O ANEL DO NIBELUNGO. PARTE IV: O CREPÚSCULO DOS DEUSES

 

Se a terceira ópera da tetralogia [=conjunto de quatro obras de um autor, ligadas entre si por um tema comum] do anel, Siegfried, terminou em um hollywoodiano final feliz, como vocês viram no terceiro vídeo da série, agora, nesta quarta e última ópera, O Crepúsculo dos Deuses (Götterdämmerung) o encanto se desfaz ou, como dizia minha vovó, “acabou-se o que era doce, quem comeu regalou-se”. A maldição do anel atinge seu clímax com a morte trágica do herói e o cumprimento da profecia da destruição do Valhalla e dos deuses. E o anel, depois de causar tanta desgraça, enfim retorna às suas legítimas proprietárias, as Filhas do Reno, de quem Alberich havia roubado seu ouro, como vimos na primeira ópera.

As Filhas do Reno

A ópera começa por um prelúdio onde aparecem as três Nornas, o correspondente na mitologia nórdica às parcas da mitologia greco-romana, que tecem o fio do destino dos homens e deuses. A primeira Norna recorda o tempo pré-tetralogia em que permanecia ao lado da Weltesche, o freixo do mundo, que segunda a lenda nórdica sustenta o mundo. De um galho desse freixo o deus Wotan forjou sua famosa lança, em cuja haste gravava em runas os seus tratados,[1] lança esta destruída por Siegfried na terceira ópera. Mas ao arrancar o galho fez com que a árvore definhasse.

As Três Nornas


A segunda Norna recorda os feitos de Wotan no decorrer da tetralogia. A terceira Norna prevê o fim dos deuses num grande incêndio do Walhalla. A partir disto a visão das Nornas se turva e o fio que tecem se rompe. No final do prelúdio Brünhilde e Siegfried celebram seu amor, sem desconfiarem da tragédia iminente. Antes de partir em busca de aventuras na região do Rio Reno, pois de um herói não se espera uma vida caseira e pacata, Siegfried confia o anel mágico a Brünhilde como penhor de seu amor.

Hagen

O primeiro ato começa no palácio dos Gibichungos, governados por Gunther, que tem uma irmã chamada Gutrune. Gunther e Gutrune têm um meio-irmão que o anão Nibelungo Alberich teve com a mãe deles, chamado Hagen.


Siegfried e Gutrune

Embora Hagen não passe de um intrigante, Gunther o considera o mais sábio dos irmãos e costuma ouvir seus conselhos. Hagen observa que seus meios-irmãos ainda estão solteiros e sugere que atraiam o herói Siegfried para se casar com Gutrune, enquanto Brünhilde se casará com Gunther. Para viabilizar o plano, oferecerão a Siegfreid uma poção mágica que fará com que esqueça seu amor por Brünhilde. E de fato Siegfried, em sua jornada pelo Reno, acaba aparecendo, bebe da poção, esquece Brünhilde, apaixona-se por Gutrune, celebra um pacto de sangue com Gunther e parte com este para buscarem Brünhilde. Claro que a intenção secreta do filho do Nibelungo ao tramar esse plano é apossar-se do anel mágico.

Como só Siegfried consegue transpor o fogo que cerca o rochedo de Brünhilde, ele usa o Tarnhelm, o elmo mágico que permite mudar de forma, como vimos na primeira ópera, para assumir a aparência de Gunther e “conquistar” Brünhilde para ele. Siegfried não se lembra de que já foi apaixonado pela ex-Valquíria, mas esta lembra perfeitamente e reage com indignação à aproximação do falso Gunther. Ante a resistência de Brünhilde, Siegfried a domina à força e arrebata o anel. Siegfried passa a noite ao lado de Brünhilde, mas com a espada entre eles, em sinal de respeito por seu agora irmão de sangue Gunther.

Antes disso, Brünhilde recebeu a visita da valquíria Waltraute, que narra o sofrimento de Wotan. O deus ordenou que seus nobres derrubassem o freixo do mundo que murchou e trouxesse suas toras para o Walhalla. Lá aguarda, impotente, cercado das demais divindades, o iminente crepúsculo dos deuses. Só um acontecimento conseguirá impedir a tragédia profetizada: a devolução do anel às Filhas do Reno, cessando assim sua maldição. Waltraute pede isso a Brünhilde, mas esta não quer se desfazer daquela prova de amor de Siegfried. Mal imagina a traição em andamento.

