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MONTEIRO LOBATO: O TEMPO E AS INJUSTIÇAS, de HÉLIO BRASIL



O tempo nos rouba as energias. As injustiças nos torturam.

Em particular, já me senti afastado, ignorado, jamais injustiçado. Algum deslize, mesmo involuntário, por certo me fez sofrer a marginalização. Meu caso, porém, não está em pauta. Pretendo um papo com os visitantes e não um muro de lamentações pessoais.

O que me leva ao assunto é a tentativa (ou o esforço) – por algumas vozes - em desqualificar a obra do paulista José Bento Renato Monteiro Lobato (1882-1948) com a acusação de racismo. Não tenho “bala na agulha” nem procuração para defesas acadêmicas ou jurídicas. Apresento-me apenas como apaixonado leitor da obra de Lobato, conjunto literário que destacaria em maiúsculas, sem distinguir a “obra infantil” e a destinada aos adultos. A paixão não é boa conselheira, pois nos leva a prejulgamentos ou julgamentos apressados, sendo talvez a fonte principal dos críticos do grande brasileiro.

De fato, integrante da burguesia da primeira metade do século XX, com o eco da escravidão ainda nos ouvidos e nos corações, Lobato (neto de um Barão do império) distinguia nos estamentos sociais a presença da “negra beiçuda” Tia Nastácia e de outras figuras até folclóricas como o “turco” e o “português dos armazéns”. E usava a dura terminologia da época. Hoje, fingimos que a cor da pele não existe. Praquê? Temos que fugir dos estereótipos discriminatórios. Assim, o mundo da forma – que receamos misturar-se ao conteúdo como nas artes do Homem – torna-se perigosamente ignorado. Não existirão mais os “baixinhos” e os “carecas”? As louras e as morenas? Os gordos e os magros?

Bem, o abominável universo da discriminação é perigoso, pantanoso e sempre trouxe acusações e queixas das partes que se sentiram afetadas. E, a meu ver, Lobato está muito acima disto. Não vou sequer relembrar que – na sua livre criação – preconizou em “O Presidente Negro” a ascensão de um negro nos Estados Unidos de épocas passadas. Não digo que foi uma antevisão da chegada de Obama, mas admita-se o toque visionário no trabalho...

Para quem leu os livros do paulista (e brasileiros alfabetizados, acima de 50 anos, certamente o fizeram) a mancha “racista” não existe. Para quem leu, por exemplo, dois de seus belos contos: “Negrinha” e “O jardineiro Timóteo” e para os que na infância e na adolescência leram as aventuras da turma do “Pica-pau Amarelo” vale lembrar um detalhe interessante que me aventuro a recordar e que seus críticos sepultaram.

Quase todos seus personagens, de Dona Benta a Rabicó (o leitão que desposou Emília) são desdobramentos de Lobato. Dois antagônicos e surpreendentemente complementares alter-egos do escritor e que encantam os jovens leitores e dão seus recados aos supostamente “adultos” são a espevitada Emília e o sábio e desajeitado Visconde de Sabugosa. Ela, uma boneca de pano, feita de retalhos e chumaços de paina. Ele criado a partir de um desprezado sabugo de milho, pernas feitas de gravetos. Ambos saíram das mãos da negra Nastácia, foram por ela plasmados, a “grande mãe negra brasileira”.
A Lobato, o preconceituoso, os aplausos por uma obra nacionalista e consagradora. Meu terno respeito e perene gratidão ao brasileiro José Bento Monteiro Lobato.



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MONTEIRO LOBATO FOI RACISTA?

TEXTO E FOTOS (TIRADAS EM TAUBATÉ) DE IVO KORYTOWSKI. Publicado na edição 104 da Revista Brasileira, da Academia Brasileira de Letras, que pode ser acessada aqui.


Nos últimos anos, na onda do politicamente correto, surgiu a acusação de que Monteiro Lobato teria sido racista. A gente tem que julgar um artista pelo contexto e espírito de sua época. Por exemplo, na peça O mercador de Veneza, Shakespeare cria um personagem, que é o protótipo da imagem do judeu usurário e desalmado vigente naquela época. Por isso vamos tachá-lo de antissemita? Charles Dickens, em Oliver Twist, cria um personagem judeu que explora crianças ensinando-as a roubar. Por que personagem tão negativo tinha que ser justo um judeu? Por que não católico ou hinduísta? Mas não é por isso que vamos tachar Dickens de antissemita e deixar de ler seus livros. 

