POEMAS NATALINOS


CANÇÃO DO DEUS MENINO
Cyro de Mattos


Alegre como passarinho
Lá vou eu pelo caminho
Cantando porque nasceu
Em Belém o Deus Menino.

Esse menino que nasceu
Na manjedoura em Belém
Como estrela nos fascina
Na cidade ou na campina.

Quer os homens como irmãos
Convivendo em comunhão
Dentro de cada coração
Pelos ares ou no chão.

Quer os bichos sem matança,
A vida sem agressão,
A vida sem solidão,
A vida como uma dança.

Alegre como passarinho
Lá vou eu pelo caminho
Cantando porque nasceu
Em Belém o Deus Menino.


Do livro Ecológico

NATAL
Angela Nassim (lynn)


...e depois do Natal
tudo volta ao cotidiano
da materialidade
esquece-se o sentido
da festa vivida

e o Messias?
ficou pregado na cruz


POEMA I da "Primeira Dor" do
Setenário das Dores de Nossa Senhora

Alphonsus de Guimaraens



Nossa-Senhora vai... Céu de esperança
Coroando-lhe o perfil judaico e fino...
E um raio de ouro que lhe beija a trança
É como um grande resplandor divino.

O seu olhar, tão cheio de ondas, lança
Clarões longínquos de astro vespertino.
Sob a túnica azul uma alva Criança
Chora: é o vagido de Jesus Menino.

Entram no Templo. Um hino do Céu tomba.
Sobre eles paira o Espírito celeste
Na forma etérea de invisível Pomba.

Diz-lhe o velho Simeão: "Por uma Espada
Já que Ele te foi dado e que O quiseste,
A Alma terás, Senhora, traspassada..."


NUMAS PALHINHAS DEITADO
João Saraiva


Numas palhinhas deitado,
abrindo os olhos à luz,
loiro, gordinho, rosado,
nasce o Menino Jesus.

Uma vaquinha bafeja
seu lindo corpo divino,
de mansinho, que a não veja
e não se assuste o Menino.

Meia-noite. Canta o galo.
Por essa Judéia além
dormem os que hão de matá-lo
quando for homem também.

E, pensativa, a Mãe Pura
ouve, fitando Jesus,
os rouxinóis na espessura
de um cedro que há de ser cruz!...


Extraído de “O Natal na Poesia”, artigo de Dom Marcos Barbosa publicado no Jornal do Brasil de 24/12/81

O ANÚNCIO FEITO A MARIA
Maria Thereza Noronha


Abre-se a asa do Arcanjo
e nela se vê, pousada,
a cabeça coroada
de um rei além deste mundo.

Abre-se a asa do Arcanjo
sobre a sombra de Maria.
E a ela, grave, anuncia
o filho oculto nas nuvens.

Das asas de ouro o Arcanjo
doura a fronte de Maria
com um diadema de luzes
que ofusca a pele do dia.

E ao assombro de Maria,
tal um espelho, do lado
esquerdo na asa, reflete
um coração trespassado.

Não à dor que se anuncia
o amor de mãe sangre e trema:
vê apenas um menino
cheirando a leite e alfazema.

E estende os braços de alfanje
rumo à asa esquerda do Arcanjo.
Enquanto Este já ia longe
deixando um rastro de plumas.

Bizarro e áureo tapete
– facho de luz entre brumas –
onde, serena, a mãe vela
seu ninho de cruz e estrelas.


Do livro A face dissonante

NUM POSTAL COM DOIS CACHORRINHOS E ENFEITES DE NATAL — PERDÃO, COM UM GATO E UM CACHORRINHO
Carlos Drummond de Andrade

Este gato não é de araque,
é de copo de conhaque,
e o malandro cacholinho
fica olhando de fininho
para ver se a dona chega
e acaba com a bagunça.
Enquanto a dona não vem,
os dois fazem seu Natal
entre bolas, contas, flores,
pois neste mundo, afinal,
os dois bichinhos de truz,
como as damas e os senhores,
são filhinhos de Jesus.


Do livro Poesia errante

SONETO DE NATAL
Alphonsus de Guimaraens Filho


É Natal. Foram tantos os Natais...
Pois que é Natal mais uma vez, apreende
esse cântico longo que se estende
por terras, mares, não termina mais.

Natal mais uma vez. Uma vez mais,
o menino que só a estrela entende,
os pais que a treva inquieta, ela, a quem rende
a certeza das coisas abissais.