O segundo ato começa no palácio dos Gibichungos. Hagen recebe a visita do pai, o Nibelungo Alberich, que o faz jurar que se apoderará do anel de Siegfried. Quando Siegfried e Gunther retornam trazendo Brünhilde prisioneira, esta fica perplexa ao ver que Siegfried vai se casar com Gutrune. Ao avistar o anel no dedo de Siegfried, Brünhilde arma o maior barraco, pois quando Siefried o arrancou de seu dedo, estava sob a forma de Gunther. Ao afirmar que Siegfried lhe pertence como marido, cria um tremendo mal-estar. Tanto Brünhilde como Siegfried juram pela lança de Hagen estarem dizendo a verdade. 

Siefried não se deixa abalar pela confusão e prepara-se para o casamento com Gutrune. Hagen consegue arrancar de Brünhilde o segredo do ponto fraco de Siegfried. Como Siegfried nunca dá as costas ao inimigo, suas costas são seu ponto fraco, seu “calcanhar de Aquiles”. Hagen planeja uma caçada no dia seguinte onde assassinará Siegfried e dirá que ele foi abatido por um javali. Assim termina o segundo ato.

O terceiro ato começa com a caçada no bosque. Siegfried se extravia dos companheiros e depara com as Filhas do Reno, que pedem que devolva o anel e com isso rompa a maldição. Ele se nega, e elas preveem sua morte nesse mesmo dia. Pela segunda vez uma chance de romper a maldição do anel não é aproveitada. Quantas chances os seres humanos, em sua insensatez, perdem na vida. Hagen oferece a Siegfried uma poção que anula o efeito da poção anterior, e o herói conta toda a sua história, que nós acompanhamos a partir da terceira ópera e não precisamos repetir aqui. Num momento em que Siegfried dá as costas para Hagen a fim de observar um corvo, o sinistro filho do Nibelungo aproveita para assassiná-lo. Ao agonizar, Siegfried reafirma seu amor por Brünhilde. A orquestra toca então a famosa marcha fúnebre de Siegfried que também é tocada em concertos sinfônicos fora da ópera. Você pode ouvir no YouTube, tem várias versões.

Quando os caçadores retornam trazendo o corpo do herói, Brünhilde não acredita na história do javali e Hagen acaba sendo desmascarado pelo meio-irmão Gunther, matando-o. As pretensões de Hagen sobre o anel são frustradas por Brünhilde, que manda preparar uma grande pira funerária onde o corpo do herói será queimado. Durante a cerimônia da cremação, ela se lança, em seu cavalo, sobre a pira, imolando-se. O fogo purifica o anel, livrando-o da maldição. O Rio Reno então sobe do leito trazendo as Filhas do Reno que enfim recuperam o anel. Depois de quatro horas e meia de ópera, para o deleite dos melômanos e tortura dos esnobes que foram lá só para ser exibirem e fingirem que são cultos, a maldição enfim chegou ao fim, mas a profecia se cumpriu: ao fundo, o Valhalla arde em chamas. Isto na concepção original de Wagner como vocês podem ver neste cenário de 1894 porque hoje em dia os diretores, querendo inovar, criam uns finais esdrúxulos que não têm nada a ver, como você poderá conferir assistindo às montagens disponíveis no YouTube. 


[1] Treu berath'ner Verträge Runen / schnitt Wotan in des Speeres Schaft

O ANEL DO NIBELUNGO. PARTE III: SIEGFRIED

Vimos nos dois vídeos anteriores como o anão Nibelungo Alberich se apossou do ouro do Reno e com ele forjou um anel que concede poderes especiais e um elmo que permite mudar de forma ou ficar invisível. O deus Wotan, auxiliado pelo semideus Loge, mediante um estratagema arrebatam o anel e o resto do tesouro do anão. Mas precisa entregá-lo aos gigantes Fafner e Fasolt como pagamento pela construção da morada dos deuses, o Walhalla. O Nibelungo lança uma maldição sobre o anel. Fafner mata Fasolt e transforma-se em dragão [Fafner na forma de um dragão] para melhor guardar o tesouro.

