Existe o outro lado da moeda, passagens em que fala depreciativamente dos negros, mas são poucas, numa correspondência que durou quarenta anos. “A minha ideia do porão falhou, porque uma criada ocupa a repartição próxima, e como é preta põe lá um bodum pior que o barulho da sala.” (carta a Godofredo Rangel de 30/7/1910) “A Capital [...] publicou umas tantas infâmias sobre o nosso grande morto [poeta Ricardo Gonçalves], escritas em língua de negra suja” (29/10/1916) “O negrinho aluno está uma pura maravilha; conheço uns tantos desses pretos de pastinha, brancos por dentro, pretos só por fora.” (6/2/1915) Parece absurdo mas na época, assim como alguém pão-duro era chamado de “judeu” (os dicionários consignam este uso, por exemplo, o Houaiss: “pessoa usurária, avarenta”), usava-se a expressão “preto de alma branca” para um negro com características consideradas mais típicas da população branca.
É bem verdade que, em carta de 3/2/1908, quando Lobato tinha 25 anos, existe um trecho na primeira edição fortemente racista, tanto é que foi eliminado das edições subsequentes:
Que contra-Grécia é o Rio! O mulatismo dizem que traz dessoramento do caráter. Dizem que a mestiçagem liquefaz essa cristalização racial que é o caráter e dá uns produtos instáveis. Isso no moral – e no físico, que feiúra! Num desfile, à tarde, pela horrível rua Marechal Floriano, da gente que volta para os subúrbios, perpassam todas as degenerescências, todas as formas e má-formas humanas — todas, menos a normal. Os negros da África, caçados a tiro e trazidos à força para a escravidão, vingaram-se do português da maneira mais terrível – amualatando-o e liquefazendo-o, dando aquela coisa residual que vem dos subúrbios pela manhã e reflui para os subúrbios à tarde. [...]
Como consertar essa gente? Como sermos gente, no concerto dos povos? Que problemas terríveis o pobre negro da África nos criou aqui, na sua inconsciente vingança!...
Talvez a salvação venha de São Paulo e outras zonas que intensamente se injetam de sangue europeu. Os americanos salvaram-se da mestiçagem com a barreira do preconceito racial. Temos também aqui essa barreira, mas só em certas classes e certas zonas. No Rio não existe”
Por outro lado, Lobato sente uma
afinidade pelo povo. Luta em vão contra a burocracia e a ditadura Vargas para
trazer o ferro e petróleo ao país, modernizando-o. No pós-Segunda Guerra
Mundial, simpatiza com o socialismo soviético, como revela ao repórter Tulman Neto do Diário de São Paulo em entrevista publicada em Prefácios e entrevistas: “O quase certo [...] é a passagem da Ordem Social Capitalista para a Ordem Socialista, mais ou menos como na Rússia.” Em carta de 15 de julho de 1915
para Godofredo Rangel, escreve: “A burguesia não tem alma. Educação e riqueza
são máscaras de desindividualização. Que delícia nadar nas ondas da plebe, como
num mar!... Como Gorki nadava...” Em carta de 7/12/1916, escreve: “O caboclo
parece-me hoje açúcar refinado perto do açúcar preto que são os urupês
citadinos de gravata. Que pulhas!” Carta de 17/4/1917: “A nossa imbecilização é
das mais curiosas: vem de cima para baixo, e decresce quando chega ao povo.
Quanto mais conheço os paredros [=manda-chuvas], mais admiro o equilíbrio, a sensatez, a
sanidade mental destes meus bons caboclos da roça.”
Se fosse verdadeiramente racista,
Lobato não elogiaria nestes termos o mulato Lima Barreto, na época vítima de
preconceito: “Conheces Lima Barreto? Li dele, na Águia, dois contos, e pelos jornais soube do triunfo do Policarpo
Quaresma, cuja segunda edição já lá se foi. A ajuizar pelo que li, este
sujeito me é romancista de deitar sombras em todos os seus colegas coevos e
coelhos, inclusive o Neto. Facílimo na língua, engenhoso, fino, dá impressão de
escrever sem torturamento – ao modo das torneiras que fluem uniformemente a sua
corda-d’água.” (Carta de 1o de outubro de 1916 a Godofredo
Rangel) Aliás, Monteiro Lobato, à frente da Editora Revista do Brasil, publicou
uma obra de Lima Barreto, Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, um total
fracasso de vendas, que Lobato atribuiu ao título, pouco convidativo.