Pois que é Natal, pensemos no menino,
apenas no menino. E o contemplemos
no berço onde ora está, tão pequenino.

Já quanto aos pais, a meditar deixemos.
Sabem os pais qual a hora do destino.

Fingindo não saber, sonhando olhemos.

Do livro Todos os sonetos, da Editora Galo Branco.



VESTE-SE A TERRA DE AZUL
Maria Isabel (Ferreira), terceira carmelita

Veste-se a terra de azul
enxuga o pranto da espera
foi encontrado um Menino
nos braços da Primavera

Maria rosa orvalhada
nuvenzinha aparecida
deixaste chover o Justo
sobre o deserto da vida.

Adeus chão do nunca mais
adeus abismos do medo
chegou quem nos levará
como um anel em seu dedo.


Extraído de “O Natal na Poesia”, artigo de Dom Marcos Barbosa no Jornal do Brasil de 24/12/81. Poema possivelmente nunca publicado em livro, dedicado a Dom Marcos.

POEMA II da “Segunda Dor” do Setenário das Dores de Nossa Senhora
Alphonsus de Guimaraens


Fora uma estrela de fulgor imenso
Que os guiara, em noite incerta, ao Lugar-Santo...
Mirra trouxera Beltesar: incenso
Gaspar: Melchior o ouro que fulge tanto.

Eram vales e montes, e era o denso
Bosque, e o campo espraiado em verde manto:
E ao luar, todo de jaspe, e ao sol intenso,
Seguiam na asa de celeste encanto.

Quando se viram sob o mesmo teto
Que abrigara a Família imaculada,
Brotou-lhes na Alma a Flor do etéreo Afeto.

E os Reis Magos, o olhar humilde e terno,
Os Diademas tiraram, poeira e nada,
Diante d’Aquele que era o Verbo eterno...


SONETO DE NATAL
José Antonio Jacob


Essa mulher, que sonha, sofre e chora,
E o escasso seio estende, e o acaricia,
Ao filho magro, que seu leite implora,
Podia se chamar Virgem Maria.

O que lhe importa se essa noite é fria
E além da porta é Natal lá fora,
Se Jesus Cristo nasce todo dia
E está dormindo no seu colo agora?

Ela é Nossa Senhora da Pureza,
Cuida da nossa vida de pobreza
E ora por nós que somos filhos seus...

Essa Mulher, que sonha, sofre e chora,
Só pode ser então Nossa Senhora,

A Mãe de todos nós... A Mãe de Deus!




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MANIFESTO DADAÍSTA de TRISTAN TZARA de 1918



tradução do francês de Ivo Korytowski
A magia de uma palavra —
DADÁ — que levou os
jornalistas às portas
de um mundo inesperado, para nós
não tem a menor importância.

Para lançar um manifesto é preciso querer: A.B.C., fulminar contra 1, 2, 3, se enervar e aguçar suas asas para conquistar e difundir pequenas e grandes a, b, c, assinar, gritar, jurar, organizar a prosa sob uma forma de evidência absoluta, irrefutável, provar seu non-plus-ultra e sustentar que a novidade se assemelha à vida como a última aparição de uma prostituta prova a essência de Deus. Sua existência já foi provada pelo acordeão, a paisagem e palavras doces.■ Impor seu A.B.C. é uma coisa natural — portanto lamentável. Todo mundo o faz sob uma forma de cristalblefemadona, sistema monetário, produto farmacêutico, perna nua convidando à primavera ardente e estéril. O amor à novidade é a cruz simpática, prova de uma atitude ingênua de não-estou-nem-aí, sinal sem causa, passageiro, positivo. Mas essa necessidade está também antiquada. Ao darmos à arte o impulso da suprema simplicidade — novidade — somos humanos e fiéis ao divertimento, impulsivos, vibrantes para crucificar o tédio. Na encruzilhada das luzes, alertas, atentos, espreitando os anos, dentro da floresta.■


Escrevo um manifesto e nada quero, digo porém certas coisas e sou em princípio contra os manifestos, como sou também contra os princípios (decilitros para o valor moral de toda frase — comodidade demais; a aproximação foi inventada pelos impressionistas). ■ Escrevo este manifesto para mostrar que é possível realizar ações contrárias ao mesmo tempo, em um só fôlego fresco; sou contra a ação; quanto à contínua contradição, quanto à afirmação também, não sou a favor nem contra e não me explico porque detesto o bom senso.

DADÁ — eis uma palavra que oferece as ideias à caçada; cada burguês é um pequeno dramaturgo, inventa assuntos diferentes; em vez de colocar os personagens adequados no nível de sua própria inteligência, qual crisálidas em cadeiras, procura as causas ou os propósitos (seguindo o método psicanalítico que ele pratica) a fim de reforçar sua trama, uma história que fala e se define. ■ Cada espectador é um enredador, se tenta explicar uma palavra (conhecer!). Do refúgio acolchoado das complicações serpentinas, é preciso manipular seus instintos. Daí as infelicidades da vida conjugal.

Explicação: Divertimento dos barrigas-vermelhas nos moinhos de crânios vazios.

DADÁ NÃO SIGNIFICA NADA


Se o consideramos fútil e se não queremos perder nosso tempo com uma palavra que não significa nada... O primeiro pensamento que vem a essas cabeças é de ordem bacteriológica: encontrar sua origem etimológica, histórica ou psicológica, pelo menos. Vemos nos jornais que os negros Krou chamam a cauda de uma vaca sagrada: DADÁ. O cubo, e a mãe, em uma certa região da Itália: DADÁ. Um cavalo de madeira, a ama de leite, uma dupla afirmação em russo e em romeno: DADÁ. Jornalistas cultos ali veem uma arte para os bebês, outros santos Jesuschamandoascriancinhas do dia, a volta a um primitivismo árido e ruidoso, ruidoso e monótono. Não se constrói sobre uma palavra a sensibilidade; toda construção converge para a perfeição que entedia, ideia estagnada de um pântano dourado, produto humano relativo. A obra de arte não deve ser a beleza em si mesma, porque ela está morta; nem alegre nem triste, nem clara nem escura, deleitar ou maltratar as individualidades servindo-lhes os doces de auréolas santas ou os suores de uma corrida ondulante pela atmosfera. Uma obra de arte jamais é bela, por decreto, objetivamente, para todos. A crítica é portanto inútil, ela só existe subjetivamente, para cada um, e sem o menor caráter de generalidade. Acredita-se ter encontrado a base psíquica comum a toda a humanidade? A tentativa de Jesus e a Bíblia ocultam sob suas asas amplas e benevolentes: a merda, os animais, os dias.


Como se pode querer ordenar o caos que constitui essa variação infinita e informe: o homem? O princípio “ama ao teu próximo” é uma hipocrisia. “Conhece a ti mesmo” é uma utopia, mas mais aceitável pois ela contém em si a maldade. Nada de piedade. Resta-nos, após a carnificina, a esperança de uma humanidade purificada. Falo sempre de mim, já que não quero convencer, não tenho o direito de arrastar os outros no meu rio, não obrigo ninguém a me seguir, e todo mundo faz sua arte à sua maneira, se conhece a alegria que sobe qual flecha à esfera astral, ou a que desce às minas floridas de cadáveres e espasmos férteis. Estalactites: procurá-las por toda parte, nos presépios ampliados pela dor, olhos brancos como as lebres de anjos. Assim nasceu DADÁ de uma necessidade de independência, de uma desconfiança em relação à comunidade. Aqueles que pertencem a nós preservam a liberdade. Não reconhecemos nenhuma teoria. Já estamos fartos das academias cubistas e futuristas: laboratórios de ideias formais. Pratica-se a arte para ganhar dinheiro e adular os gentis burgueses? As rimas soam a assonância das moedas, e a inflexão desliza ao longo da linha do ventre de perfil. Todos os grupos de artistas foram parar nesse banco [no sentido de instituição bancária — N. do T.], cavalgando diversos cometas. A porta aberta às possibilidades de se chafurdar nas almofadas e na comida.

Aqui lançamos a âncora à terra fértil.


Aqui temos o direito de proclamar, pois experimentamos os calafrios e o despertar. Espectros ébrios de energia, cravamos o tridente na carne indiferente. Somos jorros de maldições em abundância tropical de vegetações vertiginosas, resina e chuva é nosso suor, nós sangramos e ardemos de sede, nosso sangue é vigor.

O cubismo nasceu da simples forma de olhar o objeto: Cézanne pintou uma taça 20 centímetros mais baixa que seus olhos, os cubistas a vêem do alto, outros complicam a aparência cortando uma seção perpendicular e dispondo-a prudentemente do lado. (Não esqueço os criadores, nem as grandes razões da matéria que eles tornaram definitivas.) O futurista vê a mesma taça em movimento, uma sucessão de objetos um ao lado do outro, ornamentados maliciosamente de algumas linhas de guia. Isto não impede que a tela seja uma boa ou má pintura destinada ao investimento de capitais intelectuais. O pintor novo cria um mundo, cujos elementos também são os meios, uma obra sóbria, definida e irrefutável. O artista novo protesta: ele não pinta mais (reprodução simbólica e ilusionista), mas cria diretamente em pedra, madeira, ferro, estanho, rochas, ou estruturas móveis que podem ser viradas de todos os lados pelo vento límpido da sensação momentânea.■

Toda obra pictórica ou plástica é inútil, ainda que seja um monstro que mete medo aos espíritos servis, e não adocicada para ornar os refeitórios dos animais em trajes humanos, ilustrações desta triste fábula da humanidade. — Um quadro é a arte de fazer duas linhas geometricamente paralelas se encontrarem em uma tela, diante de nossos olhos, na realidade de um mundo transfigurado segundo as novas condições e possibilidades. Esse mundo não é especificado nem definido na obra; ele pertence, em suas inúmeras variações, ao espectador. Para seu criador, ele é sem causa e sem teoria. Ordem = desordem; eu = não eu; afirmação = negação: irradiações supremas de uma arte absoluta. Absoluta na pureza do caos cósmico e ordenado, eterna no glóbulo-segundo sem duração, sem respiração, sem luz, sem controle. Adoro uma obra antiga por sua novidade. Ela é puro contraste que nos liga ao passado. Os escritores que pregam a moral e discutem ou melhoram a base psicológica possuem, além de um desejo secreto de ganhar, um conhecimento ridículo da vida, que eles classificaram, repartiram, canalizaram; eles estão determinados a ver as categorias dançar enquanto marcam o compasso. Seus leitores zombam e continuam: pra quê?


Existe uma literatura que não atinge as massas vorazes. Obra de criadores, produto de uma verdadeira necessidade do autor, e para ele. Consciência de um supremo egoísmo, ou a madeira se estiolando. ■ Cada página deve explodir, seja pela seriedade profunda e pesada, o turbilhão, a vertigem, o novo, o eterno, pelo absurdo desconcertante, pelo entusiasmo dos princípios ou pela forma como está impressa. Eis um mundo vacilante que foge, noivo dos guizos da escala infernal, eis do outro lado: os homens novos. Rudes, saltantes, cavalgantes de soluços. Eis um mundo mutilado e os medicastros literários precisando de aperfeiçoamento.

Eu lhes asseguro: não existe começo e nós não trememos, nós não somos sentimentais. Nós rasgamos, qual vento furioso, a roupa branca das nuvens e das preces, e preparamos o grande espetáculo do desastre, o incêndio, a decomposição. Preparemos a supressão do luto e substituamos as lágrimas por sereias estendidas de um continente ao outro. Pavilhões [no sentido do tubo de instrumento de sopro — N. do T.] de alegria intensa e viúvos da tristeza venenosa. ■ DADÁ é o sinal da abstração; a propaganda e os negócios são também elementos poéticos.

Eu destruo as gavetas do cérebro e aquelas da organização social: desmoralizar por toda parte e jogar a mão do céu no inferno, os olhos do inferno no céu, restabelecer a roda fecunda de um circo individual nos poderes da realidade, e a fantasia de cada indivíduo.

A questão é filosófica: de que ângulo começar a olhar a vida, deus, a ideia, ou seja lá o que for. Tudo que se olha é falso. Não considero o resultado relativo mais importante que escolher entre doces e cerejas na sobremesa. A maneira de olhar rápido o outro lado de uma coisa, para impor indiretamente sua opinião, se chama dialética, ou seja, decidir no cara-ou-coroa sob uma aparência de seriedade. Se eu grito:


Ideal, ideal, ideal
Conhecimento, conhecimento, conhecimento
Bum-bum, Bum-bum, Bum-bum

registrei com precisão o progresso, a lei, a moral e todas as outras belas qualidades que diversas pessoas bem inteligentes discutiram em tantos livros, para enfim dizer que, mesmo assim, cada um dançou segundo seu bum-bum pessoal, e que ele tem razão por seu bum-bum: satisfação da curiosidade doentia; repique de sinos privado por necessidades inexplicáveis; banho; dificuldades pecuniárias; estômago com repercussão sobre a vida; autoridade da batuta mística formulada como a peça final de uma orquestra fantasma de arcos mudos, lubrificados por filtros à base de amoníaco animal. Com o monóculo azul de um anjo eles desenterraram seu interior por vinte centavos de reconhecimento unânime. ■ Se todos têm razão e se todas as pílulas não passam de Pink, tentemos uma vez não ter razão. ■ As pessoas acreditam que podem explicar racionalmente, pelo pensamento, o que escrevem. Mas isto é bem relativo. A psicanálise é uma doença perigosa, amortece os pendores anti-reais do homem e sistematiza a burguesia. Não existe Verdade derradeira. A dialética é uma máquina divertida que nos conduz (de forma banal) a opiniões que teríamos tido de qualquer modo. As pessoas realmente acreditam que, pela sutileza minuciosa da lógica, demonstraram a verdade e estabeleceram a exatidão de suas opiniões? A lógica comprimida pelos sentidos é uma doença orgânica. Os filósofos adoram acrescentar a esse elemento: o poder da observação. Mas justamente esta magnífica qualidade do espírito é a prova de sua impotência. As pessoas observam, olham as coisas de um ou vários pontos de vista, escolhem-nas dentre as milhões que existem. A experiência é também um resultado do acaso e de habilidades individuais. ■ A ciência me revolta do momento em que se torna um sistema especulativo e perde seu caráter utilitário — tão inútil — mas pelo menos individual. Odeio a objetividade viscosa e a harmonia, essa ciência que considera que tudo está em ordem. Continuem, minhas crianças, humanidade... A ciência diz que somos servos da natureza: tudo está em ordem, façam amor tanto quanto a guerra. Continuem, minhas crianças, humanidade, burgueses gentis e jornalistas virgens... ■ Sou contra os sistemas, o sistema mais aceitável é aquele de não ter por princípio nenhum. ■ Completar-se, aperfeiçoar-se em sua própria pequenez até preencher o vaso de seu eu, a coragem de combater a favor e contra o pensamento, mistério do pão arremesso súbito de uma hélice infernal em lírios econômicos:

A ESPONTANEIDADE DADAÍSTA

Chamo de atitude de não-estou-nem-aí quando cada um cuida de sua própria vida, ao mesmo tempo em que sabe respeitar as outras individualidades, e até defender-se, o two-step [tipo de dança de salão — N. do T.] tornando-se hino nacional, bricabraque, T.S.F. telefone sem fio transmitindo fugas de Bach, anúncios luminosos e cartazes para os bordéis, o órgão transmitindo cravos para Deus, tudo isto ao mesmo tempo, e realmente substituindo a fotografia e o catecismo unilateral.

A simplicidade ativa.


A incapacidade de distinguir entre os graus de clareza: lamber a penumbra e flutuar dentro da grande boca repleta de mel e excremento. Medida pela escala da Eternidade, toda ação é vã — (se permitíssemos ao pensamento uma aventura cujo resultado seria infinitamente grotesco — dado importante para o conhecimento da fraqueza humana). Mas se a vida é uma farsa infeliz, sem meta nem parto inicial, e por acreditarmos que devemos, como crisântemos lavados, fazer o melhor da situação, proclamamos como a base única do entendimento: a arte. Ela não tem a importância que nós, escolados no espírito, lhe prodigalizamos por muitos séculos. A arte não prejudica ninguém, e aqueles capazes de se interessar por ela recebem carinhos e uma bela chance de povoar o país de sua conversação. A arte é uma coisa privada, o artista a faz para si; uma obra compreensível é o produto de um jornalista, e porque neste momento me agrada misturar este monstro nas pinturas a óleo: um tubo de papel imitando o metal que se pressiona para extrair automaticamente ódio, covardia, vilania. O artista, o poeta se regozija no veneno dessa massa condensada em um chefe de seção dessa indústria, ele fica feliz ao ser insultado: prova de sua imutabilidade. O autor, o artista elogiado pelos jornais constata que sua obra foi compreendida: revestimento miserável de um sobretudo de utilidade pública; farrapos que cobrem a brutalidade, mijo contribuindo para o calor de um animal que incuba os baixos instintos. Carne flácida e insípida se multiplicando com a ajuda dos micróbios tipográficos.


Nós rejeitamos a inclinação chorona em nós. Cada filtração dessa natureza é diarréia macerada. