DAVID COPPERFIELD, de CHARLES DICKENS – UMA RESENHA

 

Charles Dickens em óleo sobre tela de Daniel Maclise de 1839

Por contar a vida e as peripécias de um personagem jovem, David Copperfield é uma obra que agrada em cheio aos jovens. Então por que só vim a ler agora aos 69 anos? Foi uma falha na minha programação de leituras. Talvez faltou alguém lá na frente, um parente ou amigo, que dissesse “você tem que ler o David Copperfield”. Mas o mesmo não vai acontecer com você, porque estou dizendo: Você tem que ler o David Copperfield.

Aliás, David Copperfield agrada em cheio também aos românticos, devido aos vários amores impossíveis & possíveis, frustrados & bem-sucedidos, vividos pelo protagonista, se bem que Dickens não se enquadre entre os autores da escola romântica. Agrada aos leitores preocupados com os problemas sociais, porque Dickens fazia questão de aproveitar sua imensa popularidade e vasto público para denunciar as mazelas da sociedade vitoriana. O que chamamos hoje um artista engajado. E por dissecar a alma humana e criar toda uma gama de personagens, desde os absolutamente bons até os mais repelentes vilões, preenchendo também todo o espectro intermediário, David Copperfield agrada ao leitor interessado na realidade psicológica. Em suma, David Copperfield tem tudo para agradar, neste início do século XXI, a todos os tipos de leitores, assim como, na época em que foi escrito, este e outros romances de Dickens agradavam a todos os níveis da sociedade vitoriana. Dickens era uma espécie de pop star da época. 


O vilão Uriah Heep, que também virou nome de banda de rock

Foi o primeiro romance de Dickens narrado em primeira pessoa e, dentre todos seus livros, era o seu favorito, como revelou no prefácio de sua edição de 1867. Além disso, as iniciais de David Copperfield, DC, são as iniciais invertidas de Charles Dickens (CD, coincidência essa que na verdade não teria sido proposital e teria surpreendido o próprio autor). Por estes e outros fatos os leitores da época acharam que David Copperfield fosse uma autobiografia disfarçada, um romance autobiográfico. Ora, se Dickens colocou muito de sua experiência de vida neste livro, existem também muitas divergências entre as vidas de Dickens e David. O livro é um romance em parte inspirado na vida do autor, mas também com muitos personagens e situações criados por sua imaginação. É a biografia, sim, do personagem fictício David Copperfield, não da pessoa real Charles Dickens.

Querem ver? Enquanto Dickens nasce em Portsmouth, na costa sul da Inglaterra, David nasce em Blundestone, na costa leste do país. David é filho único, já que seu irmão morre pouco depois de nascer. Já Dickens foi o segundo de oito filhos. Quando David nasce, seu pai já havia morrido. Já Dickens conheceu bem o pai. Tão bem que seu personagem Micawber é inspirado nele: tanto o pai de Dickens como Micawber vão parar na prisão por causa de dívidas.

Micawber

Enquanto o pai cumpria sua pena, Dickens, então com doze anos, foi mandado para trabalhar numa fábrica, colando rótulos em frascos de graxa de sapatos. O trabalho infantil na Inglaterra da época era comum, como era comum ter escravos aqui no Brasil. Também David Copperfield, depois que fica órfão, é mandado pelo padrasto malvado para trabalhar numa fábrica de vinhos. Quando o pai de Dickens recebeu uma herança e se livrou da prisão, o filho foi mandado para uma escola cujo diretor cruel gostava de espancar os meninos. Também David sofre nas mãos do Sr. Creakle, da Salem House, a escola onde começa seus estudos. Pelo menos na sua segunda escola, do Dr. Strong, David obtém uma boa educação, chance esta que Dickens não teve em sua vida. Dickens trabalhou como auxiliar num escritório de advocacia e, insatisfeito com o direito, aprendeu taquigrafia para poder obter um emprego transcrevendo os debates do Parlamento para um jornal. David Copperfield seguiu exatamente o mesmo caminho. 

Aos dezessete anos, Dickens se apaixona por Maria Beadnell, filha de um banqueiro, que a envia ao estrangeiro para afastá-la do pretendente. Também Copperfield apaixona-se perdidamente pela filha de seu patrão, só que no livro o desfecho desse amor é bem diferente da vida real do autor. Talvez, ao casar David com Dora, Dickens estivesse especulando sobre como teria sido sua vida se tivesse desposado Maria. Tanto Dickens quanto Copperfield passam uma temporada na Suíça, e ambos acabam bem-sucedidos na carreira literária. Ou seja, muita coisa no livro coincide com a vida de Dickens, mas muita coisa também é inventada.

Maria Beadnell

David Copperfield é um microcosmo da sociedade humana, onde você vê um pouco de tudo: temos um mini-O Ateneu nos capítulos que descrevem a vida escolar do personagem. Temos uma cabeleireira anã que parece saída de um circo. Temos a menina pobre que se deixa seduzir pelo moço rico. Temos o tio desesperado que se torna andarilho e percorre meia Europa em busca da sobrinha que se perdeu neste vasto mundo. Temos fraude financeira. Temos uma tempestade memorável que sela o destino de dois personagens importantes. Temos o menino ainda inocente enfrentando as maldades do mundo quando foge de Londres e percorre a pé o trajeto até Dover em busca de sua única parente viva, a tia Betsey, amalucada mas gente fina. Temos uma mulher de má fama, espécie de Maria Madalena, mas de bom coração (Martha). Temos uma paixão aparentemente impossível mas que, por um golpe do destino, acaba se viabilizando (mas não dá certo) e temos outra paixão bem mais viável & lógica mas que o protagonista, devido à imaturidade, quase joga na lata do lixo. Temos a emigração de alguns personagens para a então e ainda hoje remota Austrália, na época colônia britânica. Temos até uma cena onde David, ao visitar uma prisão dirigida pelo antigo diretor de sua escola, observa que os presidiários se alimentam bem melhor do que a maioria da comunidade honesta e trabalhadora, observação esta bem afinada com uma percepção contemporânea de que a lei protege o bandido em detrimento das pessoas de bem. 