O primeiro livro que Lobato publicou,
baseado em série de reportagens para O Estado de São Paulo, intitulado O Saci-Pererê:
resultado de um inquérito
(1918), é sobre a lenda do
saci, que depois deu origem a um de seus livros da série infanto-juvenil.
Um escritor racista estrearia em livro com uma lenda da cultura negra?
Por todos esses motivos eu acho um exagero a gente querer tachar o Lobato de racista por ter criado a tia Nastácia da maneira como criou. A própria caracterização dela é ambígua. No livro Histórias de Tia Nastácia ela é a figura principal e, bem no início, observa Pedrinho que “Tia Nastácia é o povo. Tudo que o povo sabe e vai contando, de um para outro, ela deve saber. Estou com o plano de espremer Tia Nastácia para tirar o leite do folclore que há nela.” E pouco depois Pedrinho diz: “As negras velhas são sempre muito sabidas.” Isso é ser racista? É bem verdade que a certa altura do livro (na história “O Macaco, a Onça e o Veado”), quando Nastácia observa que “A sina dos carneiros é a panela”, Emília reage com estas palavras: “Bem se vê que é preta e beiçuda.” Mas Emília é uma boneca insensível, desbocada, que não respeita ninguém. No início de Viagem ao Céu, quando Emília diz que “negra velha não tem direito de repousar”, Pedrinho chama sua atenção: “Malvada! Quem neste sítio tem mais direito de descansar do que ela, que é justamente quem trabalha mais? Então negra velha não é gente?”. E o narrador, Lobato, usa com frequência a designação “a boa negra”. Com seus dotes culinários conquista não só os humanos, mas também São Jorge, o Minotauro e o anjinho da Viagem ao Céu: “Quando eu havia de pensar que até os santos e os anjos haviam de comer os meus bolos fritos?“
Uma ideia-mãe! Um romance americano, isto é, editável nos Estados Unidos. Já comecei e caminha depressa. Meio à Wells, com visão do futuro. O clou será o choque da raça negra com a branca, quando a primeira, cujo índice de proliferação é maior, alcançar a branca e batê-la nas urnas, elegendo um presidente preto! Acontecem coisas tremendas, mas vence por fim a inteligência do branco. Consegue por meio dos raios N, inventados pelo professor Brown, esterilizar os negros sem que estes deem pela coisa. (carta de 8 de julho de 1926)
Um romance racista, sim, escrito para uma sociedade então notoriamente racista, imaginando o que aconteceria se a população negra dos Estados Unidos superasse numericamente a população branca. É como se tentássemos imaginar hoje como seria Israel se a população árabe ultrapassasse a judaica. Um exercício de futurologia. Desiludido por não encontrar editor em terras de Tio Sam, Lobato desabafa para Rangel: “Meu romance não encontra editor. Falhou a Tupy Company. Acham-no ofensivo à dignidade americana, visto admitir que depois de tantos séculos de progresso moral possa esse povo, coletivamente, cometer a sangue-frio o belo crime que sugeri. Errei vindo cá tão verde. Devia ter vindo no tempo em que eles linchavam os negros.” Segundo Edgard Cavalheiro, biógrafo de Lobato, o fracasso deveu-se ao fato de o romance tocar em tema tabu, “falar de corda em casa de enforcado” (Monteiro Lobato, vida e obra, p. 341).
O presidente negro constitui hoje a principal peça de acusação na tentativa de incriminar Lobato como tendo sido racista. Até certo ponto Lobato foi racista, sim. Muita gente boa na época foi racista. Euclides da Cunha foi. A expressão “raça superior” figura quatro vezes em Os Sertões, por exemplo: “A mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial. Ante as conclusões do evolucionismo, ainda quando reaja sobre o produto o influxo de uma raça superior, despontam vivíssimos estigmas da inferior. A mestiçagem extremada é um retrocesso.” (Cap. II, O VAQUEIRO). A intelectualidade era racista como hoje é socialista, e olhem quantas barbáries se cometeram em nome do socialismo!
