O ANEL DO NIBELUNGO. PARTE II: A VALQUÍRIA

 


A Valquíria é a segunda das quatro óperas do ciclo O Anel do Nibelungo. Baseia-se na Saga dos Volsungos islandesa e na Edda Poética nórdica. O papel central é desempenhado por uma Valquíria, Brünnhilde. Quem são as Valquírias?


São seres da mitologia nórdica que conduzem os heróis mortos em batalha para protegerem a morada dos deuses, o Valhalla. Por que é necessário proteger a morada dos deuses? Por causa do perigo do anel. No primeiro vídeo (que corresponde à primeira ópera), vimos como o Nibelungo surrupiou o ouro do Reno e com ele forjou o anel mágico que concede maaßlose Macht, poder ilimitado, sob a condição de renunciar ao amor. Vimos que esse anel foi parar nas mãos do gigante Fafner, que se transformou em dragão para melhor guardar seu tesouro. Mas o Nibelungo não se conforma com a perda e sonha em recuperar o anel para então atacar o Valhalla e destronar os deuses. Wotan aguarda o surgimento de um herói que se apoderará do anel do gigante, o que acontecerá na terceira ópera, Siegfried. O deus enterrou uma espada na pedra, como na história do Rei Artur, que ninguém mais a não ser esse herói conseguirá arrancar. Uma ameaça paira no ar. A deusa Erda profetizou que "wenn der Liebe finstrer Feind zürnend zeugt einen Sohn, der Sel’gen Ende säumt dann nicht", que em português simples significa: “Quando o inimigo do amor gerar um filho, o fim dos deuses não tardará.” Ora, o Nibelungo Alberich engravidou uma mulher. Os deuses correm sério perigo. 

Assim como Júpiter da mitologia greco-romana, o deus Wotan não hesita em se meter em aventuras amorosas, traindo a esposa, a deusa Fricka. Assim é que com a deusa Erda, a mãe primordial, gerou as Valquírias, e com uma mulher da raça dos Volsungos teve os irmãos gêmeos Siegmund e Sieglinde. No início da ópera, Siegmund, perseguido por inimigos, por acaso vem parar, exausto, exatamente na casa de Sieglinde. Um dia, quando criança, ao voltar de uma caçada com o pai, encontraram a casa queimada pelos inimigos, a mãe assassinada, e a menina desaparecera. Desde então nunca mais a viu e sequer sabia se estava viva. Sieglinde mora com o marido Hunding (Hund em alemão significa cão) com quem teve de se casar contra a vontade e que a faz sofrer. Tanto é que, no inicio da ópera, quando Siegmund faz menção de ir embora para não contaminá-la com seu azar, ela responde: “Nicht bringst du Unheil dahin, wo Unheil im Hause wohnt!”, ou seja, “Você não vai trazer azar a uma casa onde o azar já mora.” Sieglinde cuida das feridas de Siegmund, mas quando Hunding retorna e Siegmund conta a ele sua fuga, Hunding reconhece ter sido um dos perseguidores de Siegmund e diz que naquela noite este poderá se abrigar em sua casa, mas na manhã seguinte os dois se enfrentarão em duelo. À noite Sieglinde ministra um narcótico ao marido e na longa conversa que tem com Siegmund, os dois irmãos acabam se apaixonando. E, como já notara Hunding, eles percebem a sua semelhança e descobrem que são os irmãos gêmeos separados na infância. Na noite do casamento forçado de Sieglinde com Hunding, Wotan apareceu, disfarçado de um velho andarilho, e lá deixou a espada mágica encravada num tronco, que desde então ninguém havia conseguido arrancar, e que Sieglinde reconhece que foi destinada a Siegmund. Ela chega a perceber a semelhança entre os olhos daquele velho e os do irmão que veio parar em sua casa, e este de fato arranca espada.