Podemos dizer que esta e outras obras do Dickens são o que mais se aproxima de uma novela de TV do século XX. O livro foi lançado originalmente em 19 fascículos mensais de 32 páginas, normalmente três capítulos por fascículo, mas às vezes mais, de maio de 1849 a novembro de 1850. Imagine a angústia das pessoas tendo que aguardar meses e meses para saber o destino dos personagens e o desfecho da história. Como nas novelas, temos núcleos ricos e pobres, personagens fixos que sempre acabam reaparecendo, às vezes via coincidências meio forçadas etc. Como nas novelas, temos os mocinhos e os vilões. Assim como o musical veio da ópera e o cinema veio do teatro, a novela de rádio e TV do século XX veio do folhetim do século XIX. Afinal, numa época em que não havia rádio, TV ou cinema, a literatura fazia o papel do rádio, TV e cinema. E hoje a literatura dá suporte ao rádio, TV ou cinema. Afinal, um roteiro de uma novela ou série ou filme também é uma obra literária. O escritor de novela também é um grande escritor, e historiadores do século XXII, querendo reconstituir como era a vida no século XX, com certeza recorrerão às séries e novelas.

O ANEL DO NIBELUNGO. PARTE IV: O CREPÚSCULO DOS DEUSES

 

Se a terceira ópera da tetralogia [=conjunto de quatro obras de um autor, ligadas entre si por um tema comum] do anel, Siegfried, terminou em um hollywoodiano final feliz, como vocês viram no terceiro vídeo da série, agora, nesta quarta e última ópera, O Crepúsculo dos Deuses (Götterdämmerung) o encanto se desfaz ou, como dizia minha vovó, “acabou-se o que era doce, quem comeu regalou-se”. A maldição do anel atinge seu clímax com a morte trágica do herói e o cumprimento da profecia da destruição do Valhalla e dos deuses. E o anel, depois de causar tanta desgraça, enfim retorna às suas legítimas proprietárias, as Filhas do Reno, de quem Alberich havia roubado seu ouro, como vimos na primeira ópera.

As Filhas do Reno

A ópera começa por um prelúdio onde aparecem as três Nornas, o correspondente na mitologia nórdica às parcas da mitologia greco-romana, que tecem o fio do destino dos homens e deuses. A primeira Norna recorda o tempo pré-tetralogia em que permanecia ao lado da Weltesche, o freixo do mundo, que segunda a lenda nórdica sustenta o mundo. De um galho desse freixo o deus Wotan forjou sua famosa lança, em cuja haste gravava em runas os seus tratados,[1] lança esta destruída por Siegfried na terceira ópera. Mas ao arrancar o galho fez com que a árvore definhasse.

As Três Nornas


A segunda Norna recorda os feitos de Wotan no decorrer da tetralogia. A terceira Norna prevê o fim dos deuses num grande incêndio do Walhalla. A partir disto a visão das Nornas se turva e o fio que tecem se rompe. No final do prelúdio Brünhilde e Siegfried celebram seu amor, sem desconfiarem da tragédia iminente. Antes de partir em busca de aventuras na região do Rio Reno, pois de um herói não se espera uma vida caseira e pacata, Siegfried confia o anel mágico a Brünhilde como penhor de seu amor.

Hagen

O primeiro ato começa no palácio dos Gibichungos, governados por Gunther, que tem uma irmã chamada Gutrune. Gunther e Gutrune têm um meio-irmão que o anão Nibelungo Alberich teve com a mãe deles, chamado Hagen.


Siegfried e Gutrune

Embora Hagen não passe de um intrigante, Gunther o considera o mais sábio dos irmãos e costuma ouvir seus conselhos. Hagen observa que seus meios-irmãos ainda estão solteiros e sugere que atraiam o herói Siegfried para se casar com Gutrune, enquanto Brünhilde se casará com Gunther. Para viabilizar o plano, oferecerão a Siegfreid uma poção mágica que fará com que esqueça seu amor por Brünhilde. E de fato Siegfried, em sua jornada pelo Reno, acaba aparecendo, bebe da poção, esquece Brünhilde, apaixona-se por Gutrune, celebra um pacto de sangue com Gunther e parte com este para buscarem Brünhilde. Claro que a intenção secreta do filho do Nibelungo ao tramar esse plano é apossar-se do anel mágico.

Como só Siegfried consegue transpor o fogo que cerca o rochedo de Brünhilde, ele usa o Tarnhelm, o elmo mágico que permite mudar de forma, como vimos na primeira ópera, para assumir a aparência de Gunther e “conquistar” Brünhilde para ele. Siegfried não se lembra de que já foi apaixonado pela ex-Valquíria, mas esta lembra perfeitamente e reage com indignação à aproximação do falso Gunther. Ante a resistência de Brünhilde, Siegfried a domina à força e arrebata o anel. Siegfried passa a noite ao lado de Brünhilde, mas com a espada entre eles, em sinal de respeito por seu agora irmão de sangue Gunther.

Antes disso, Brünhilde recebeu a visita da valquíria Waltraute, que narra o sofrimento de Wotan. O deus ordenou que seus nobres derrubassem o freixo do mundo que murchou e trouxesse suas toras para o Walhalla. Lá aguarda, impotente, cercado das demais divindades, o iminente crepúsculo dos deuses. Só um acontecimento conseguirá impedir a tragédia profetizada: a devolução do anel às Filhas do Reno, cessando assim sua maldição. Waltraute pede isso a Brünhilde, mas esta não quer se desfazer daquela prova de amor de Siegfried. Mal imagina a traição em andamento.

O segundo ato começa no palácio dos Gibichungos. Hagen recebe a visita do pai, o Nibelungo Alberich, que o faz jurar que se apoderará do anel de Siegfried. Quando Siegfried e Gunther retornam trazendo Brünhilde prisioneira, esta fica perplexa ao ver que Siegfried vai se casar com Gutrune. Ao avistar o anel no dedo de Siegfried, Brünhilde arma o maior barraco, pois quando Siefried o arrancou de seu dedo, estava sob a forma de Gunther. Ao afirmar que Siegfried lhe pertence como marido, cria um tremendo mal-estar. Tanto Brünhilde como Siegfried juram pela lança de Hagen estarem dizendo a verdade. 