Aqui no Brasil temos o exemplo do escritor paraense Inglês de Sousa, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, que, no início do seu conto “A Festa do Judeu”, desanca o “Povo Escolhido” com epítetos como “malvado judeu” e “[o] homem que havia pregado as bentas mãos e os pés de Nosso Senhor Jesus-Cristo numa cruz”, mas jamais ocorreu a alguém tachá-lo de antissemita, pois sabemos que ele apenas refletia a visão do judeu na sociedade da época, moldada por séculos de pregação pela Igreja da doutrina da culpa coletiva, com base em Mateus 27:25: “O seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos”.

Também o grande sociólogo Gilberto Freyre teve, na juventude, uma fase “racista”, e não é por isso que vamos desmerecer o conjunto de sua obra. Em artigo intitulado DA OUTRA AMÉRICA / "NA ARGENTINA" publicado na pág. 3 do Diário de Pernambuco de 31 de outubro de 1920, aos vinte anos, portanto, escreveu Freyre: “Algumas das páginas mais interessantes do livro do Sr. Lima são as dedicadas ao problema da raça na Argentina. Parece que nesse ponto a República do Prata leva decidida vantagem sobre os demais países americanos. Em futuro não remoto sua população será praticamente branca. Tão inferiores em número à caudalosa maré caucásica são os elementos de cor que o processo de clarificação da raça argentina será relativamente breve, fácil e suave.”

Acusam Lobato de, em sua caracterização da Tia Nastácia, ter sido racista. Acusam-no também de ter sido partidário da eugenia, e acusam o seu único romance, O presidente negro, de racista. Mas esquecem que em seu conto magistral intitulado “Negrinha” Lobato faz uma denúncia pungente dos maus-tratos infligidos a uma menininha de raça negra. Um racista de verdade jamais teria escrito um tal conto. 


A Tia Nastácia realmente é caracterizada como uma negra beiçuda e, a certa altura de Reinações de Narizinho, Pedrinho revela que ela tinha vergonha de ser preta. “Tia Nastácia não sei se vem. Está com vergonha, coitada, por ser preta.” Mas a gente tem que entender o contexto da sociedade da época. A escravidão havia sido abolida poucas décadas antes. Os negros libertados não receberam nenhum tipo de indenização, e tampouco receberam instrução. Quando escravos não frequentavam escolas, e depois de libertos o sistema educacional levou décadas até absorvê-los. Em meados do século XX metade da população brasileira ainda era analfabeta, e entre estes analfabetos havia uma forte proporção de negros. Na época em que Lobato escreveu suas obras, embora alguns negros já tivessem se destacado na sociedade, como os engenheiros irmãos Rebouças, ainda eram exceções. Não existia uma classe média negra. 

E essa fantasia do negro querer ser branco não é tão estranha quanto se afigura. Macunaíma, o herói sem caráter, criação genial de Mário de Andrade, também nasceu preto mas, ao se banhar numa água encantada, transformou-se em branco louro e de olhos azuizinhos, água lavara o pretume dele. E nos próprios países africanos na atualidade não são incomuns os cosméticos de branqueamento da pele. A Organização Mundial de Saúde adverte que os tratamentos para embranquecer a pele praticados na África podem causar graves doenças como a gente lê no artigo “Paying a high price for skin bleaching” publicado na Africa Renewal de abril-julho de 2019. 

Lobato, em uma de suas cartas para Godofredo Rangel (7/2/1912), publicadas em A Barca de Gleyre, refere-se com carinho à tia Anastácia, a “preta que eu trouxe de Areias”, ama de seu filho Edgard, na qual decerto se inspirou para criar a tia Nastácia: “Excelente preta, com um marido mais preto ainda, de nome Esaú”. Ainda sobre Anastácia, em entrevista a Silveira Peixoto no final dos anos 30, incluída no livro Prefácios e Entrevistas, diz Lobato: "Uma preta alta, muito boa, muito resmunguenta, hábil quituteira... Tal qual a Anastácia, ou a Tia Nastácia dos livros" E em outra de suas cartas para Godofredo Rangel (27/6/1909), escreve: “Eu gosto muito dos negros, Rangel. Parecem-me tragédias biológicas. Ser pigmentado, como é tremendo!” Em 10 de janeiro de 1917, escreve: “Consulte os negros velhos daí, porque já notei que os negros têm muito melhores olhos que os brancos. Enxergam muito mais coisas.” 