Querer boicotar Lobato devido ao seu racismo é injustiça cometida contra um homem tão patriota
que, na luta para modernizar o país e implantar as indústrias do petróleo e do
ferro, tirando assim o Jeca Tatu da miséria, entrou em choque com a ditadura
Vargas e foi parar na prisão. Francamente, Monteiro Lobato tem tantas
qualidades e tão poucos defeitos, mas nós, brasileiros, sofremos de “complexo
de vira-lata” e, agraciados
com um escritor de literatura infanto-juvenil da sua magnitude – escritor este
que, se tivesse escrito em inglês, francês ou alemão hoje seria
internacionalmente conhecido, seu Sítio do Picapau Amarelo transformado em
desenhos animados e musicais – em vez de o valorizarmos e de nos orgulharmos
dele, procuramos seus defeitos.
E, last but not least, para dar uma ideia da criatividade de Lobato, transcrevo um diálogo da Emília e Dona Aranha, costureira, em Reinações de Narizinho:
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7 comentários:
TRANSCREVO ABAIXO COMENTÁRIO DE ALBERTO MUSSA, ENVIADO POR E-MAIL, SOBRE A QUESTÃO ABORDADA NESTA POSTAGEM:
Meus queridos, apenas duas questões de ordem.
Primeira: há relação de equivalência entre a qualidade do caráter e a qualidade da obra? Creio que não. O que me importa é a qualidade da obra. "O presidente negro", do nosso genial Lobato, é um romance claramente racista. Mas é antes de tudo um livro péssimo. A prosa infantil de Lobato (que tem passagens fortemente racistas, como o próprio Ivo detecta) é suprema. O único problema é que ele escreveu para crianças... que não têm (naturalmente) capacidade de contextualizar o discurso autoral. Li Lobato para meu filho mais velho (que hoje tem três décadas) e leio para o caçula (que tem meia dúzia de outonos). Omito ou refaço, na hora, intencionalmente, certos trechos. Adaptadas hoje, para TV ou cinema, as expressões racistas seriam obviamente omitidas.
Em defesa de Lobato posso dizer apenas que, embora o racismo dele (que se estende aos judeus) seja mais ferrenho, não está sozinho. Os maiores autores do Brasil foram racistas, grandes artistas do Brasil foram racistas, o ministro da economia do Brasil é racista, o povo brasileiro (afro-descendente ou não) é racista. Não podemos acabar com a cultura brasileira por causa disso.
Segunda: não seria o caso de deixar para que negros, cabras, mulatos, caboclos e outros das chamadas, no passado, "raças infectas" se manifestem? Será legítimo que nós, brancos (ainda que de origem mameluca ou negra, mas cujo fenótipo já não nos denuncia) emitamos opinião sobre o potencial ofensivo de uma manifestação da Emília nos textos do Lobato? É importante lembrar que Emília não é um Visconde de Sabugosa: é talvez a personagem fundamental do panteão lobatiano. Digo isso por conhecer um caso concreto: a filha de um grande amigo meu, negro e rico, que por isso era a única negrinha da sala, passou a ser chamada de macaca e fedorenta pelos coleguinhas depois da leitura das Caçadas de Pedrinho ou Reinações de Narizinho. Essa menina passou a economizar o dinheiro do lanche para comprar perfumes e adquiriu produtos para alisar o cabelo, sem o conhecimento dos pais. Quase ficou careca. Sofreu muito. Precisou de psicólogos. Um drama que não aconteceria com meu caçula, por exemplo, que é igual a mim, apesar de minha mulher ser mulata clara: ele já não trai, no fenótipo, a origem.
Conclusão: louvemos Lobato, gênio da literatura infantil, o maior de todos, no mundo inteiro. Mas é bom omitir meia dúzia de passagens, que ofendem crianças, que agridem inocentes.
COMENTÁRIO DE ROGÉRIO MARQUES, ENVIADO POR E-MAIL:
Perfeita essa definição do Mussa. Acho que já disse aqui que cresci lendo a coleção infantil do Monteiro Lobato, até ou principalmente porque meu pai vendia livros para a Brasiliense. Isso nos permitia, lá em casa, ter bons livros a preço de custo ou com grandes descontos. Sempre me encantou aquela literatura, e sempre vi traços de preconceito racial na literatura de Lobato, o que nunca me espantou, porque aquilo refletia o próprio Brasil e continua refletindo. O que me surpreendeu demais foi tomar conhecimento, há uns 10 anos, daquela carta de Lobato para Arthur Neiva, publicada pela revista Bravo!, se não me engano, em que ele além de defender a eugenia o escritor defendia a Ku Klux Klan. Aquilo realmente me chocou. Nem por isso deixou de admirar a literatura infantil de Lobato, que merece um certo cuidado na leitura para crianças e pré-adolescentes pelos motivos bem definidos pelo Mussa.