Siefried não se deixa abalar pela confusão e prepara-se para o casamento com Gutrune. Hagen consegue arrancar de Brünhilde o segredo do ponto fraco de Siegfried. Como Siegfried nunca dá as costas ao inimigo, suas costas são seu ponto fraco, seu “calcanhar de Aquiles”. Hagen planeja uma caçada no dia seguinte onde assassinará Siegfried e dirá que ele foi abatido por um javali. Assim termina o segundo ato.

O terceiro ato começa com a caçada no bosque. Siegfried se extravia dos companheiros e depara com as Filhas do Reno, que pedem que devolva o anel e com isso rompa a maldição. Ele se nega, e elas preveem sua morte nesse mesmo dia. Pela segunda vez uma chance de romper a maldição do anel não é aproveitada. Quantas chances os seres humanos, em sua insensatez, perdem na vida. Hagen oferece a Siegfried uma poção que anula o efeito da poção anterior, e o herói conta toda a sua história, que nós acompanhamos a partir da terceira ópera e não precisamos repetir aqui. Num momento em que Siegfried dá as costas para Hagen a fim de observar um corvo, o sinistro filho do Nibelungo aproveita para assassiná-lo. Ao agonizar, Siegfried reafirma seu amor por Brünhilde. A orquestra toca então a famosa marcha fúnebre de Siegfried que também é tocada em concertos sinfônicos fora da ópera. Você pode ouvir no YouTube, tem várias versões.

Quando os caçadores retornam trazendo o corpo do herói, Brünhilde não acredita na história do javali e Hagen acaba sendo desmascarado pelo meio-irmão Gunther, matando-o. As pretensões de Hagen sobre o anel são frustradas por Brünhilde, que manda preparar uma grande pira funerária onde o corpo do herói será queimado. Durante a cerimônia da cremação, ela se lança, em seu cavalo, sobre a pira, imolando-se. O fogo purifica o anel, livrando-o da maldição. O Rio Reno então sobe do leito trazendo as Filhas do Reno que enfim recuperam o anel. Depois de quatro horas e meia de ópera, para o deleite dos melômanos e tortura dos esnobes que foram lá só para ser exibirem e fingirem que são cultos, a maldição enfim chegou ao fim, mas a profecia se cumpriu: ao fundo, o Valhalla arde em chamas. Isto na concepção original de Wagner como vocês podem ver neste cenário de 1894 porque hoje em dia os diretores, querendo inovar, criam uns finais esdrúxulos que não têm nada a ver, como você poderá conferir assistindo às montagens disponíveis no YouTube. 


[1] Treu berath'ner Verträge Runen / schnitt Wotan in des Speeres Schaft

O ANEL DO NIBELUNGO. PARTE III: SIEGFRIED

Vimos nos dois vídeos anteriores como o anão Nibelungo Alberich se apossou do ouro do Reno e com ele forjou um anel que concede poderes especiais e um elmo que permite mudar de forma ou ficar invisível. O deus Wotan, auxiliado pelo semideus Loge, mediante um estratagema arrebatam o anel e o resto do tesouro do anão. Mas precisa entregá-lo aos gigantes Fafner e Fasolt como pagamento pela construção da morada dos deuses, o Walhalla. O Nibelungo lança uma maldição sobre o anel. Fafner mata Fasolt e transforma-se em dragão [Fafner na forma de um dragão] para melhor guardar o tesouro.

Com a deusa Erda, Wotan gerou as Valquírias, que conduzem os heróis mortos em batalha para o Valhalla. E com uma mulher mortal teve dois gêmeos, Siegmund e Sieglinde. Os irmãos se apaixonam e, como castigo, Sigmund morre em duelo e Sieglinde foge, grávida do irmão, para uma floresta, acobertada pela Valquíria Brünhilde. Leva consigo os destroços de uma espada mágica que Wotan havia enterrado num tronco e Siegmund conseguira arrancar. A Valquíria, castigada por Wotan, perde a imortalidade e permanecerá adormecida até que um herói a desperte.

Valquíria Brünhilde

Na terceira ópera do ciclo, Siegfried, ficamos sabendo que, na floresta, a fugitiva Sieglinde deparou com Mime, o anão Nibelungo irmão do Alberich que havia surrupiado o ouro do Reno. Mime recolheu aquela mulher desamparada em sua caverna, onde ela deu à luz um bebê, Siegfried, e logo depois faleceu. Ela entregou ao anão os destroços da espada de Siegmund, pai de Siegfried. Mime cria aquela criança com todo o carinho, mas com uma segunda intenção: usá-la para obter um dia o tesouro e anel mágico guardados pelo dragão. 

Mime e Siegfried

Siegfried não morre de amores por Mime, e só não abandona a caverna de Mime devido à curiosidade de descobrir quem foram seus verdadeiros pais. Porque viu sua imagem refletida na água e percebeu que é diferente demais do anão Mime para que este tivesse sido seu pai. Quando Siegfried enfim consegue extrair de Mime a informação sobre seus falecidos pais, quer que Mime restaure a espada destroçada para então, protegido por ela, sair mundo afora e não mais voltar. Esta foi a primeira cena do primeiro ato. 

Siegfried vê sua imagem refletida na água

Na segunda cena, o deus Wotan, disfarçado de andarilho, se oferece para responder às perguntas de Mime, apostando sua cabeça. Mime faz então três perguntas:

 1) Qual raça reúne-se nas profundezas da terra (welches Geschlecht tagt in der Erde Tiefe)? Resposta: Os Nibelungos, habitantes de Nibelheim.

2) Qual raça mora sobre as costas da terra (welches Geschlecht wohnt auf der Erde Rücken)? Resposta: Os gigantes, que moram em Riesenheim.

3) Qual é a raça que habita as alturas nubladas (welches Geschlecht wohnt auf wolkigen Höh’n)? Resposta: Os deuses, que habitam o Valhalla.

Agora a situação se inverte: Wotan faz três perguntas a Mime, que perderá sua cabeça se não conseguir responder.

A primeira pergunta é: Contra qual raça Wotan agiu mal mas, mesmo assim, é a mais querida por ele (Welches ist das Geschlecht, dem Wotan schlimm sich zeigte, und das doch das Liebste ihm lebt)? Resposta: Os Volsungos, raça de Siegmund e Siegfried.