Existe o outro lado da moeda, passagens em que fala depreciativamente dos negros, mas são poucas, numa correspondência que durou quarenta anos. “A minha ideia do porão falhou, porque uma criada ocupa a repartição próxima, e como é preta põe lá um bodum pior que o barulho da sala. (carta a Godofredo Rangel de 30/7/1910) “A Capital [...] publicou umas tantas infâmias sobre o nosso grande morto [poeta Ricardo Gonçalves], escritas em língua de negra suja” (29/10/1916) “O negrinho aluno está uma pura maravilha; conheço uns tantos desses pretos de pastinha, brancos por dentro, pretos só por fora.” (6/2/1915) Parece absurdo mas na época, assim como alguém pão-duro era chamado de “judeu” (os dicionários consignam este uso, por exemplo, o Houaiss: “pessoa usurária, avarenta”), usava-se a expressão “preto de alma branca” para um negro com características consideradas mais típicas da população branca. 

É bem verdade que, em carta de 3/2/1908, quando Lobato tinha 25 anos, existe um trecho na primeira edição fortemente racista, tanto é que foi eliminado das edições subsequentes:

Que contra-Grécia é o Rio! O mulatismo dizem que traz dessoramento do caráter. Dizem que a mestiçagem liquefaz essa cristalização racial que é o caráter e dá uns produtos instáveis. Isso no moral – e no físico, que feiúra! Num desfile, à tarde, pela horrível rua Marechal Floriano, da gente que volta para os subúrbios, perpassam todas as degenerescências, todas as formas e má-formas humanas — todas, menos a normal. Os negros da África, caçados a tiro e trazidos à força para a escravidão, vingaram-se do português da maneira mais terrível – amualatando-o e liquefazendo-o, dando aquela coisa residual que vem dos subúrbios pela manhã e reflui para os subúrbios à tarde. [...]

Como consertar essa gente? Como sermos gente, no concerto dos povos? Que problemas terríveis o pobre negro da África nos criou aqui, na sua inconsciente vingança!...

Talvez a salvação venha de São Paulo e outras zonas que intensamente se injetam de sangue europeu. Os americanos salvaram-se da mestiçagem com a barreira do preconceito racial. Temos também aqui essa barreira, mas só em certas classes e certas zonas. No Rio não existe” 

Por outro lado, Lobato sente uma afinidade pelo povo. Luta em vão contra a burocracia e a ditadura Vargas para trazer o ferro e petróleo ao país, modernizando-o. No pós-Segunda Guerra Mundial, simpatiza com o socialismo soviético, como revela ao repórter Tulman Neto do Diário de São Paulo em entrevista publicada em Prefácios e entrevistas: “O quase certo [...] é a passagem da Ordem Social Capitalista para a Ordem Socialista, mais ou menos como na Rússia.”  Em carta de 15 de julho de 1915 para Godofredo Rangel, escreve: “A burguesia não tem alma. Educação e riqueza são máscaras de desindividualização. Que delícia nadar nas ondas da plebe, como num mar!... Como Gorki nadava...” Em carta de 7/12/1916, escreve: “O caboclo parece-me hoje açúcar refinado perto do açúcar preto que são os urupês citadinos de gravata. Que pulhas!” Carta de 17/4/1917: “A nossa imbecilização é das mais curiosas: vem de cima para baixo, e decresce quando chega ao povo. Quanto mais conheço os paredros [=manda-chuvas], mais admiro o equilíbrio, a sensatez, a sanidade mental destes meus bons caboclos da roça.”

Se fosse verdadeiramente racista, Lobato não elogiaria nestes termos o mulato Lima Barreto, na época vítima de preconceito: “Conheces Lima Barreto? Li dele, na Águia, dois contos, e pelos jornais soube do triunfo do Policarpo Quaresma, cuja segunda edição já lá se foi. A ajuizar pelo que li, este sujeito me é romancista de deitar sombras em todos os seus colegas coevos e coelhos, inclusive o Neto. Facílimo na língua, engenhoso, fino, dá impressão de escrever sem torturamento – ao modo das torneiras que fluem uniformemente a sua corda-d’água.” (Carta de 1o de outubro de 1916 a Godofredo Rangel) Aliás, Monteiro Lobato, à frente da Editora Revista do Brasil, publicou uma obra de Lima Barreto, Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, um total fracasso de vendas, que Lobato atribuiu ao título, pouco convidativo.

