha do fogo que saltara do fogão a lenha pegara nas palhas da cobertura do barraco. Uma das negrinhas fugiu, a outra ficou tirando de dentro da cabana as coisas que achava como importantes. Quando pensou que conseguira salvar todas as coisas tidas como importantes, lembrou-se da litografia de Nossa Senhora. Ao tentar sair do barraco em chamas com a litografia da santa encontrou a porta da entrada bloqueada pelo fogo.
“Curvei-me num arremesso de coragem. Faltava-lhe o cabelo, faltava a pele – e não havendo seios nem sexo, perdiam-se os restos da animalidade. A superfície vestia-se de crostas, como a dos metais inúteis, carcomidos no abandono e na ferrugem. Em alguns pontos semelhava carne assada, e havia realmente um cheiro forte de carne assada; fora daí ressecava-se demais.” (Pág. 83)
Distinguiu uma cara, melhor dizendo, sobra de cara, máscara pavorosa, e retornou para a sua casa com a imagem horrível daquela visão, arrependido de ter aceito o convite para conhecer um incêndio. Responsabilizou Nossa Senhora como autora daquela agonia sórdida. Se a criatura não tivesse a ideia de salvar a imagem, estaria cortando palma de Ouricuri para fazer nova cabana. As pessoas grandes refutaram o seu modo de julgar a situação acontecida por força maior, independente da ação humana. Nossa Senhora não era uma figura feroz e impiedosa. Podia ser pior. O fogo poderia ter comido um dos prédios importantes do comércio local. Escolhera a negrinha para que alçasse ao céu, sem precisar passar pelo fogo do purgatório. Não lhe convenceu o argumento com a benesse estranha ao drama. Não lhe pareceu que o fogo do purgatório tivesse a ver com o do incêndio que matou a negrinha. E a negra, imunda e com um defeito de cor, não estava no céu.
“Que ia fazer lá? Estragaria as delícias eternas, mancharia as asas dos anjos”. (pág. 86)
Nessas memórias infantis tomamos conhecimento de vivências amargas que serviram ao escritor para construir na sua ficção regional com personagens vivendo uma atmosfera angustiante coberta de sombras. O gosto pela literatura provavelmente herdara do avô paterno, de quem tinha um retrato velho no álbum guardado no baú. O próprio Graciliano Ramos admitia ter recebido desse avô a vocação que se alimentava do ócio e das coisas que não servem para nada. Em Buíque, na primeira escola, provou os primeiros desconfortos dos livros didáticos do Barão de Macaúbas. Mudou-se para Viçosa, depois passou para Maceió onde frequentou um colégio de má fama, que lhe deu momentos da vida sem bons predicados. Retornou e, aos 18 anos, foi morar em Palmeira dos Índios, no interior de Alagoas, onde se tornaria prefeito. Graças a dois relatórios que escreveu se tornou conhecido. Os documentos, provenientes da gestão municipal com a marca de sua escrita precisa, deram a entender que ali havia um escritor promissor, inclinado para largas expressões, voos altos.
Vem se dizendo ao longo dos anos que vivemos em um vale de lágrimas. A vida é sofrimento. Sofremos é porque estamos na vida, alude Jorge de Lima. Constata-se que toda boa literatura tem sofrimento. Graciliano Ramos escreveu uma obra singular como conhecimento da vida, haurida no Nordeste sem o verde, seco, desamparado, que confirmam essas observações. Faz lembrar por isso o que a literatura tem de catarse para libertar-nos de paisagens calcinadas, sombrias, em que andamos.
E o poeta William Blake adverte que nunca se deve deixar de sonhar porque só nos sonhos pode ser livre o homem.
Referência
RAMOS, Graciliano. Infância, Editora José Olympio, Rio de Janeiro, 1945.
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