Segunda pergunta: Qual espada Siegfried deve usar para matar o dragão Fafner e assim se apoderar do anel (Welches Schwert muß Siegfried nun schwingen, taug’ es zu Fafners Tod)? Resposta: A espada que Wotan encravou num tronco e que agora, em fragmentos, está sob a guarda de Mime.

Terceira pergunta: Quem Mime acha que forjará a espada a partir daqueles fragmentos (wer wird aus den starken Stücken Nothung das Schwert, wohl schweißen)? Mime confessa não saber a resposta, pois se julga incapaz de forjá-la. Wotan o repreende por ter feito perguntas inúteis quando poderia ter aproveitado para esclarecer esse ponto, e faz uma revelação: “Somente aquele que nunca conheceu o medo forjará a espada novamente” (Nur wer das Fürchten nie erfuhr, schmiedet Nothung neu.).” E embora ganhasse a aposta, Wotan poupa a cabeça de Mime, deixando-a para esta mesma pessoa que nunca aprendeu a ter medo (verfallen lass’ ich es dem, der das Fürchten nicht gelernt!). Que é o próprio Siegfried. Esta foi a segunda cena do primeiro ato.

No início da terceira cena, Siegfried vem cobrar de Mime a restauração da espada que está em fragmentos. Mime lembra as palavras do Andarilho de que perderá a cabeça para quem nunca conheceu o medo. A única saída é incutir o medo em Siegfried e para isto o levará até o dragão Fafner, em Neidhöhle. Mas Siegfried quer levar consigo a espada deixada pelo pai e, mesmo sem experiência na arte de trabalhar com metais, por não conhecer o medo consegue recuperá-la. Mime prevê que seu pupilo conseguirá arrebatar o anel e tesouro do dragão e conspira para se apoderar deles. Prepara uma poção venenosa que ministrará a Siegfried quando este estiver cansado, após a luta com o monstro. 

A espada recuperada

O segundo ato começa nas profundezas da floresta, na entrada da caverna do dragão. O anão Nibelungo Alberich monta guarda, na esperança de recuperar o anel e assim atacar o Valhalla com ajuda das hostes de Hella, deusa da morte. Na segunda cena Mime e Siegfried se aproximam da caverna do dragão. Mime tenta pôr medo em Siegfried descrevendo a fúria do dragão, mas este não se intimida, e pede que seu tutor o deixe a sós. Siegfried ouve um passarinho e gostaria de entender o que ele diz. 

O dragão

Ao tentar imitar a ave com sua trompa, acorda o dragão, enfrenta-o e, ao cravar a espada no seu coração, mata-o. Ao agonizar, o dragão o alerta para ter cuidado com Mime, que pretende matá-lo. Ao levar à boca os dedos sujos do sangue do dragão, Siegfried passa a entender a linguagem dos pássaros. O pássaro avisa sobre o tesouro guardado pelo dragão, incluindo o anel, que fará dele Walter der Welt, o senhor do mundo.

Siegfried mata o dragão

Na terceira cena, Alberich e Mime se encontram. Ambos desejam se apoderar do anel e do elmo, que estão na posse de Siegfried. O pássaro informa a Siegfried que, por ter provado o sangue do dragão, agora conseguirá ouvir o que se passa no íntimo de Mime e, assim, não será enganado por ele. Graças a esse poder Siegfried fica sabendo das intenções secretas de Mime (numa das cenas mais cômicas da ópera, em que Mime tenta mentir mas sempre se trai) e acaba matando-o. Siegfried lamenta a solidão e pede ao pássaro que lhe arranje alguma companhia. O pássaro dá uma de casamenteiro e diz que conhece a mulher ideal para ele: é a Valquíria Brünhilde que na ópera anterior, castigada por Wotan, foi adormecida no alto de um rochedo cercada de chamas. Só quem nunca conheceu o medo conseguirá transpor as chamas e despertar Brünhilde. O pássaro mostrará o caminho até ela. Siegfried parte eufórico em busca da Valquíria adormecida.

Siegfried e a valquíria adormecida

No início do terceiro ato, o Andarilho Wotan acorda a deusa da sabedoria, Erda, de um sono profundo para pedir conselhos. Diz Erda em bonita voz de contralto: Mein Schlaf ist Träumen, mein Träumen Sinnen, mein Sinnen Walten des Wissen, Meu sono é sonhar, meu sonho é refletir, minha reflexão é o domínio do saber. Wotan teme o ocaso dos deuses e quer que Erda o tranquilize. Infelizmente ela não pode fazer nada. Wotan acaba se conformando com o futuro fim dos deuses, pois deixa um herdeiro do qual se orgulha: o Volsungo Siegfried. Herdeiro este que, por não conhecer o medo, não é afetado pela maldição de Alberich.

Na segunda cena do último ato, Wotan depara com Siegfried, que seguiu o pássaro até o local onde dorme a Valquíria. Siegfried o trata com desdém, chegando a ameaçá-lo. Wotan tenta impedir Siegfried de ir ao encontro da Valquíria. Quem a despertar e conquistar privará Wotan do seu poder (wer sie erweckte, wer sie gewänne, / machtlos macht er mich ewig!). Mas Siegfried desafia o deus e o ataca espada em riste, quebrando-lhe a lança, a mesma que quebrara a espada nas mãos de Siegmund. Ele sobe o rochedo, enfrenta o fogo e depara com a Valquíria adormecida De início, pensa que é um soldado, mas ao retirar o elmo vê que é uma mulher, a primeira mulher que vê na vida. No início ela reluta em desposar o herói, pois como Valquíria não poderia amar um mortal, mas depois se recorda de que foi castigada e perdeu a imortalidade e se entrega ao amor humano, a ópera se encerrando com um final feliz


O ANEL DO NIBELUNGO. PARTE II: A VALQUÍRIA

 


A Valquíria é a segunda das quatro óperas do ciclo O Anel do Nibelungo. Baseia-se na Saga dos Volsungos islandesa e na Edda Poética nórdica. O papel central é desempenhado por uma Valquíria, Brünnhilde. Quem são as Valquírias?