O primeiro livro que Lobato publicou, baseado em série de reportagens para O Estado de São Paulo, intitulado O Saci-Pererê: resultado de um inquérito (1918), é sobre a lenda do saci, que depois deu origem a um de seus livros da série infanto-juvenil. Um escritor racista estrearia em livro com uma lenda da cultura negra?

Por todos esses motivos eu acho um exagero a gente querer tachar o Lobato de racista por ter criado a tia Nastácia da maneira como criou. A própria caracterização dela é ambígua. No livro Histórias de Tia Nastácia ela é a figura principal e, bem no início, observa Pedrinho que “Tia Nastácia é o povo. Tudo que o povo sabe e vai contando, de um para outro, ela deve saber. Estou com o plano de espremer Tia Nastácia para tirar o leite do folclore que há nela.” E pouco depois Pedrinho diz: “As negras velhas são sempre muito sabidas.” Isso é ser racista? É bem verdade que a certa altura do livro (na história “O Macaco, a Onça e o Veado”), quando Nastácia observa que “A sina dos carneiros é a panela”, Emília reage com estas palavras: “Bem se vê que é preta e beiçuda.” Mas Emília é uma boneca insensível, desbocada, que não respeita ninguém. No início de Viagem ao Céu, quando Emília diz que “negra velha não tem direito de repousar”, Pedrinho chama sua atenção: “Malvada! Quem neste sítio tem mais direito de descansar do que ela, que é justamente quem trabalha mais? Então negra velha não é gente?. E o narrador, Lobato, usa com frequência a designação “a boa negra”. Com seus dotes culinários conquista não só os humanos, mas também São Jorge, o Minotauro e o anjinho da Viagem ao CéuQuando eu havia de pensar que até os santos e os anjos haviam de comer os meus bolos fritos? 

Como bem lembra o escritor Helio Brasil, em "O Tempo e as Injustiças" (que você pode ler aqui), a espevitada Emília como o sábio e desajeitado Visconde de Sabugosa “saíram das mãos da negra Nastácia, foram por ela plasmados, a ‘grande mãe negra brasileira’.”

Quanto ao fato de Monteiro Lobato ter sido partidário da eugeniaquero lembrar que originalmente se tratou de um movimento que se acreditava científico, assim como o marxismo, a frenologia e a psicanálise também se acreditavam científicos (hoje sabemos que não são). Seu objetivo básico era a melhoria da raça humana em geral, no sentido de eliminar a transmissão de doenças sabidamente hereditárias, embora como corolário combatesse a mestiçagem e defendesse o branqueamento da população. Em prefácio ao livro Bioperspectivas do ativista pró-eugenia Renato Kehl, assim Lobato a define“aplicação da ciência para melhorar o mau animal humano". O próprio Kehl assim a define no Boletim de Eugenia no 4 de abril de 1929: “A eugenia tem por fim cooperar para o aumento progressivo dos homens física, psíquica e moralmente sadios; para a diminuição paulatina do contingente dos fracos, doentes e degenerados, – concorrendo, desse modo, para a constituição de uma sociedade mais sã, mais moralizada, em suma, uma humanidade equilibrada, composta de indivíduos fortes e belos, elementos de paz e de trabalho.” É verdade que a ideia degenerou no delírio da raça pura do Hitler, mas não é incomum boas ideias degenerarem em ideias péssimas, por exemplo, a ideia do amor universal de Jesus Cristo degenerou na caça às bruxas e guerras de religião, e a ideia da sociedade sem classes de Marx degenerou na barbárie stalinista. Muita gente boa foi partidária da eugenia, não só Monteiro Lobato, por exemplo Miguel Couto e Roquette-Pinto. O próprio João Ribeiro, intelectual acima de qualquer suspeita, simpatiza com as Lições de Eugenia de Renato Kehl (Boletim de Eugenia, 6-7, junho-julho de 1929, p. 6). Por outro lado, Lobato não foi um ativista histérico, um fanático da eugenia, apenas um simpatizante. Não escreveu artigos para defender explicitamente a eugeniaNão colaborou com o Boletim de Eugenia, porta-voz do movimento que circulou de 1929 a 1932, sequer é mencionado lá. Em sua correspondência com Godofredo Rangel que se desenrolou por um período de quarenta anos e onde ele abria seu coração, a palavra “eugenia” não ocorre nenhuma vez. Já “progresso(s)” ocorre dez vezes.