Com a deusa Erda, Wotan gerou as Valquírias, que conduzem os heróis mortos em batalha para o Valhalla. E com uma mulher mortal teve dois gêmeos, Siegmund e Sieglinde. Os irmãos se apaixonam e, como castigo, Sigmund morre em duelo e Sieglinde foge, grávida do irmão, para uma floresta, acobertada pela Valquíria Brünhilde. Leva consigo os destroços de uma espada mágica que Wotan havia enterrado num tronco e Siegmund conseguira arrancar. A Valquíria, castigada por Wotan, perde a imortalidade e permanecerá adormecida até que um herói a desperte.

Valquíria Brünhilde

Na terceira ópera do ciclo, Siegfried, ficamos sabendo que, na floresta, a fugitiva Sieglinde deparou com Mime, o anão Nibelungo irmão do Alberich que havia surrupiado o ouro do Reno. Mime recolheu aquela mulher desamparada em sua caverna, onde ela deu à luz um bebê, Siegfried, e logo depois faleceu. Ela entregou ao anão os destroços da espada de Siegmund, pai de Siegfried. Mime cria aquela criança com todo o carinho, mas com uma segunda intenção: usá-la para obter um dia o tesouro e anel mágico guardados pelo dragão. 

Mime e Siegfried

Siegfried não morre de amores por Mime, e só não abandona a caverna de Mime devido à curiosidade de descobrir quem foram seus verdadeiros pais. Porque viu sua imagem refletida na água e percebeu que é diferente demais do anão Mime para que este tivesse sido seu pai. Quando Siegfried enfim consegue extrair de Mime a informação sobre seus falecidos pais, quer que Mime restaure a espada destroçada para então, protegido por ela, sair mundo afora e não mais voltar. Esta foi a primeira cena do primeiro ato. 

Siegfried vê sua imagem refletida na água

Na segunda cena, o deus Wotan, disfarçado de andarilho, se oferece para responder às perguntas de Mime, apostando sua cabeça. Mime faz então três perguntas:

 1) Qual raça reúne-se nas profundezas da terra (welches Geschlecht tagt in der Erde Tiefe)? Resposta: Os Nibelungos, habitantes de Nibelheim.

2) Qual raça mora sobre as costas da terra (welches Geschlecht wohnt auf der Erde Rücken)? Resposta: Os gigantes, que moram em Riesenheim.

3) Qual é a raça que habita as alturas nubladas (welches Geschlecht wohnt auf wolkigen Höh’n)? Resposta: Os deuses, que habitam o Valhalla.

Agora a situação se inverte: Wotan faz três perguntas a Mime, que perderá sua cabeça se não conseguir responder.

A primeira pergunta é: Contra qual raça Wotan agiu mal mas, mesmo assim, é a mais querida por ele (Welches ist das Geschlecht, dem Wotan schlimm sich zeigte, und das doch das Liebste ihm lebt)? Resposta: Os Volsungos, raça de Siegmund e Siegfried.

Segunda pergunta: Qual espada Siegfried deve usar para matar o dragão Fafner e assim se apoderar do anel (Welches Schwert muß Siegfried nun schwingen, taug’ es zu Fafners Tod)? Resposta: A espada que Wotan encravou num tronco e que agora, em fragmentos, está sob a guarda de Mime.

Terceira pergunta: Quem Mime acha que forjará a espada a partir daqueles fragmentos (wer wird aus den starken Stücken Nothung das Schwert, wohl schweißen)? Mime confessa não saber a resposta, pois se julga incapaz de forjá-la. Wotan o repreende por ter feito perguntas inúteis quando poderia ter aproveitado para esclarecer esse ponto, e faz uma revelação: “Somente aquele que nunca conheceu o medo forjará a espada novamente” (Nur wer das Fürchten nie erfuhr, schmiedet Nothung neu.).” E embora ganhasse a aposta, Wotan poupa a cabeça de Mime, deixando-a para esta mesma pessoa que nunca aprendeu a ter medo (verfallen lass’ ich es dem, der das Fürchten nicht gelernt!). Que é o próprio Siegfried. Esta foi a segunda cena do primeiro ato.