São seres da mitologia nórdica que conduzem os heróis mortos em batalha para protegerem a morada dos deuses, o Valhalla. Por que é necessário proteger a morada dos deuses? Por causa do perigo do anel. No primeiro vídeo (que corresponde à primeira ópera), vimos como o Nibelungo surrupiou o ouro do Reno e com ele forjou o anel mágico que concede maaßlose Macht, poder ilimitado, sob a condição de renunciar ao amor. Vimos que esse anel foi parar nas mãos do gigante Fafner, que se transformou em dragão para melhor guardar seu tesouro. Mas o Nibelungo não se conforma com a perda e sonha em recuperar o anel para então atacar o Valhalla e destronar os deuses. Wotan aguarda o surgimento de um herói que se apoderará do anel do gigante, o que acontecerá na terceira ópera, Siegfried. O deus enterrou uma espada na pedra, como na história do Rei Artur, que ninguém mais a não ser esse herói conseguirá arrancar. Uma ameaça paira no ar. A deusa Erda profetizou que "wenn der Liebe finstrer Feind zürnend zeugt einen Sohn, der Sel’gen Ende säumt dann nicht", que em português simples significa: “Quando o inimigo do amor gerar um filho, o fim dos deuses não tardará.” Ora, o Nibelungo Alberich engravidou uma mulher. Os deuses correm sério perigo. 

Assim como Júpiter da mitologia greco-romana, o deus Wotan não hesita em se meter em aventuras amorosas, traindo a esposa, a deusa Fricka. Assim é que com a deusa Erda, a mãe primordial, gerou as Valquírias, e com uma mulher da raça dos Volsungos teve os irmãos gêmeos Siegmund e Sieglinde. No início da ópera, Siegmund, perseguido por inimigos, por acaso vem parar, exausto, exatamente na casa de Sieglinde. Um dia, quando criança, ao voltar de uma caçada com o pai, encontraram a casa queimada pelos inimigos, a mãe assassinada, e a menina desaparecera. Desde então nunca mais a viu e sequer sabia se estava viva. Sieglinde mora com o marido Hunding (Hund em alemão significa cão) com quem teve de se casar contra a vontade e que a faz sofrer. Tanto é que, no inicio da ópera, quando Siegmund faz menção de ir embora para não contaminá-la com seu azar, ela responde: “Nicht bringst du Unheil dahin, wo Unheil im Hause wohnt!”, ou seja, “Você não vai trazer azar a uma casa onde o azar já mora.” Sieglinde cuida das feridas de Siegmund, mas quando Hunding retorna e Siegmund conta a ele sua fuga, Hunding reconhece ter sido um dos perseguidores de Siegmund e diz que naquela noite este poderá se abrigar em sua casa, mas na manhã seguinte os dois se enfrentarão em duelo. À noite Sieglinde ministra um narcótico ao marido e na longa conversa que tem com Siegmund, os dois irmãos acabam se apaixonando. E, como já notara Hunding, eles percebem a sua semelhança e descobrem que são os irmãos gêmeos separados na infância. Na noite do casamento forçado de Sieglinde com Hunding, Wotan apareceu, disfarçado de um velho andarilho, e lá deixou a espada mágica encravada num tronco, que desde então ninguém havia conseguido arrancar, e que Sieglinde reconhece que foi destinada a Siegmund. Ela chega a perceber a semelhança entre os olhos daquele velho e os do irmão que veio parar em sua casa, e este de fato arranca espada.


Após esta cena, os irmãos assumem seu amor incestuoso, no final do primeiro ato. Até aqui nosso herói se chamou Wolfling (lobinho) quando criança e Wehwalt, “dominado pela dor”, depois de adulto. Agora que está protegido pela força da espada, recebe de Sieglinde o nome Siegmund, “destinado à vitória”. Sieg em alemão é vitória. Sieglide é formado por Sieg + linde, gentil. No início do segundo ato, Wotan está instruindo a Valquíria Brünnhilde a proteger Siegmund em seu duelo com Hunding. Eis que se aproxima Fricka, deusa do matrimônio, furiosa com o fato do marido aceitar tranquilamente o amor incestuoso dos filhos bastardos. Ela enche a paciência de Wotan até convencê-lo a ficar do lado dela. Depois desta cena, Wotan se abre para a Valquíria, revela que é o mais triste dos seres e muda suas instruções: a vontade de Fricka deve prevalecer e Siegmund deve morrer no duelo. 


A própria Sieglinde, em fuga com Siegfried, tem maus pressentimentos. Siegmund e Sieglinde se beijam numa cena cinematográfica, com uma música cinematográfica, realçando mais um fato sobre Wagner: ele é um precursor da música de cinema do século XX. Mas quando a Valquíria vai avisar Siegmund de que este morrerá e a acompanhará até o Valhalla, onde desfrutará a companhia de uma Wünschmädchen (moça do desejo), umas periguetes filhas de Wotan que devem ser aparentadas com as huris do paraíso muçulmano, ele diz: “So grüße mir Walhall, grüße mir Wotan, [...] grüß' auch die holden Wunschesmädchen: zu ihnen folg' ich dir nicht!” (Manda lembranças para o Valhalla, para Wotan e para as moças do desejo, pois eu não vou segui-la até eles). A Valquíria acaba resolvendo desafiar a ordem do deus e proteger o pobre apaixonado. Só que na hora do duelo Wotan aparece, destroça a espada de Siegmund, permitindo que Hunding o trespasse com a lança, matando-o. Brünnhilde foge com Sieglinde levando os fragmentos da espada de Siegmund. 

E assim termina o segundo ato. O terceiro ato na ópera começa no cume de uma montanha rochosa, onde vivem as Valquírias. Aqui você vai ouvir uma das músicas mais famosas do Wagner, que é o tema, o leitmotiv das valquírias. No primeiro vídeo expliquei o que é um leitmotiv. Esse tema se popularizou com o filme Apocalipse Now. Geralmente as Valquírias carregam heróis para conduzirem ao Valhalla. Por isso, quando Brünnhilde aparece com uma mulher, Sieglinde, causa espanto. Sieglinde quer morrer, mas quando Brünnhilde informa que está grávida de Siegmund, muda de ideia e deseja se salvar. Wotan se aproxima furioso. Sieglinde foge para o leste em direção à floresta onde o dragão guarda o anel. Brünnhilde fica e enfrenta a fúria do pai. Este lhe impõe um castigo: ela será adormecida e terá que se casar com o primeiro homem que a encontrar e acordar. Brünnhilde dialoga com o pai e explica que, se por um lado desobedeceu à sua ordem, por outro lado cumpriu seu desejo mais profundo, já que Wotan está dividido e, ao se dobrar à vontade de Fricka, voltou-se contra si mesmo. Brünnhilde pede que o castigo seja ao menos atenuado. Assim, ela perde os poderes de Valquíria e será adormecida, mas protegida por um fogo para que apenas um herói valoroso consiga se aproximar e acordá-la. Esse tema da bela adormecida já vimos num conto de fadas de Grimm. 