Quanto a O presidente negro, é uma obra futurista à maneira das obras de H. G. Wells que Lobato pretendia lançar nos Estados Unidos para ganhar muito dinheiro, plano esse que saiu pela culatra. Podemos dizer que foi o grande equívoco literário de Lobato – afinal, ninguém é perfeito. Assim descreve o autor sua trama em carta a Rangel:

Uma ideia-mãe! Um romance americano, isto é, editável nos Estados Unidos. Já comecei e caminha depressa. Meio à Wells, com visão do futuro. O clou será o choque da raça negra com a branca, quando a primeira, cujo índice de proliferação é maior, alcançar a branca e batê-la nas urnas, elegendo um presidente preto! Acontecem coisas tremendas, mas vence por fim a inteligência do branco. Consegue por meio dos raios N, inventados pelo professor Brown, esterilizar os negros sem que estes deem pela coisa. (carta de 8 de julho de 1926)

Um romance racista, sim, escrito para uma sociedade então notoriamente racista, imaginando o que aconteceria se a população negra dos Estados Unidos superasse numericamente a população branca. É como se tentássemos imaginar hoje como seria Israel se a população árabe ultrapassasse a judaica. Um exercício de futurologia. Desiludido por não encontrar editor em terras de Tio Sam, Lobato desabafa para Rangel: “Meu romance não encontra editor. Falhou a Tupy Company. Acham-no ofensivo à dignidade americana, visto admitir que depois de tantos séculos de progresso moral possa esse povo, coletivamente, cometer a sangue-frio o belo crime que sugeri. Errei vindo cá tão verde. Devia ter vindo no tempo em que eles linchavam os negros. Segundo Edgard Cavalheiro, biógrafo de Lobato, o fracasso deveu-se ao fato de o romance tocar em tema tabu,  “falar de corda em casa de enforcado” (Monteiro Lobato, vida e obra, p. 341).

O presidente negro constitui hoje a principal peça de acusação na tentativa de incriminar Lobato como tendo sido racista. Até certo ponto Lobato foi racista, sim. Muita gente boa na época foi racista. Euclides da Cunha foi. A expressão “raça superior” figura quatro vezes em Os Sertões, por exemplo: “A mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial. Ante as conclusões do evolucionismo, ainda quando reaja sobre o produto o influxo de uma raça superior, despontam vivíssimos estigmas da inferior. A mestiçagem extremada é um retrocesso.” (Cap. II, O VAQUEIRO). A intelectualidade era racista como hoje é socialista, e olhem quantas barbáries se cometeram em nome do socialismo! 

Querer boicotar Lobato devido ao seu racismo é injustiça cometida contra um homem tão patriota que, na luta para modernizar o país e implantar as indústrias do petróleo e do ferro, tirando assim o Jeca Tatu da miséria, entrou em choque com a ditadura Vargas e foi parar na prisão. Francamente, Monteiro Lobato tem tantas qualidades e tão poucos defeitos, mas nós, brasileiros, sofremos de “complexo de vira-lata” e, agraciados com um escritor de literatura infanto-juvenil da sua magnitude – escritor este que, se tivesse escrito em inglês, francês ou alemão hoje seria internacionalmente conhecido, seu Sítio do Picapau Amarelo transformado em desenhos animados e musicais – em vez de o valorizarmos e de nos orgulharmos dele, procuramos seus defeitos.

Cresci lendo as obras de Monteiro Lobato e confesso que, na inocência da infância e adolescência, jamais detectei sinais de racismo, embora agora adulto eu consiga perceber que ao menos a espevitada e politicamente incorreta personagem Emília tem lá seus arroubos racistas. Lobato é um autor de uma imaginação estonteante, e acredito que, se adotado no nosso ensino, o nível cultural de nossa juventude daria um salto de qualidade. Lobato aborda a mitologia, o folclore, a literatura clássica, a geografia, a astronomia, a gramática, a aritmética, história do mundo, história das invenções, exploração do petróleo, o diabo a quatro. Creio também que, se tivesse escrito numa língua universal, como o inglês ou francês, suas obras virariam desenhos animados de sucesso internacional e o Sítio do Picapau Amarelo tornar-se-ia parque temático. Claro que tudo isto são meras especulações. Caso discorde do meu ponto de vista (ao contrário dos esquerdistas, não sou dono da verdade) deixe seu comentário.