Prezado Ivo: parabéns pelo seu brilhante e muito bem fundamentado artigo sobre o pretenso racisomo de Lobato. Eu também li as obras infantis do autor quando da infância e adolescência e elas jamais me influenciaram ou despertaram qualquer tipo de pensamento supremacista. Ao contrário a personagem Tia Nastácia me revelou as habilidades e a sapiência de uma mulher negra inserida no contexto da época em que foi concebida. A obra infantil do Lobato fez-me, isto sim, despertar para os vários aspectos da humanidade e, principalmente para um problema crucial do nosso país - a questão do petróleo e do nacionalismo pátrio. abcs (enviado por e-mail)
Muito bem, Ivo, artigo convincente e bem fundamentado sobre as contradições de Monteiro Lobato quanto ao tema do racismo..
Quando pequeno e adolescente, li Monteiro Lobato com surpresas e sustos esplêndidos. Ele foi o primeiro escritor que me ensinou amar à palavra escrita a serviço da fantasia. Encantou-me. É fácil perceber que suas contradições quanto ao elemento negro em nossa sociedade vem em função do ambiente intelectual em que viveu, mas os ressentidos não entendem assim e metem o pau. E daí? O importante é que o pai de nossa literatura infantil fica.
Parabéns pelo artigo. (enviado por e-mail)
GRANDE IVO:
Seu trabalho acerca do nosso Monteiro Lobato tem a precisão das cirurgias reparadoras.
Sim. Ele era – sobretudo – preconceituoso (quem não é?) e, na sua impaciência (TAL o crítico do auriverdismo, Alexei) atacava o que lhe parecia impedir o nosso “avanço”, parâmetro da humanidade.
Quanta besteira se fez por conta do progresso.
Se eu achar nos meus arquivos, mando uma crônica que fiz sobre as “crenças científicas” nos anos de 1940!
O Professor Ivan Proença foi atacado por criticar (literariamente) o livro “Quarto de Despejo” – obra ímpar, escrita com aguda sensibilidade pela Carolina de Jesus e “ajustada no português” por um jornalista que a descobriu na favela... Nada por conta da cor. Foi chamado de “racista”, no debate, pela bela, negra, talentosa Elisa Lucinda (tola?).
Ivan retirou-se para alegria da plateia de tolos...negros ou brancos.
Como já contei (velho repete história) sou bisneto de uma mulata baiana e de um músico judeu (nome: Ioachin). Ele passou com uma orquestra no Rio do século XIX, tocou o violino no telhado e, antes de sumir, dormiu com a mulata Cecília, minha bisavó materna e deixou um encanto de moça: Georgina, minha avó , que se casou com um português etc etc . Sou, assim, um exemplo de eugenia... E conheço negros e negras, judeus e judias, uns bons, outros não tanto, mas quase todos respeitáveis seres humanos.
Nota 10 pro Lobato, nota 20 pra você!
ABRAÇÃO,
HB (enviado por e-mail)
Boa tarde, Ivo!
Somente agora parei para ler o seu estudo publicado na Revista Brasileira. Tomo-o como um presente, já que enviou-me justamente no dia do meu aniversário.
Seu artigo é admirável pela erudição, bom senso e elegância. Li somente uma vez e causou-me uma ótima impressão.
Assim que reler mais uma ou duas vezes, volto a comentar aqui contigo.
Grande abraço e parabéns!
Agenor Araujo (enviado por e-mail)
Ivo,
li o seu artigo sobre Monteiro Lobato e achei o seu trabalho muito rico e interessante, sobretudo, por que não faz sentido algum (ao menos para mim), chamar esse escritor de racista. O texto é bastante amplo, com muita pesquisa e citações, numa tentativa de entender os diferentes momentos em que ele se refere ao negro na nossa cultura. Parabéns pelo artigo e pelo texto, muito bom.
abraço,
Daniel (enviado por e-mail)
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