No início da terceira cena, Siegfried vem cobrar de Mime a restauração da espada que está em fragmentos. Mime lembra as palavras do Andarilho de que perderá a cabeça para quem nunca conheceu o medo. A única saída é incutir o medo em Siegfried e para isto o levará até o dragão Fafner, em Neidhöhle. Mas Siegfried quer levar consigo a espada deixada pelo pai e, mesmo sem experiência na arte de trabalhar com metais, por não conhecer o medo consegue recuperá-la. Mime prevê que seu pupilo conseguirá arrebatar o anel e tesouro do dragão e conspira para se apoderar deles. Prepara uma poção venenosa que ministrará a Siegfried quando este estiver cansado, após a luta com o monstro. 

A espada recuperada

O segundo ato começa nas profundezas da floresta, na entrada da caverna do dragão. O anão Nibelungo Alberich monta guarda, na esperança de recuperar o anel e assim atacar o Valhalla com ajuda das hostes de Hella, deusa da morte. Na segunda cena Mime e Siegfried se aproximam da caverna do dragão. Mime tenta pôr medo em Siegfried descrevendo a fúria do dragão, mas este não se intimida, e pede que seu tutor o deixe a sós. Siegfried ouve um passarinho e gostaria de entender o que ele diz. 

O dragão

Ao tentar imitar a ave com sua trompa, acorda o dragão, enfrenta-o e, ao cravar a espada no seu coração, mata-o. Ao agonizar, o dragão o alerta para ter cuidado com Mime, que pretende matá-lo. Ao levar à boca os dedos sujos do sangue do dragão, Siegfried passa a entender a linguagem dos pássaros. O pássaro avisa sobre o tesouro guardado pelo dragão, incluindo o anel, que fará dele Walter der Welt, o senhor do mundo.

Siegfried mata o dragão

Na terceira cena, Alberich e Mime se encontram. Ambos desejam se apoderar do anel e do elmo, que estão na posse de Siegfried. O pássaro informa a Siegfried que, por ter provado o sangue do dragão, agora conseguirá ouvir o que se passa no íntimo de Mime e, assim, não será enganado por ele. Graças a esse poder Siegfried fica sabendo das intenções secretas de Mime (numa das cenas mais cômicas da ópera, em que Mime tenta mentir mas sempre se trai) e acaba matando-o. Siegfried lamenta a solidão e pede ao pássaro que lhe arranje alguma companhia. O pássaro dá uma de casamenteiro e diz que conhece a mulher ideal para ele: é a Valquíria Brünhilde que na ópera anterior, castigada por Wotan, foi adormecida no alto de um rochedo cercada de chamas. Só quem nunca conheceu o medo conseguirá transpor as chamas e despertar Brünhilde. O pássaro mostrará o caminho até ela. Siegfried parte eufórico em busca da Valquíria adormecida.

Siegfried e a valquíria adormecida

No início do terceiro ato, o Andarilho Wotan acorda a deusa da sabedoria, Erda, de um sono profundo para pedir conselhos. Diz Erda em bonita voz de contralto: Mein Schlaf ist Träumen, mein Träumen Sinnen, mein Sinnen Walten des Wissen, Meu sono é sonhar, meu sonho é refletir, minha reflexão é o domínio do saber. Wotan teme o ocaso dos deuses e quer que Erda o tranquilize. Infelizmente ela não pode fazer nada. Wotan acaba se conformando com o futuro fim dos deuses, pois deixa um herdeiro do qual se orgulha: o Volsungo Siegfried. Herdeiro este que, por não conhecer o medo, não é afetado pela maldição de Alberich.

Na segunda cena do último ato, Wotan depara com Siegfried, que seguiu o pássaro até o local onde dorme a Valquíria. Siegfried o trata com desdém, chegando a ameaçá-lo. Wotan tenta impedir Siegfried de ir ao encontro da Valquíria. Quem a despertar e conquistar privará Wotan do seu poder (wer sie erweckte, wer sie gewänne, / machtlos macht er mich ewig!). Mas Siegfried desafia o deus e o ataca espada em riste, quebrando-lhe a lança, a mesma que quebrara a espada nas mãos de Siegmund. Ele sobe o rochedo, enfrenta o fogo e depara com a Valquíria adormecida De início, pensa que é um soldado, mas ao retirar o elmo vê que é uma mulher, a primeira mulher que vê na vida. No início ela reluta em desposar o herói, pois como Valquíria não poderia amar um mortal, mas depois se recorda de que foi castigada e perdeu a imortalidade e se entrega ao amor humano, a ópera se encerrando com um final feliz


O ANEL DO NIBELUNGO. PARTE II: A VALQUÍRIA

 


A Valquíria é a segunda das quatro óperas do ciclo O Anel do Nibelungo. Baseia-se na Saga dos Volsungos islandesa e na Edda Poética nórdica. O papel central é desempenhado por uma Valquíria, Brünnhilde. Quem são as Valquírias?


São seres da mitologia nórdica que conduzem os heróis mortos em batalha para protegerem a morada dos deuses, o Valhalla. Por que é necessário proteger a morada dos deuses? Por causa do perigo do anel. No primeiro vídeo (que corresponde à primeira ópera), vimos como o Nibelungo surrupiou o ouro do Reno e com ele forjou o anel mágico que concede maaßlose Macht, poder ilimitado, sob a condição de renunciar ao amor. Vimos que esse anel foi parar nas mãos do gigante Fafner, que se transformou em dragão para melhor guardar seu tesouro. Mas o Nibelungo não se conforma com a perda e sonha em recuperar o anel para então atacar o Valhalla e destronar os deuses. Wotan aguarda o surgimento de um herói que se apoderará do anel do gigante, o que acontecerá na terceira ópera, Siegfried. O deus enterrou uma espada na pedra, como na história do Rei Artur, que ninguém mais a não ser esse herói conseguirá arrancar. Uma ameaça paira no ar. A deusa Erda profetizou que "wenn der Liebe finstrer Feind zürnend zeugt einen Sohn, der Sel’gen Ende säumt dann nicht", que em português simples significa: “Quando o inimigo do amor gerar um filho, o fim dos deuses não tardará.” Ora, o Nibelungo Alberich engravidou uma mulher. Os deuses correm sério perigo. 

Assim como Júpiter da mitologia greco-romana, o deus Wotan não hesita em se meter em aventuras amorosas, traindo a esposa, a deusa Fricka. Assim é que com a deusa Erda, a mãe primordial, gerou as Valquírias, e com uma mulher da raça dos Volsungos teve os irmãos gêmeos Siegmund e Sieglinde. No início da ópera, Siegmund, perseguido por inimigos, por acaso vem parar, exausto, exatamente na casa de Sieglinde. Um dia, quando criança, ao voltar de uma caçada com o pai, encontraram a casa queimada pelos inimigos, a mãe assassinada, e a menina desaparecera. Desde então nunca mais a viu e sequer sabia se estava viva. Sieglinde mora com o marido Hunding (Hund em alemão significa cão) com quem teve de se casar contra a vontade e que a faz sofrer. Tanto é que, no inicio da ópera, quando Siegmund faz menção de ir embora para não contaminá-la com seu azar, ela responde: “Nicht bringst du Unheil dahin, wo Unheil im Hause wohnt!”, ou seja, “Você não vai trazer azar a uma casa onde o azar já mora.” Sieglinde cuida das feridas de Siegmund, mas quando Hunding retorna e Siegmund conta a ele sua fuga, Hunding reconhece ter sido um dos perseguidores de Siegmund e diz que naquela noite este poderá se abrigar em sua casa, mas na manhã seguinte os dois se enfrentarão em duelo. À noite Sieglinde ministra um narcótico ao marido e na longa conversa que tem com Siegmund, os dois irmãos acabam se apaixonando. E, como já notara Hunding, eles percebem a sua semelhança e descobrem que são os irmãos gêmeos separados na infância. Na noite do casamento forçado de Sieglinde com Hunding, Wotan apareceu, disfarçado de um velho andarilho, e lá deixou a espada mágica encravada num tronco, que desde então ninguém havia conseguido arrancar, e que Sieglinde reconhece que foi destinada a Siegmund. Ela chega a perceber a semelhança entre os olhos daquele velho e os do irmão que veio parar em sua casa, e este de fato arranca espada.


Após esta cena, os irmãos assumem seu amor incestuoso, no final do primeiro ato. Até aqui nosso herói se chamou Wolfling (lobinho) quando criança e Wehwalt, “dominado pela dor”, depois de adulto. Agora que está protegido pela força da espada, recebe de Sieglinde o nome Siegmund, “destinado à vitória”. Sieg em alemão é vitória. Sieglide é formado por Sieg + linde, gentil. No início do segundo ato, Wotan está instruindo a Valquíria Brünnhilde a proteger Siegmund em seu duelo com Hunding. Eis que se aproxima Fricka, deusa do matrimônio, furiosa com o fato do marido aceitar tranquilamente o amor incestuoso dos filhos bastardos. Ela enche a paciência de Wotan até convencê-lo a ficar do lado dela. Depois desta cena, Wotan se abre para a Valquíria, revela que é o mais triste dos seres e muda suas instruções: a vontade de Fricka deve prevalecer e Siegmund deve morrer no duelo. 


A própria Sieglinde, em fuga com Siegfried, tem maus pressentimentos. Siegmund e Sieglinde se beijam numa cena cinematográfica, com uma música cinematográfica, realçando mais um fato sobre Wagner: ele é um precursor da música de cinema do século XX. Mas quando a Valquíria vai avisar Siegmund de que este morrerá e a acompanhará até o Valhalla, onde desfrutará a companhia de uma Wünschmädchen (moça do desejo), umas periguetes filhas de Wotan que devem ser aparentadas com as huris do paraíso muçulmano, ele diz: “So grüße mir Walhall, grüße mir Wotan, [...] grüß' auch die holden Wunschesmädchen: zu ihnen folg' ich dir nicht!” (Manda lembranças para o Valhalla, para Wotan e para as moças do desejo, pois eu não vou segui-la até eles). A Valquíria acaba resolvendo desafiar a ordem do deus e proteger o pobre apaixonado. Só que na hora do duelo Wotan aparece, destroça a espada de Siegmund, permitindo que Hunding o trespasse com a lança, matando-o. Brünnhilde foge com Sieglinde levando os fragmentos da espada de Siegmund. 

E assim termina o segundo ato. O terceiro ato na ópera começa no cume de uma montanha rochosa, onde vivem as Valquírias. Aqui você vai ouvir uma das músicas mais famosas do Wagner, que é o tema, o leitmotiv das valquírias. No primeiro vídeo expliquei o que é um leitmotiv. Esse tema se popularizou com o filme Apocalipse Now. Geralmente as Valquírias carregam heróis para conduzirem ao Valhalla. Por isso, quando Brünnhilde aparece com uma mulher, Sieglinde, causa espanto. Sieglinde quer morrer, mas quando Brünnhilde informa que está grávida de Siegmund, muda de ideia e deseja se salvar. Wotan se aproxima furioso. Sieglinde foge para o leste em direção à floresta onde o dragão guarda o anel. Brünnhilde fica e enfrenta a fúria do pai. Este lhe impõe um castigo: ela será adormecida e terá que se casar com o primeiro homem que a encontrar e acordar. Brünnhilde dialoga com o pai e explica que, se por um lado desobedeceu à sua ordem, por outro lado cumpriu seu desejo mais profundo, já que Wotan está dividido e, ao se dobrar à vontade de Fricka, voltou-se contra si mesmo. Brünnhilde pede que o castigo seja ao menos atenuado. Assim, ela perde os poderes de Valquíria e será adormecida, mas protegida por um fogo para que apenas um herói valoroso consiga se aproximar e acordá-la. Esse tema da bela adormecida já vimos num conto de fadas de Grimm. 


Antes de terminar, uma digressão. Qual o papel de uma ópera no mundo contemporâneo? Existe ainda público para obras de tão longa duração? As quatro óperas do Anel ultrapassam as quinze horas, numa média de quase quatro horas por ópera. E por que um cantor de ópera não pode cantar com uma voz normal, sem impostação, como num musical? Lembremos que na época em que as óperas foram compostas as pessoas não dispunham de aparelhos elétricos ou eletrônicos em que pudessem passar o dia ouvindo músico. No máximo, quem tinha dinheiro, tinha um piano em casa. Então quando a pessoa ia à sala de concertos estava ávida por música, queria tirar o atraso, ouvir horas a fio. E não época anterior à invenção do microfone, sem a impostação da voz, como projetá-la para se tornar audível a todo o público de uma imensa sala de concertos? No século XX, a ópera evoluiu no musical, assim como o teatro evoluiu no cinema e a pintura evoluiu na fotografia, mas as formas novas não extinguem as formas antigas, e sim coexistem com elas.