E, last but not least, para dar uma ideia da criatividade de Lobato, transcrevo um diálogo da Emília e Dona Aranha, costureira, em Reinações de Narizinho:


– Mas quem é que fabrica esta fazenda, Dona Aranha? [...]
– Este tecido é feito pela fada Miragem – respondeu a costureira.
– E com que a senhora o corta?
– Com a tesoura da imaginação.
– E com que agulha o cose?
– Com a agulha da fantasia.
– E com que linha?
– Com a linha do sonho.

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VIAGEM A TAUBATÉ & APARECIDA

Monteiro Lobato

Sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

Você sabia que Taubaté é a Capital Nacional da Literatura Infantil? Pois é, lá nasceu e cresceu o genial escritor Monteiro Lobato, cuja imaginação embalou o final de minha infância e a pré-adolescência (e a infância de meu filho também, já que eu lia as histórias de Lobato em voz alta para ele na hora de dormir). Eu tenho uma tese de que, se Lobato tivesse escrito numa língua mais universal, tipo inglês, francês, alemão, seu Sítio do Picapau Amarelo teria no mínimo virado filme da Disney e seria mundialmente conhecido.

Fomos, Mi e eu, de ônibus. Grave acidente na altura da Serra das Araras, do qual não vimos mais sinal, mas cujos reflexos ainda perduravam, fizeram com que a viagem até Taubaté levasse o tempo que se leva normalmente para ir a São Paulo. Ficamos no Ibis, na Avenida Independência, pertinho do centro. Gosto muito dessa rede de hotéis com qualidade, conforto, boas localizações e excelente custo/benefício. Este de Taubaté custou exatos R$ 236,64, ou seja, R$ 118,32 por noite. Pechincha!

Lanche noturno na Casa da Esfiha, na mesma rua do hotel (Av. Independência, 693), com esfihas abertas de variados sabores (berinjela, peperone, mussarela...) e um quibe que você dificilmente comerá melhor em algum outro lugar deste vasto mundo.

"ares de Sampa": R. Dr. Emílio Winther ao entardecer

Sábado, 13 de janeiro de 2018

Com base no mapinha do Google que preparei previamente marcando as atrações de Taubaté (que você pode ver aqui), fizemos um imenso passeio por essa cidade que tem ares de Sampa (quais seriam esses ares? As poucas pessoas circulando a pé em contraste com os muitos carros, na maioria novos; o tipo de calçada; prédios residenciais modernos brotando qual cogumelos, etc.), mas em escala menor – Sampa é um mar de prédios a perder de vista.

Taubaté parece uma cidade civilizada, com bom nível de vida: relativamente limpa para padrões brasileiros, praças bem cuidadas, população motorizada, alguns ótimos restaurantes e confeitarias (de fato, entre os 5565 municípios brasileiros, ocupa o 40o em IDH – Índice de Desenvolvimento Humano – ver aqui). E quando você desembarca na Rodoviária não é assediado por uma máfia de taxistas piratas. Pelo contrário pegamos um ótimo taxista que nos deixou seu cartão e nos prestou ótimos serviços em nossa estadia (Murilo Ribeiro: 98123-1781).

O Sítio do Picapau Amarelo, também conhecido como Museu Histórico, Folclórico e Pedagógico Monteiro Lobato, do lado de lá da via férrea, proporcionou uma viagem sentimental ao mundo lobatiano que habitei durante longas horas de leitura em uma época (anos 1950) em que a programação infantil da TV ainda era incipiente. Situa-se numa chácara que teria sido do avô do Monteiro e abriga, na casa da chácara, uma biblioteca e um pequeno museu com objetos ligados à vida e literatura de Lobato. Atividades culturais para a criançada também têm lugar ali. No vasto quintal com frondosas mangueiras você depara com as estátuas de pedra em tamanho natural dos personagens do sítio.

Visconde de Sabugosa

Marquês de Rabicó

A "boneca" Emília

Tia Nastácia

Pedrinho

Dona Benta

O Vale do Paraíba fez parte da rota das tropas de burro que desciam a Mantiqueira, vindas das Minas Gerais, rumo ao litoral, onde embarcavam o ouro trazido, com destino à capital. Um século depois abrigou ricas fazendas de café. Assim você ainda vê em suas cidades algumas relíquias históricas, geralmente igrejas, mas dificilmente com seu aspecto barroco paulista original, já que foram posteriormente reformadas, supostamente para embelezá-las mais, mas as descaracterizando. Em Taubaté visitamos estas igrejas: Igreja de Santa Teresinha, neogótica; igreja do Rosário, interditada devido a risco de desabamento do telhado, rachaduras e infiltrações, mas de todas a que mais preserva o aspecto original do estilo colonial paulista; Igreja Matriz, atual Catedral, que começou a ser construída por volta de 1640, portanto o templo mais antigo do Vale do Paraíba, mas que sofreu uma reforma que lhe deu feições neocoloniais em 1940; Igreja do Convento de Santa Clara (que vimos ao cair da noite), fundado em 1673 por frades franciscanos, destruído por um incêndio em 1843, reformado e ocupado em 1891 pelos frades capuchinhos.

Igreja neogótica de Santa Teresinha inaugurada em 1929 pouco depois da canonização de Santa Teresa de Lisieux, conhecida como Santa Teresinha do Menino Jesus. Mais informações aqui.

Interior da igreja de Santa Teresinha

Igreja do Rosário (1700-5) ao anoitecer. Atualmente interditada. Apesar da reforma de 1861-88, é a que mais preserva o aspecto original do estilo colonial paulista. Mais informações aqui.

A Catedral antes da reforma que lhe deu feições neocoloniais

Catedral


Igreja do convento de Santa Clara. O convento foi fundado em 1673 por frades franciscanos. Destruído por um incêndio em 1843, foi reformado e ocupado em 1891 pelos frades capuchinhos.

Do outro lado da Dutra fica a estátua do Cristo, uma réplica daquela do Corcovado. Quando eu era criança e viajava com meus pais de carro para São Paulo, dava para ver a estátua perfeitamente da Dutra, e quando meu pai a mostrava, eu, na minha ingenuidade infantil, achava que se tratava da mesma que vemos aqui no Rio no alto do Corcovado. Atualmente da Dutra já não se vê mais a estátua com tanta facilidade, mas eu teria que um dia voltar a Taubaté para ver a estátua dos meus tempos de criança que ficou tão indelevelmente gravada na minha memória.

Taubaté vista do outeiro onde se ergue o Cristo

Cristo de Taubaté, inaugurado em 1956, réplica do carioca

À noite fomos à pizzaria onde se reúne aparentemente a nata da sociedade taubateana: Fornarina Pizza (Praça Monsenhor Silva Barros, 11 - Centro - aberta das 18:30 à meia-noite). Pizza tamanho único (não é barata e dá perfeitamente para três; no caso de um casal, se sobrar, eles põem numa quentinha e você leva), forno de lenha, opção de massa fina ou tradicional, tamanha variedade de sabores que você se perde no cardápio e acaba pedindo à garçonete que lhe dê uma sugestão, ingredientes frescos, orégano italiano, chope claro ou escuro. A “verdadeira pizza italiana de bordas grossas e recheios exuberantes”.

Teatro Metrópole. Rua Duque de Caxias, 312. Construído em 1919 e inaugurado em 21 de junho de 1921 como Cine-Teatro Polytheama. Depois virou o Cine Metrópole. Adquirido pelo Município em 1999, em 2000 passou a se chamar Teatro Metrópole.  Estilo eclético com elementos art nouveau. Mais informações aqui.

Casa tombada, de 1854, mandada construir por um rico fazendeiro de café, na Av. Visc. do Rio Branco, 516. Atualmente funciona lá o Bar e Balada Quarto do Santo.  Mais informações aqui.

Edifício Brasil, puro art déco, 1940, perto do Mercado Municipal

Villa S. Aleixo, elegante casarão de 1872 aguardando um possível restauro, na R. Dr. Emílio Winther, perto da Praça Santa Teresinha. Mais informações aqui. 

Casarão neocolonial na Praça Monsenhor Silva Barros ao anoitecer

Domingo, 14 de janeiro de 2018

Impressionado com a Basílica de São Pedro, tive a “certeza” de que devia ser a maior igreja do mundo, e quando fui à Wikipedia confirmar, constatei que de fato é a maior tanto em área ocupada como em volume (ver aqui e aqui), mas o que me surpreendeu é que, não muito atrás, no honroso segundo lugar, estava o nosso Santuário de Aparecida. Precisava ir lá conferir. E fui.