Após esta cena, os irmãos assumem seu amor incestuoso, no final do primeiro ato. Até aqui nosso herói se chamou Wolfling (lobinho) quando criança e Wehwalt, “dominado pela dor”, depois de adulto. Agora que está protegido pela força da espada, recebe de Sieglinde o nome Siegmund, “destinado à vitória”. Sieg em alemão é vitória. Sieglide é formado por Sieg + linde, gentil. No início do segundo ato, Wotan está instruindo a Valquíria Brünnhilde a proteger Siegmund em seu duelo com Hunding. Eis que se aproxima Fricka, deusa do matrimônio, furiosa com o fato do marido aceitar tranquilamente o amor incestuoso dos filhos bastardos. Ela enche a paciência de Wotan até convencê-lo a ficar do lado dela. Depois desta cena, Wotan se abre para a Valquíria, revela que é o mais triste dos seres e muda suas instruções: a vontade de Fricka deve prevalecer e Siegmund deve morrer no duelo. 


A própria Sieglinde, em fuga com Siegfried, tem maus pressentimentos. Siegmund e Sieglinde se beijam numa cena cinematográfica, com uma música cinematográfica, realçando mais um fato sobre Wagner: ele é um precursor da música de cinema do século XX. Mas quando a Valquíria vai avisar Siegmund de que este morrerá e a acompanhará até o Valhalla, onde desfrutará a companhia de uma Wünschmädchen (moça do desejo), umas periguetes filhas de Wotan que devem ser aparentadas com as huris do paraíso muçulmano, ele diz: “So grüße mir Walhall, grüße mir Wotan, [...] grüß' auch die holden Wunschesmädchen: zu ihnen folg' ich dir nicht!” (Manda lembranças para o Valhalla, para Wotan e para as moças do desejo, pois eu não vou segui-la até eles). A Valquíria acaba resolvendo desafiar a ordem do deus e proteger o pobre apaixonado. Só que na hora do duelo Wotan aparece, destroça a espada de Siegmund, permitindo que Hunding o trespasse com a lança, matando-o. Brünnhilde foge com Sieglinde levando os fragmentos da espada de Siegmund. 

E assim termina o segundo ato. O terceiro ato na ópera começa no cume de uma montanha rochosa, onde vivem as Valquírias. Aqui você vai ouvir uma das músicas mais famosas do Wagner, que é o tema, o leitmotiv das valquírias. No primeiro vídeo expliquei o que é um leitmotiv. Esse tema se popularizou com o filme Apocalipse Now. Geralmente as Valquírias carregam heróis para conduzirem ao Valhalla. Por isso, quando Brünnhilde aparece com uma mulher, Sieglinde, causa espanto. Sieglinde quer morrer, mas quando Brünnhilde informa que está grávida de Siegmund, muda de ideia e deseja se salvar. Wotan se aproxima furioso. Sieglinde foge para o leste em direção à floresta onde o dragão guarda o anel. Brünnhilde fica e enfrenta a fúria do pai. Este lhe impõe um castigo: ela será adormecida e terá que se casar com o primeiro homem que a encontrar e acordar. Brünnhilde dialoga com o pai e explica que, se por um lado desobedeceu à sua ordem, por outro lado cumpriu seu desejo mais profundo, já que Wotan está dividido e, ao se dobrar à vontade de Fricka, voltou-se contra si mesmo. Brünnhilde pede que o castigo seja ao menos atenuado. Assim, ela perde os poderes de Valquíria e será adormecida, mas protegida por um fogo para que apenas um herói valoroso consiga se aproximar e acordá-la. Esse tema da bela adormecida já vimos num conto de fadas de Grimm. 


Antes de terminar, uma digressão. Qual o papel de uma ópera no mundo contemporâneo? Existe ainda público para obras de tão longa duração? As quatro óperas do Anel ultrapassam as quinze horas, numa média de quase quatro horas por ópera. E por que um cantor de ópera não pode cantar com uma voz normal, sem impostação, como num musical? Lembremos que na época em que as óperas foram compostas as pessoas não dispunham de aparelhos elétricos ou eletrônicos em que pudessem passar o dia ouvindo músico. No máximo, quem tinha dinheiro, tinha um piano em casa. Então quando a pessoa ia à sala de concertos estava ávida por música, queria tirar o atraso, ouvir horas a fio. E não época anterior à invenção do microfone, sem a impostação da voz, como projetá-la para se tornar audível a todo o público de uma imensa sala de concertos? No século XX, a ópera evoluiu no musical, assim como o teatro evoluiu no cinema e a pintura evoluiu na fotografia, mas as formas novas não extinguem as formas antigas, e sim coexistem com elas.

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