O ANEL DO NIBELUNGO. PARTE I: O OURO DO RENO



O Anel do Nibelungo é um conjunto de quatro óperas do compositor alemão Richard Wagner – uma tetralogia, como se diz – que foi composto para ser encenado em quatro noites seguidas. Foi escrito entre 1848 e 1874 e estreou integralmente em 1876, embora algumas das óperas já tivessem estreado isoladamente antes. A estreia foi no teatro de Bayreuth, construído pelo próprio Wagner, que existe até hoje. Para conseguir ingresso para a encenação do ciclo você tem que ficar numa fila de espera por anos, ouvi dizer. Assim como Charles Chaplin dirigia, produzia, compunha a música, fazia o roteiro e era dono do estúdio de seus próprios filmes geniais, Wagner compunha a música, escrevia a letra (que em linguagem de ópera se chama libretto – aliás altamente poética num belíssimo e difícil alemão), produzia e dirigia a montagem e era dono do próprio teatro. Se Wagner era antissemita, e a apropriação de sua música pelos nazistas é algo que preciso aprofundar e por isso não abordarei aqui.

A ópera de Wagner rompe com a ópera tradicional organizada em árias, duetos, coros, etc., e onde a orquestra apenas acompanha o canto. Aqui você tem um todo que vai fluindo organicamente, e a orquestra tem a mesma importância das vozes. Aliás, Wagner não só expandiu a orquestra, mas deu uma nova ênfase à seção dos metais, chegando a encomendar instrumentos novos, saídos da sua cabeça, para preencher lacunas sonoras que ele percebeu.

O Anel do Nibelungo bebe das fontes das mitologias germânica e nórdica, valendo-se de elementos como o anel que concede poder, o elmo que proporciona a invisibilidade e a possibilidade de mudar de forma, o dragão, os gigantes, a morada dos deuses, a decadência dos deuses como uma metáfora da decadência humana, o amor proibido, incestuoso, os deuses da mitologia nórdica, tudo isto e ainda mais a gente vê no Anel. Ah, e tem a espada mágica cravada na pedra como na lenda do Rei Artur. A minha geração viu isto no desenho da Disney A Espada Era Lei, que mostra outro elemento da ópera de Wagner: Merlin e Madame Min num duelo em que vão mudando de forma, como no duelo entre Wotan e o Nibelungo pela posse do anel.

O Anel do Nibelungo tem algo a ver com O Senhor dos Anéis? Embora Tolkien, dentre suas muitas fontes, também utilize a mitologia nórdica e embora em O Ouro do Reino exista uma menção explícita ao “senhor do anel” (des Ringes Herrn), as duas histórias (pelo que vi no resumo da Wikipedia, pois não li o livro do Tolkien) são completamente diferentes.

Um conceito musical importante que Wagner desenvolveu no ciclo do anel é o do leitmotiv, tema ou motivo condutor, que é um tema musical associado a um personagem, um local, um sentimento, um objeto... A ideia de leitmotif teve ampla aplicação no cinema, por exemplo, no Guerra nas Estrelas, temos o tema de Darth Vader, da Força, dos androides, dos asteroides, etc. No YouTube tem vídeos explicitando os leitmotivs, é só pesquisar "Wagner leitmotif" que você acha.

Aqui vou contar a história da primeira das quatro óperas, O Ouro do Reno. Depois farei vídeos/postagens das três óperas seguintes. Portanto, fiquem de olho. A ópera começa com uma música meio etérea, meio espacial, tanto é que existe um vídeo aqui no YouTube que toca esta música com uma filmagem da terra vista do espaço.

Vamos à história. Ela começa no fundo do Rio Reno, onde vivem as filhas do Reno, inocentes e formosas criaturas que guardam um tesouro, o ouro do Reno. Limitam-se a desfrutar a beleza do ouro, sem nenhuma ambição de explorar seu poder. Porque quem forjar um anel com esse ouro ganhará poderes ilimitados. Mas existe uma contrapartida: para ganhar esses poderes, é preciso renunciar ao amor, algo aparentemente impossível a qualquer ser vivo.

Num reino subterrâneo, Nibelheim, vivem os anões Nibelungos. Um deles, Alberich, desce ao leito do Reno e tenta conquistar as Filhas do Reno, mas tudo que recebe são negaças e deboche. As sedutoras criaturas fazem gato e sapato dele. Enfurecido, decide então algo que parecia impossível: renuncia ao amor, e foge levando o ouro roubado. Esta é a primeira cena da ópera.

A segunda cena transcorre no cume de uma montanha, onde vivem os deuses. O líder dos deuses, Wotan (que corresponde a Odin na mitologia nórdica), encomendou aos gigantes Fafner e Fasolt a construção de uma grandiosa morada, o Valhalla. Para tal, prometeu dar-lhes a mão de Freia, deusa do amor e guardiã das maçãs douradas da eterna juventude. Mas sua irmã Fricka, deusa do matrimônio e esposa de Wotan, está indignada com a promessa que o marido fez aos gigantes. Só que que para desfazê-la Wotan tem que oferecer aos gigantes algo em troca, que seja extremamente valioso, senão eles não vão querer abrir mão de Freia. Os gigantes aparecem e cobram o pagamento por seu trabalho.

Freia, deusa do amor e guardiã das maçãs douradas da eterna juventude. 

Eis que entra em cena o astuto Loge, semideus do fogo, que rodou o mundo em busca de algo que apetecesse aos gigantes e traz a solução: darão aos gigantes o tesouro roubado por Alberich. Mas para isto terão de descer ao reino subterrâneo e surrupiá-lo do Nibelungo.

Na terceira cena, Loge e Wotan descem ao reino dos Nibelungos e constatam que Alberich não só forjou o anel que proporciona poderes absolutos, mas também obrigou o irmão ferreiro, Mime, a forjar um elmo mágico que lhe permite ficar invisível ou mudar de forma, transformando-se no que bem entender. Munido desses poderes Alberich escravizou o seu povo e o obriga a explorar uma mina de ouro e aumentar ainda mais o tesouro que roubou do fundo do Reno. Vai ser difícil para Wotan e Loge arrancar esses tesouros de Alberich mas eles usam um estratagema. Fingem-se de admirados e o induzem a exibir seus poderes, primeiro transformando-se numa enorme cobra, depois num pequenino sapo. Alberich cai na armadilha e, ao se transformar no sapo, é capturado por Wotan e levado para o alto da montanha. Interessante que esse estratagema de induzir um feiticeiro a se transformar num animal indefeso para dominá-lo figura na história do Gato de Botas!

Na quarta e última cena, os gigantes, que levaram Freia como refém, voltam para apanhar seu pagamento. Wotan pretende entregar apenas o ouro, ficando com o anel e o elmo para si. Mas os gigantes exigem que o tesouro seja empilhado de tal maneira que esconda Freia, e para isto o ouro sozinho não basta. No final fica uma pequena fresta que deixa à mostra o olho de Freia, e para tapá-la Wotan terá que abrir mão do anel. Ele reluta, mas a deusa Erda, a mãe primordial detentora de toda sabedoria, o convence a entregar aquela preciosidade. Porque Alberich, enfurecido, lançou sobre o anel uma maldição, e quem o possuir será cumulado de desgraças. A maldição já começa a funcionar quando os gigantes brigam pela divisão do tesouro e Fafner mata o irmão Fasolt. No final da ópera os deuses se mudam para a sua nova morada, o Valhalla, numa cena memorável. Mas as filhas do Reno lamentam o ouro roubado e não devolvido.

os gigantes brigam pelo anel


Existe uma tradução em português do libreto do Anel em ebook na Amazon.

FERNANDO LEITE MENDES: UM MESTRE DA CRÔNICA



UM MESTRE DA CRÔNICA, de CYRO DE MATTOS

De origem grega, a palavra crônica vem de chronos, que quer dizer tempo. Forma textual de narrativa curta, possui uma inclinação para os fatos da vida diária, contemporâneos. Escrita para o jornal ou revista, televisão ou rádio, o estofo literário retira-lhe a condição estrita de jornalismo, cuja linguagem é objetiva para informar o fato. Conciso e útil, o jornalismo pretende aproximar do evento os seres humanos com a linguagem precisa, onde quer que estejam, para que tomem conhecimento do que acontece no mundo, enquanto a crônica ameniza a notícia ou o evento levado ao leitor sobre a vida diária.

Na crônica de humor, o autor faz graça com o cotidiano. Na crônica ensaio, o cronista tece crítica ao que acontece no sistema organizado, detectando falhas nas relações sociais e de poder. Na crônica filosófica logra extrair do cotidiano reflexões sábias a partir de um fato. Na jornalística enfoca aspectos particulares de notícias ou fatos, que podem acontecer na área esportiva, policial e política ou em outros campos da atuação humana.

Pode ser atemporal, se o assunto, extraído da realidade exterior sob bases sentimentais, revestir-se de arcabouço literário, servindo para ser lido tempos depois desgarrado do seu contexto e ainda assim causando emoção. Sempre dando tratamento agradável ao assunto em que está descrevendo, a crônica é de tal forma argumentativa ou digressiva nos devaneios dos sentimentos. Seu lirismo poetiza a vida, aviva o evento com graça, tornando-o ameno pelo eu que o recorda no relógio do peito.

A crônica atingiu o ápice na Idade Média quando passou a registrar uma série de acontecimentos e a obedecer uma sequência linear. Nessa época era destituída de qualquer interpretação nas informações de natureza histórica. Com a significação dos fatos em fase moderna entrou em uso no século XIX, passando a designar textos que, embora remotamente se ligam à forma originária, revestem-se de tratamento literário para tornar o assunto menos insípido e fugaz. Em nossas letras, Machado de Assis, no século XIX, com engenho e arte encontrou os meios necessários para lhe dar expressividade.

          A crônica no seu arcabouço de escrita híbrida, entre o jornal e o literário, não apresenta limites muito definidos. Sujeita ao efêmero que passa ante o eterno que fica, o espaço que melhor achou para morar e se expandir foi o jornal, lugar em que demonstra leveza na informação do fato e corresponde ao que os ingleses chamam de commentary, sketch, light essay, literary column, human interest story. Usa a oralidade na fala dos personagens e o coloquial na escrita, a linguagem é simples, alguns querem que seja como poesia espontânea em forma de prosa.

     A crítica não aceita a crônica como uma expressão literária significativa, se comparada ao romance, à poesia e ao conto. Nenhuma literatura se faz grande com livros de crônicas, alega-se. No Brasil, quando se fala em cronistas de primeira grandeza soam com aplausos os nomes de Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Carlos Heitor Cony, Henrique Pongeti, Stanislaw Ponte Preta, Rachel de Queiroz, Carlos Drummond de Andrade, Nelson Rodrigues e Fernando Veríssimo.

     No elenco formado por esses cronistas de primeira qualidade poderia figurar o baiano (de Ilhéus) Fernando Leite Mendes?

        Como todo bom autor, ele escreveu um sem-número de crônicas para todos os gostos com fina sensibilidade. Dariam, se publicadas, vários volumes. Ficaram esparsas, esquecidas, perdidas no baú do tempo. O único livro desse cronista admirável, Os olhos azuis de D. Alina e algumas crônicas (1985), hoje uma raridade bibliográfica, foi publicado postumamente, graças à iniciativa do sobrinho Gumercindo Leite Mendes. O volume reúne cinquenta crônicas, algumas antológicas, como “Os gatos e “Elogio do urubu, a primeira de humor e a segunda com sabor de prosa poética; “João da Verdura” e “Adeus, Tamiroff”, crônicas, como de resto, além do cotidiano, de tão humanas, atingem o universal, em seus tons carregados de subjetividade comovente. Apresentam-se pontuadas de ternura na exposição do drama.

     Jornalista de talento excepcional, de Salvador seguiu Fernando Leite Mendes com sua vocação para o Rio onde, nos anos em que residiu na metrópole, nunca esqueceu as raízes baianas, sintonizadas em Ilhéus e Salvador. Em terras cariocas, no seu voo de homem inteligente, se impôs como editor, redator e cronista dos principais veículos da imprensa. Lúcido, esteve presente em algumas colunas importantes que assinou: “O homem da rua”, “ A poesia do asfalto”, “Sextas-feiras estórias”. Foi editor político do jornal “Última Hora”, redator da “Revista da Semana e do “Consórcio Time-Life”, exímio editorialista do “ Diário de Notícias” e do “Correio da Manhã”, redator-chefe do “Diário Carioca”. A notícia informada por ele estava em boas mãos.

Intensamente humano, autêntico lírico que gostava de expressar o lado encantador da vida, como mostra em várias passagens de “Os olhos azuis de D. Alina”; com a alma triste pelo que percebeu na figura de Jacinto de Gouveia, um tocador de piano no cabaré de Ilhéus, que fumava cachimbo inglês e usava cachecol, na cidade atlântica de clima tropical, vivendo pobremente, e que, na última vez que viu o cronista, pediu-lhe que trouxesse do Rio a partitura do poema sinfônico Finlândia, de Sibelius; irônico como pede o assunto em Um comedor de vidro”; alegre com os lances aguerridos da pelada, vista da janela, quando então se revoltou com o adulto que quis interrompê-la, depois aceitou o convite dos meninos e foi pegar no gol.

Com uma capacidade de falar de modo simples e, ao mesmo tempo, sedutor e culto, de gesto solidário e terno, o tempo não quis que esse amanuense da palavra vivesse mais anos aqui entre os humanos. Foi-se embora aos 48 anos. Tivesse mais tempo para esbanjar seu talento verbal, certamente teria posto numa festa demorada da vida mais riso, fraternidade, esperança e sonho, companhias necessárias, ontem como hoje. Haveria mais leitura desses momentos fotográficos que ele registrou no teclado da sua máquina portátil Remington, levada para ser usada onde estivesse, em Hong Kong ou Paris. Mais escuta sensível dos seres humanos haveria, graças a um senhor gordo, com alma de menino, um relógio de cordas suaves no peito, cujos ponteiros costumavam marcar como poesia os passos da existência. Mais divulgado, em seu brinquedo preferido, a crônica, ensejaria minutos de delícia às novas gerações.

CRÔNICA DE ARTUR DA TÁVOLA SOBRE FERNANDO LEITE MENDES
(fonte: https://wilsonleitemendes.blogspot.com/p/fernando-leite-mendes.html):



COPACABANA ACENDE VELAS
Crônica de Fernando Leite Mendes publicada no Correio da Manhã de 29 de setembro de 1964


As igrejas de Copacabana são poucas, porém sinceras. A titular, que é a de Nossa Senhora de Copacabana, propriamente dita, está sob ameaça de se transformar num imenso edifício-hotel, com campo de pouso de helicópteros no terraço. O heliporto em cima e uma capela substituta na base, como se, afinal, não fosse a fé a base de tudo e o heliporto milenar de todos os anjos.

Mas há uma que fica à porta do bairro, sentinela escandalizada diante da veemência dos motoristas todos que invadem o Túnel Novo, em busca da velha praia.

É a Igreja de Santa Terezinha do Menino Jesus, pureza de templo feio, de linhas duras e pouca arquitetura,[1] postada à entrada do universo da Zona Sul, urbi et orbi de muito menos pecado do que todo mundo supõe.

Pelo menos, Copacabana vai mais à missa do que se imagina. E guarda os dias santos. E em maio reza as novenas do Mês de Maria. É pura maldade pensar que as pessoas deixam a fé no subúrbio e a devoção na Zona Norte. Copa é terra de homens, mulheres e meninos que temem a Deus e sabem que religião também tem hora. Até porque ninguém é fanático.

Aquele noviço de Minas Gerais, que trouxe de Ouro Preto a saudade da glória dos tempos velhos, ficou triste no dia em que descobriu Copacabana. "Muito mais gente na praia do que na Igreja", pensou o servo do Senhor, em melancolia. Mas logo que foi estendendo os olhos de rapaz de claustro pelas águas, pelas areias e pelas gentes, tudo debaixo do sol daquele dia, acabou reconhecendo: "Mas essa também é uma festa de Nosso Senhor". A noite é que é de Nossa Senhora. E da humilde Terezinha de Jesus, pelo menos na sua igreja à porta do Túnel.

Pois ali, a fé achou a nave pequena e ganhou o passeio da rua. Então, a primeira vela se acendeu. e depois a segunda e a terceira. E hoje nem o vento apaga, soprando forte, a marca de luz daquelas velas.

A luz daquelas velas está acesa no coração de Copacabana, a ímpia. E a força da igrejinha feia, à entrada do Túnel, é tão grande, que, de bonde (antigamente), de carro, de ônibus ou a pé, todo mundo que passa ali se benze. Até os ateus. E fazem muito bem.




[1] Trata-se de um projeto art-déco, de linhas geométricas (foto abaixo).