Antes de terminar, uma digressão. Qual o papel de uma ópera no mundo contemporâneo? Existe ainda público para obras de tão longa duração? As quatro óperas do Anel ultrapassam as quinze horas, numa média de quase quatro horas por ópera. E por que um cantor de ópera não pode cantar com uma voz normal, sem impostação, como num musical? Lembremos que na época em que as óperas foram compostas as pessoas não dispunham de aparelhos elétricos ou eletrônicos em que pudessem passar o dia ouvindo músico. No máximo, quem tinha dinheiro, tinha um piano em casa. Então quando a pessoa ia à sala de concertos estava ávida por música, queria tirar o atraso, ouvir horas a fio. E não época anterior à invenção do microfone, sem a impostação da voz, como projetá-la para se tornar audível a todo o público de uma imensa sala de concertos? No século XX, a ópera evoluiu no musical, assim como o teatro evoluiu no cinema e a pintura evoluiu na fotografia, mas as formas novas não extinguem as formas antigas, e sim coexistem com elas.

O ANEL DO NIBELUNGO. PARTE I: O OURO DO RENO



O Anel do Nibelungo é um conjunto de quatro óperas do compositor alemão Richard Wagner – uma tetralogia, como se diz – que foi composto para ser encenado em quatro noites seguidas. Foi escrito entre 1848 e 1874 e estreou integralmente em 1876, embora algumas das óperas já tivessem estreado isoladamente antes. A estreia foi no teatro de Bayreuth, construído pelo próprio Wagner, que existe até hoje. Para conseguir ingresso para a encenação do ciclo você tem que ficar numa fila de espera por anos, ouvi dizer. Assim como Charles Chaplin dirigia, produzia, compunha a música, fazia o roteiro e era dono do estúdio de seus próprios filmes geniais, Wagner compunha a música, escrevia a letra (que em linguagem de ópera se chama libretto – aliás altamente poética num belíssimo e difícil alemão), produzia e dirigia a montagem e era dono do próprio teatro. Se Wagner era antissemita, e a apropriação de sua música pelos nazistas é algo que preciso aprofundar e por isso não abordarei aqui.

A ópera de Wagner rompe com a ópera tradicional organizada em árias, duetos, coros, etc., e onde a orquestra apenas acompanha o canto. Aqui você tem um todo que vai fluindo organicamente, e a orquestra tem a mesma importância das vozes. Aliás, Wagner não só expandiu a orquestra, mas deu uma nova ênfase à seção dos metais, chegando a encomendar instrumentos novos, saídos da sua cabeça, para preencher lacunas sonoras que ele percebeu.

O Anel do Nibelungo bebe das fontes das mitologias germânica e nórdica, valendo-se de elementos como o anel que concede poder, o elmo que proporciona a invisibilidade e a possibilidade de mudar de forma, o dragão, os gigantes, a morada dos deuses, a decadência dos deuses como uma metáfora da decadência humana, o amor proibido, incestuoso, os deuses da mitologia nórdica, tudo isto e ainda mais a gente vê no Anel. Ah, e tem a espada mágica cravada na pedra como na lenda do Rei Artur. A minha geração viu isto no desenho da Disney A Espada Era Lei, que mostra outro elemento da ópera de Wagner: Merlin e Madame Min num duelo em que vão mudando de forma, como no duelo entre Wotan e o Nibelungo pela posse do anel.

O Anel do Nibelungo tem algo a ver com O Senhor dos Anéis? Embora Tolkien, dentre suas muitas fontes, também utilize a mitologia nórdica e embora em O Ouro do Reino exista uma menção explícita ao “senhor do anel” (des Ringes Herrn), as duas histórias (pelo que vi no resumo da Wikipedia, pois não li o livro do Tolkien) são completamente diferentes.

Um conceito musical importante que Wagner desenvolveu no ciclo do anel é o do leitmotiv, tema ou motivo condutor, que é um tema musical associado a um personagem, um local, um sentimento, um objeto... A ideia de leitmotif teve ampla aplicação no cinema, por exemplo, no Guerra nas Estrelas, temos o tema de Darth Vader, da Força, dos androides, dos asteroides, etc. No YouTube tem vídeos explicitando os leitmotivs, é só pesquisar "Wagner leitmotif" que você acha.

Aqui vou contar a história da primeira das quatro óperas, O Ouro do Reno. Depois farei vídeos/postagens das três óperas seguintes. Portanto, fiquem de olho. A ópera começa com uma música meio etérea, meio espacial, tanto é que existe um vídeo aqui no YouTube que toca esta música com uma filmagem da terra vista do espaço.

Vamos à história. Ela começa no fundo do Rio Reno, onde vivem as filhas do Reno, inocentes e formosas criaturas que guardam um tesouro, o ouro do Reno. Limitam-se a desfrutar a beleza do ouro, sem nenhuma ambição de explorar seu poder. Porque quem forjar um anel com esse ouro ganhará poderes ilimitados. Mas existe uma contrapartida: para ganhar esses poderes, é preciso renunciar ao amor, algo aparentemente impossível a qualquer ser vivo.

Num reino subterrâneo, Nibelheim, vivem os anões Nibelungos. Um deles, Alberich, desce ao leito do Reno e tenta conquistar as Filhas do Reno, mas tudo que recebe são negaças e deboche. As sedutoras criaturas fazem gato e sapato dele. Enfurecido, decide então algo que parecia impossível: renuncia ao amor, e foge levando o ouro roubado. Esta é a primeira cena da ópera.

