SONHO DE UMA NOITE DE CARNAVAL

Poema de OLIVEIRA E SILVA ilustrado por ALBERTO LIMA publicado na REVISTA DA SEMANA de 5 de fevereiro de 1921



SONHO DE UMA NOITE DE CARNAVAL

Lembro: o ruído que ferve e desvaira... o deleite...
A turba imensa... tu passaste e nós sorrimos,
Deslumbrado, confuso e comovido, amei-te
Num minuto supremo, e nunca mais nos vimos!

Nunca mais! Desse amor no delírio das ruas
Ficou-me um travo leve, uma doçura atroz:
Não tive as minhas mãos palpitando nas tuas!
Não escutei, sequer, o som de tua voz!

Todo o ano, a recordar-te o brilho, desfaleço,
Em meio à multidão álacre, no tumulto,
De repente, estou só e, pálido, estremeço,
Pressentindo que vai aparecer teu vulto.

Sonho de Carnaval, maravilhoso e triste!
Ah! Mundos de prazer, que em vão imaginamos!
Nunca mais eu te vi! Nunca mais tu me viste!
Porque tardas? A vida é breve... nós passamos... 



Palhaço, original pintado com a boca e o pé por Gonçalo Borges

A VIDA DEVERIA SER AO CONTRÁRIO

A ideia de que a vida deveria ser vivida ao contrário (ou seja, de que a gente deveria nascer velho e ir rejuvenescendo) foi expressa pela primeira vez por Mark Twain na frase "A vida seria infinitamente mais feliz se pudéssemos nascer aos 80 anos e gradualmente chegar aos 18." Na década de 1920 a ideia inspira dois contos de escritores de países diferentes que a devem ter tido de forma independente, sem que um copiasse o outro. 

O primeiro é O Curioso Caso de Benjamin Button de F. Scott Fitzgerald, publicado na revista Colliers em 27 de maio de 1922, e que inspirou um filme de mesmo nome de 2008. O segundo é A Lição do escritor húngaro Frigyes Karinthy, publicado em Budapeste em 1923 no livro Decameron do Riso, antologia de cem crônicas, as melhores dentre as centenas que escreveu na imprensa húngara. O texto foi incluído na Antologia do Conto Húngaro de Paulo Rónai e é reproduzido a seguir.

Existe ainda a reflexão de Sean Morey (que costuma ser erroneamente atribuída a Chaplin ou mesmo a Woody Allen): "A coisa mais injusta da vida é a maneira como ela termina. Viver é muito difícil. Toma muito do seu tempo. E o que você tem no final? Uma morte. O que é isso, uma recompensa? Acho que o ciclo da vida está todo de trás pra frente. Você devia morrer primeiro, se livrar logo disso. Então você vive num asilo de velhinhos. É expulso de lá quando fica jovem demais, ganha um relógio de ouro, vai trabalhar. Você trabalha quarenta anos até ficar jovem o suficiente pra aproveitar a aposentadoria. Você se droga, bebe álcool, se diverte e se prepara pra faculdade. Você vai pra escola primária, vira criança, você brinca, não tem nenhuma responsabilidade, se torna um bebezinho de colo, volta pro útero da mãe, passa seus últimos nove meses de vida flutuando... E termina como um brilho no olho de alguém!!! " 

A LIÇÃO de Frigyes Karinthy

I
Na idade de setenta e cinco anos descobri que, havia cinquenta e quatro, minha esposa me enganava com um rapaz. Corri à Ponte Margarida e dei um lindo mergulho de ponta-cabeça no Danúbio, o que me valeu o título de campeão do Clube Ginástico de Budapeste. Ao mesmo tempo, bati o recorde de permanência subaquática, tendo ficado dois dias e meio debaixo da água, ao passo que o vencedor da última competição, Kankovsky, só aguentara essa posição por dois minutos e vinte segundos.

II
S. Pedro, sentado diante do projetor, estava enrolando no carretel o filme da minha vida, quando entrei no salão. Tinha chegado precisamente à cena em que me atiro da ponte. A assistência, composta de santos e anjos, ria a mais não poder ao ver-me espernear. Furioso, dei um empurrão no braço do velho. A fita partiu-se no meio.
— Seu idiota! — bradou o santo. — Como poderei retirar agora a fita do carretel? Terei que desenrolá-la todinha às avessas! Será uma beleza! Volte para o lugar de onde veio, seu burro!
E entrou a desenrolar o filme da minha vida de rabo a cabo.