Igreja de São Benedito: fachada

Igreja de São Benedito: interior

Você salta na rodoviária oval e já na praça em frente depara com a Igreja de São Benedito de 1918, de fachada graciosa, interior despojado, e em ótimo estado de conservação. Aí você sobe a Rua Monte Carmelo, repleta de hoteizinhos baratos, com uns chatos na porta insistindo em oferecer quartos – “Precisa de hotel?” – e um comércio popular multicolorido tipo Saara ou 25 de Março. Você chega em uma praça onde está a Matriz Basílica de Nossa Senhora Aparecida, popularmente conhecida como Basílica Velha, de 1745, estilo barroco, com uma fila para ver a réplica da imagem da padroeira  a original foi transferida para o Santuário novo. 


Basílica Velha

Basílica Velha: interior

Basílica Velha: teto

Basílica Velha: azulejo hidráulico

Basílica Velha: detalhe de uma pintura do teto

Lá você pega a Passarela da Fé que o conduz até o imponente, impressionante, magnífico Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida. Alguns romeiros cumprem promessas percorrendo a passarela de joelhos (mas com joelheiras que ninguém é de ferro). A graça alcançada deve ter sido enorme.

imponente...


... impressionante, magnífico

O Santuário é um colossal projeto do arquiteto Benedito Calixto Neto. Tem a forma de cruz grega, com imensa cúpula no meio com uma cruz pendente, sob a qual, no púlpito elevado, celebram-se missas quase o dia inteiro. Nos dois braços da cruz estendem-se duas naves centrais ladeadas por naves laterais. O revestimento externo é de uns tijolinhos que evocam aqueles que você encontra nas construções romanas clássicas como o Coliseu. 


Cúpula e cruz pendente sobre o púlpito


Tijolinhos em Aparecida

Tijolinhos no Coliseu romano

Nave central

Fiéis na missa


Conquanto uma igreja “novinha em folha”, sua morfologia é arcaizante, pré-gótica, mescla de romano com românico. Claro que, na falta dos Berninis e Michelangelos da velha Itália, soluções originais tiveram de ser adotadas para dar ao interior uma monumentalidade e esplendor de templo renascentista, sem sê-lo. A solução genial foi – diferente da talha barroca ou do mármore renascentista – o revestimento com azulejos e pastilhas belamente pintados. De moderno só os vitrais e rosáceas abstratos, com predominância do azul dando ao interior da basílica uma luminosidade especial. 


Mescla de romano com românico: ruínas da Basílica de Maxêncio no Foro Romano

Mescla de romano com românico: Santuário de Aparecida


Chão de mármore

Azulejos pintados

Azulejos

Azulejos

Imagem da Padroeira


Luminosidade especial

Tudo na Basílica é muito limpo e organizado, padrão Vaticano. Na Casa do Pão no subsolo, projeto social que ensina a menores aprendizes o ofício de padeiro, você pode fazer um lanchinho gostoso, a preços cristãos. Na Sala dos Milagres você verá milhares de objetos e fotografias (coladas no teto) deixados por fiéis que viram seus pedidos atendidos pela Mãe de Deus & Rainha do Brasil. 


Sala dos Milagres: fotografias no teto

Sala dos Milagres: carrinhos

Sala dos Milagres: chapéus

Sala dos Milagres: Menino Jesus


Sala das velas

Do alto da torre (R$ 8) descortina-se uma vista nas quatro direções (norte, sul, leste, oeste) de toda a região de Aparecida. Dá para ver a Mantiqueira, o Rio Paraíba, a Dutra, tudo, e depois você visita o museu nos andares inferiores com belas peças de Arte Sacra e muito mais (não é permitido fotografar). Na frente da Basílica você tem uma réplica da famosa colunata em semicírculo de Bernini da Praça de São Pedro e nos fundos o campanário com treze sinos de Oscar Niemeyer.

Vista da torre

Cúpula vista da torre

Campanário

Colunata

Na volta, um contratempo: o ônibus que nos traria de volta ao Rio chegou na Rodoviária com mais de uma hora de atraso.


Contrastes arquitetônicos em Aparecida