A segunda cena transcorre no cume de uma montanha, onde vivem os deuses. O líder dos deuses, Wotan (que corresponde a Odin na mitologia nórdica), encomendou aos gigantes Fafner e Fasolt a construção de uma grandiosa morada, o Valhalla. Para tal, prometeu dar-lhes a mão de Freia, deusa do amor e guardiã das maçãs douradas da eterna juventude. Mas sua irmã Fricka, deusa do matrimônio e esposa de Wotan, está indignada com a promessa que o marido fez aos gigantes. Só que que para desfazê-la Wotan tem que oferecer aos gigantes algo em troca, que seja extremamente valioso, senão eles não vão querer abrir mão de Freia. Os gigantes aparecem e cobram o pagamento por seu trabalho.

Freia, deusa do amor e guardiã das maçãs douradas da eterna juventude. 

Eis que entra em cena o astuto Loge, semideus do fogo, que rodou o mundo em busca de algo que apetecesse aos gigantes e traz a solução: darão aos gigantes o tesouro roubado por Alberich. Mas para isto terão de descer ao reino subterrâneo e surrupiá-lo do Nibelungo.

Na terceira cena, Loge e Wotan descem ao reino dos Nibelungos e constatam que Alberich não só forjou o anel que proporciona poderes absolutos, mas também obrigou o irmão ferreiro, Mime, a forjar um elmo mágico que lhe permite ficar invisível ou mudar de forma, transformando-se no que bem entender. Munido desses poderes Alberich escravizou o seu povo e o obriga a explorar uma mina de ouro e aumentar ainda mais o tesouro que roubou do fundo do Reno. Vai ser difícil para Wotan e Loge arrancar esses tesouros de Alberich mas eles usam um estratagema. Fingem-se de admirados e o induzem a exibir seus poderes, primeiro transformando-se numa enorme cobra, depois num pequenino sapo. Alberich cai na armadilha e, ao se transformar no sapo, é capturado por Wotan e levado para o alto da montanha. Interessante que esse estratagema de induzir um feiticeiro a se transformar num animal indefeso para dominá-lo figura na história do Gato de Botas!

Na quarta e última cena, os gigantes, que levaram Freia como refém, voltam para apanhar seu pagamento. Wotan pretende entregar apenas o ouro, ficando com o anel e o elmo para si. Mas os gigantes exigem que o tesouro seja empilhado de tal maneira que esconda Freia, e para isto o ouro sozinho não basta. No final fica uma pequena fresta que deixa à mostra o olho de Freia, e para tapá-la Wotan terá que abrir mão do anel. Ele reluta, mas a deusa Erda, a mãe primordial detentora de toda sabedoria, o convence a entregar aquela preciosidade. Porque Alberich, enfurecido, lançou sobre o anel uma maldição, e quem o possuir será cumulado de desgraças. A maldição já começa a funcionar quando os gigantes brigam pela divisão do tesouro e Fafner mata o irmão Fasolt. No final da ópera os deuses se mudam para a sua nova morada, o Valhalla, numa cena memorável. Mas as filhas do Reno lamentam o ouro roubado e não devolvido.

os gigantes brigam pelo anel


Existe uma tradução em português do libreto do Anel em ebook na Amazon.

FERNANDO LEITE MENDES: UM MESTRE DA CRÔNICA



UM MESTRE DA CRÔNICA, de CYRO DE MATTOS

De origem grega, a palavra crônica vem de chronos, que quer dizer tempo. Forma textual de narrativa curta, possui uma inclinação para os fatos da vida diária, contemporâneos. Escrita para o jornal ou revista, televisão ou rádio, o estofo literário retira-lhe a condição estrita de jornalismo, cuja linguagem é objetiva para informar o fato. Conciso e útil, o jornalismo pretende aproximar do evento os seres humanos com a linguagem precisa, onde quer que estejam, para que tomem conhecimento do que acontece no mundo, enquanto a crônica ameniza a notícia ou o evento levado ao leitor sobre a vida diária.

Na crônica de humor, o autor faz graça com o cotidiano. Na crônica ensaio, o cronista tece crítica ao que acontece no sistema organizado, detectando falhas nas relações sociais e de poder. Na crônica filosófica logra extrair do cotidiano reflexões sábias a partir de um fato. Na jornalística enfoca aspectos particulares de notícias ou fatos, que podem acontecer na área esportiva, policial e política ou em outros campos da atuação humana.

Pode ser atemporal, se o assunto, extraído da realidade exterior sob bases sentimentais, revestir-se de arcabouço literário, servindo para ser lido tempos depois desgarrado do seu contexto e ainda assim causando emoção. Sempre dando tratamento agradável ao assunto em que está descrevendo, a crônica é de tal forma argumentativa ou digressiva nos devaneios dos sentimentos. Seu lirismo poetiza a vida, aviva o evento com graça, tornando-o ameno pelo eu que o recorda no relógio do peito.

A crônica atingiu o ápice na Idade Média quando passou a registrar uma série de acontecimentos e a obedecer uma sequência linear. Nessa época era destituída de qualquer interpretação nas informações de natureza histórica. Com a significação dos fatos em fase moderna entrou em uso no século XIX, passando a designar textos que, embora remotamente se ligam à forma originária, revestem-se de tratamento literário para tornar o assunto menos insípido e fugaz. Em nossas letras, Machado de Assis, no século XIX, com engenho e arte encontrou os meios necessários para lhe dar expressividade.

          A crônica no seu arcabouço de escrita híbrida, entre o jornal e o literário, não apresenta limites muito definidos. Sujeita ao efêmero que passa ante o eterno que fica, o espaço que melhor achou para morar e se expandir foi o jornal, lugar em que demonstra leveza na informação do fato e corresponde ao que os ingleses chamam de commentary, sketch, light essay, literary column, human interest story. Usa a oralidade na fala dos personagens e o coloquial na escrita, a linguagem é simples, alguns querem que seja como poesia espontânea em forma de prosa.

     A crítica não aceita a crônica como uma expressão literária significativa, se comparada ao romance, à poesia e ao conto. Nenhuma literatura se faz grande com livros de crônicas, alega-se. No Brasil, quando se fala em cronistas de primeira grandeza soam com aplausos os nomes de Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Carlos Heitor Cony, Henrique Pongeti, Stanislaw Ponte Preta, Rachel de Queiroz, Carlos Drummond de Andrade, Nelson Rodrigues e Fernando Veríssimo.

     No elenco formado por esses cronistas de primeira qualidade poderia figurar o baiano (de Ilhéus) Fernando Leite Mendes?

        Como todo bom autor, ele escreveu um sem-número de crônicas para todos os gostos com fina sensibilidade. Dariam, se publicadas, vários volumes. Ficaram esparsas, esquecidas, perdidas no baú do tempo. O único livro desse cronista admirável, Os olhos azuis de D. Alina e algumas crônicas (1985), hoje uma raridade bibliográfica, foi publicado postumamente, graças à iniciativa do sobrinho Gumercindo Leite Mendes. O volume reúne cinquenta crônicas, algumas antológicas, como “Os gatos e “Elogio do urubu, a primeira de humor e a segunda com sabor de prosa poética; “João da Verdura” e “Adeus, Tamiroff”, crônicas, como de resto, além do cotidiano, de tão humanas, atingem o universal, em seus tons carregados de subjetividade comovente. Apresentam-se pontuadas de ternura na exposição do drama.

     Jornalista de talento excepcional, de Salvador seguiu Fernando Leite Mendes com sua vocação para o Rio onde, nos anos em que residiu na metrópole, nunca esqueceu as raízes baianas, sintonizadas em Ilhéus e Salvador. Em terras cariocas, no seu voo de homem inteligente, se impôs como editor, redator e cronista dos principais veículos da imprensa. Lúcido, esteve presente em algumas colunas importantes que assinou: “O homem da rua”, “ A poesia do asfalto”, “Sextas-feiras estórias”. Foi editor político do jornal “Última Hora”, redator da “Revista da Semana e do “Consórcio Time-Life”, exímio editorialista do “ Diário de Notícias” e do “Correio da Manhã”, redator-chefe do “Diário Carioca”. A notícia informada por ele estava em boas mãos.

Intensamente humano, autêntico lírico que gostava de expressar o lado encantador da vida, como mostra em várias passagens de “Os olhos azuis de D. Alina”; com a alma triste pelo que percebeu na figura de Jacinto de Gouveia, um tocador de piano no cabaré de Ilhéus, que fumava cachimbo inglês e usava cachecol, na cidade atlântica de clima tropical, vivendo pobremente, e que, na última vez que viu o cronista, pediu-lhe que trouxesse do Rio a partitura do poema sinfônico Finlândia, de Sibelius; irônico como pede o assunto em Um comedor de vidro”; alegre com os lances aguerridos da pelada, vista da janela, quando então se revoltou com o adulto que quis interrompê-la, depois aceitou o convite dos meninos e foi pegar no gol.

Com uma capacidade de falar de modo simples e, ao mesmo tempo, sedutor e culto, de gesto solidário e terno, o tempo não quis que esse amanuense da palavra vivesse mais anos aqui entre os humanos. Foi-se embora aos 48 anos. Tivesse mais tempo para esbanjar seu talento verbal, certamente teria posto numa festa demorada da vida mais riso, fraternidade, esperança e sonho, companhias necessárias, ontem como hoje. Haveria mais leitura desses momentos fotográficos que ele registrou no teclado da sua máquina portátil Remington, levada para ser usada onde estivesse, em Hong Kong ou Paris. Mais escuta sensível dos seres humanos haveria, graças a um senhor gordo, com alma de menino, um relógio de cordas suaves no peito, cujos ponteiros costumavam marcar como poesia os passos da existência. Mais divulgado, em seu brinquedo preferido, a crônica, ensejaria minutos de delícia às novas gerações.

CRÔNICA DE ARTUR DA TÁVOLA SOBRE FERNANDO LEITE MENDES
(fonte: https://wilsonleitemendes.blogspot.com/p/fernando-leite-mendes.html):



COPACABANA ACENDE VELAS
Crônica de Fernando Leite Mendes publicada no Correio da Manhã de 29 de setembro de 1964


As igrejas de Copacabana são poucas, porém sinceras. A titular, que é a de Nossa Senhora de Copacabana, propriamente dita, está sob ameaça de se transformar num imenso edifício-hotel, com campo de pouso de helicópteros no terraço. O heliporto em cima e uma capela substituta na base, como se, afinal, não fosse a fé a base de tudo e o heliporto milenar de todos os anjos.

Mas há uma que fica à porta do bairro, sentinela escandalizada diante da veemência dos motoristas todos que invadem o Túnel Novo, em busca da velha praia.

É a Igreja de Santa Terezinha do Menino Jesus, pureza de templo feio, de linhas duras e pouca arquitetura,[1] postada à entrada do universo da Zona Sul, urbi et orbi de muito menos pecado do que todo mundo supõe.

Pelo menos, Copacabana vai mais à missa do que se imagina. E guarda os dias santos. E em maio reza as novenas do Mês de Maria. É pura maldade pensar que as pessoas deixam a fé no subúrbio e a devoção na Zona Norte. Copa é terra de homens, mulheres e meninos que temem a Deus e sabem que religião também tem hora. Até porque ninguém é fanático.

Aquele noviço de Minas Gerais, que trouxe de Ouro Preto a saudade da glória dos tempos velhos, ficou triste no dia em que descobriu Copacabana. "Muito mais gente na praia do que na Igreja", pensou o servo do Senhor, em melancolia. Mas logo que foi estendendo os olhos de rapaz de claustro pelas águas, pelas areias e pelas gentes, tudo debaixo do sol daquele dia, acabou reconhecendo: "Mas essa também é uma festa de Nosso Senhor". A noite é que é de Nossa Senhora. E da humilde Terezinha de Jesus, pelo menos na sua igreja à porta do Túnel.

Pois ali, a fé achou a nave pequena e ganhou o passeio da rua. Então, a primeira vela se acendeu. e depois a segunda e a terceira. E hoje nem o vento apaga, soprando forte, a marca de luz daquelas velas.

A luz daquelas velas está acesa no coração de Copacabana, a ímpia. E a força da igrejinha feia, à entrada do Túnel, é tão grande, que, de bonde (antigamente), de carro, de ônibus ou a pé, todo mundo que passa ali se benze. Até os ateus. E fazem muito bem.




[1] Trata-se de um projeto art-déco, de linhas geométricas (foto abaixo).