III
Um minuto depois lá saía eu do Danúbio, de pernas para o ar, e de um pulo estava na ponte. O rosto voltado para Buda, voltei à Pest [Buda fica na margem direita do Danúbio, Pest na margem esquerda], subi às arrecuas [=andando para trás] ao terceiro andar, fechei a porta, que se abriu, atravessei o hall ao arrepio, e tornei a sentar-me no divã.

IV
Ausentei-me um instante do quarto, depois voltei, em marcha a ré, e pus-me a digerir o almoço, que ficou pronto logo depois. O criado, andando de costas, trouxe os pratos sujos, nos quais fui recolocando, com o garfo e a faca, o macarrão gostoso. Juntei os pedacinhos da carne, bem saborosa, retirei da boca a sopa às colheradas, levantei-me e olhei para o relógio. Era meio-dia e meia. Tinha de estar na repartição ao meio-dia em ponto, por isso saí correndo ao revés. Nesse ínterim, a ponta do cigarro que eu pusera na boca crescia cada vez mais, até que o acendi e o botei no bolso.

V
Dez anos depois, meus cabelos começaram a tornar-se pretos e os dentes a voltar-me à boca. Cancelada a minha aposentadoria, tive de trabalhar outra vez. Eis-me de novo na repartição a escrevinhar processos um antes do outro, até chegar ao primeiro. Os chefes demonstravam boa vontade comigo, mas estavam-me conhecendo cada vez menos, e, ao cabo de vinte e cinco anos de trabalho assíduo, fui admitido com salário de estreante. Lá me achava eu na miséria, de costas para a frente, sem emprego de espécie alguma, com minha esposa cada vez mais bonita e cada vez mais apaixonada por mim.

VI
Nessa altura já estava com vinte e cinco anos. Raptei minha esposa de volta à casa de seu progenitor, e apaixonei-me loucamente por ela. Numa noite de paixão febril ela se me entregou pela terceira, pela segunda e pela primeira vez. Nisto, fiquei cada vez mais tímido: procurei segurar-lhe a mão, que ela retirou, até que terminamos conhecendo-nos, depois do quê lhe fui apresentado, para nunca mais a ver.

VII
Consegui diplomar-me, o que marcou o início da alegre vida de estudante. Era jovem e feliz, e, como gostava de estudar, sabia cada vez menos. Graças aos excessos de toda espécie, peculiares à mocidade, dentro em breve me encontrava na plenitude das minhas forças. Acabei o curso secundário com dezoito anos. Meu bigode foi desaparecendo, meu tamanho diminuía, permitindo-me retomar os ternos dos anos anteriores. Aos quatorze anos, safei-me do cólera, que por um triz não me matou; felizmente veio logo a infecção e eu fiquei fora de perigo. Daí para trás, minha vida correu tranquila: comecei a balbuciar, depois esqueci-me totalmente de falar, e, quando já era bastante pequenino, voltei de gatinhas ao berço para abastecer de leite a minha ama. Ignoro o que sucedeu depois: lembro-me apenas de um local escuro para onde alguém me empurrou com violência.

VIII
Quando pela segunda vez cheguei a presença de S. Pedro, ele estava acabando de enrolar a fita. Ao ver-me, levantou as mãos sagradas com bondoso sorriso.
— Ó tu — disse-me para ministrar um sábio ensinamento aos santos e anjos reunidos em tomo dele — ó tu a quem foi dado viver duas vezes, conhecer às avessas todas as coisas e penetrar até o âmago da existência, dize-nos agora a lição que aprendeste no caminho que aos mortais só de uma feita cabe palmilhar, mas que tu, pela graça infinita do Senhor, pudeste percorrer duas vezes.
Pondo o indicador na ponta do nariz, depois de breve meditação respondi assim a S. Pedro:
— Santo Padre, a lição que me foi possível aprender na minha jornada resume-se numa única observação.
— Qual é, meu filho?
— Que as poesias do Sr. Kassák Lajos [poeta moderno, chefe da escola futurista], lidas de trás para a frente, têm tão pouco sentido como quando lidas da frente para trás.