TORTA PODEROSA, de Silvana Vargas


Deu entrada na emergência do hospital, na última semana do ano, conhecido empresário de meia idade com sintomas gástricos que, apesar de rotineiros, intrigaram os residentes de plantão. Gritando frases desconexas, memória alterada, trocando letargia e agitação enquanto recebia mil e um tubos. Depois de levá-lo para submeter-se à bateria de exames, o plantonista colocou o doente no soro e localizou a família. No entanto, os parentes tinham diversas explicações que em nada somavam ao confuso diagnóstico.

Eis que, incrementando o incidente, o filho adolescente lembrou que os pais iriam viajar. Que pediu à amiga uma certa torta coberta de chocolate para animar a festinha com os amigos. Tudo combinado, recebeu o jovem a encomenda e, sem saber que a viagem dos pais fora adiada, deixou o doce enfeitando a bancada da cozinha. Indagando aqui e acolá, os médicos ficaram sabendo que o dono da casa, perfeito chocólatra, viu apetitosa sobremesa dando mole na copa e comeu um belo pedaço. Nem sonhava que a tal torta de ervas e chocolate era receita especial de Amsterdã, encomendada em aprazível ponto de doces do bairro. Enfim, dentre os amigos do investigado, houve quem lembrasse que a tal erva era coisa que, aquele senhor – empresário conhecido da melhor sociedade carioca – não provara nem na juventude. Era asmático.

Mais tarde ficou o médico sabendo que a dedicada cozinheira da família também não resistiu. Comeu a torta e mandou o serviço para o espaço .

– Ô torta poderosa, doutor! Fiquei chapada por dois dias inteirinhos.

POR QUE TODAS SÃO LOURAS? de Roberto Petti Pinheiro

Pesadelo. Isso. Só pode ser. Estou no meio de um pesadelo daqueles. Daqueles em que tentamos correr e o corpo pesa toneladas; em que tentamos gritar e a voz não sai; em que tentamos fugir e não conseguimos. Mas como pode ser pesadelo se não me lembro de ter ido dormir? Estava naquela festa e, até agora, bebera apenas duas doses de uísque – não dava para ficar bêbado. Será que colocaram alguma coisa na minha bebida? Caí no boa-noite-cinderela? Não, o Jorge, cara legal, não ia deixar fazerem baixaria em festa na casa dele. Pelo contrário. Tanta gente bonita circulando, por que ele permitiria que prejudicassem um amigo?

Olho para os lados e só vejo louras. Não estou na Suécia nem na Finlândia, e estou cercados de mulheres com longos cabelos louros e lisos, jogados, estudada displicência, de um lado para outro.

Estranho país este nosso onde a insatisfação com o próprio corpo e a preocupação com a aparência atingiram níveis epidêmicos. É só abrir qualquer revista de fofoca que as notícias saltam: fulaninha puxou aqui, sicraninha colocou mais alguns mililitros ali, beltraninha tirou de lá. Nas páginas das festividades sociais, então, nem se fala: há mais louras por metro quadrado do que nos países nórdicos.

Digressões estéticas à parte, voltemos à festa.

Aproveitei que, ao meu lado, havia uma dessas louras – várias vezes quase embebera os cabelos em minha terceira e última dose de uísque programada para aquela noite –, para tentar entender este incontido desejo de ser diferente do que se é. Comecei com alguns comentários banais, como o tempo, a crise política, a seleção musical da festa. Recebi respostas monossilábicas. Lembrei-me então de famoso apresentador de TV. Uma vez, talvez tenha sido sua melhor tirada, disse que elas agitam a cabeleira para ver se a inteligência pega no tranco.

Salvo melhor avaliação, pude concluir que a tintura, além de desaparecer com a cor natural dos cabelos, desaparece também com as idéias. Conclusão precipitada número um.

Meia hora depois, a segunda tentativa. Aproximei-me do grupo no qual estava uma loura que, havia mais de cinco minutos, não jogava as madeixas para os lados. Pelo menos, não corro o risco de comer salgadinho com cabelo cheio de tinta. Cheguei a tempo de ouvir o final da conversa. Era algo sobre a última edição de famosa revista semanal. Perguntei se surgira mais alguma denúncia contra o governo. Olharam-me como se fosse de outro planeta. A conversa continuou. Passei horas me produzindo, vesti a menor microssaia com o decote mais profundo que encontrei, cruzei e descruzei as pernas, mostrei a calcinha e não saí em nenhuma foto. Só publicaram aquela vagabunda da Gisleine que dá pra jogador de futebol pra aparecer em todas as revistas.

Conclusão precipitada número dois: a louridão está diretamente ligada à vontade de aparecer na imprensa.

Afastei-me cinco passos e cheguei a outro grupo. O centro das atenções era, claro, uma loura escultural que, voz de taquara rachada, contava os últimos passos dados em sua carreira de modelo e manequim. Na véspera, fotografara para importante revista de moda do interior de São Paulo. Trabalho pequeno para todo o talento que tinha, mas que lhe garantiu alguns trocados e convites para participar do circuito de rodeios. Sonhava em entrar para o próximo Big Brother, mas não sabia dizer se conseguiria ficar tanto tempo longe da mãe. Se estudava? Sim, ia começar um curso de atriz na próxima semana e tinha vontade de fazer Faculdade de Jornalismo. Para arrematar, ainda disse que negociava, com um canal a cabo, um programa infantil.

Quase me engasguei com o salgadinho que comia ao lembrar-me do quanto tinha sofrido para ser jornalista com algum prestígio. O que me levou à conclusão precipitada número três: ser loura ajuda a abrir algumas das portas mais fechadas deste país.

Já pensava em ir-me embora quando parei no quarto grupo de louras oxigenadas da noite. Todas muito assustadas comentavam a tentativa de assalto que uma delas tinha sofrido. Foi horrível. Meu carro foi cercado por homens armados – não, querida, não foi o tipo de homem armado que você está pensando, sua tarada – e três deles entraram. Mandaram que tocasse para a Barra. Ainda bem que conheço a Barra muito bem e passei perto da delegacia. Quando a polícia viu aquele carrão importado, dirigido por uma loura natural como eu, acompanhada de três homens feios, sujos e nenhum deles louro, desconfiou de que alguma coisa estava errada e mandou parar. Foi tanto tiro que pensei que ia morrer. Ainda bem que a polícia não mata louras, só pretos, pardos e morenos.

Ser loura é salvo-conduto em um país que mata pobres, feios e sujos desde que não sejam louros – a conclusão precipitada número quatro a que cheguei.

Resolvi partir.

Na calçada, enquanto esperava o táxi que chamara, vi uma bela morena chegando para a festa. Simpática, sorriu-me, dentes muito alvos, lábios carnudos pintados levemente de vermelho. Quando já me aproximava, o carro chegou e ela sumiu na portaria do prédio.
Conclusão realista número cinco: perdi muito tempo com as falsas louras. Deveria ter esperado pela morena.




Roberto Petti Pinheiro é autor de Varanda de histórias (Oficina do Livro, 2005)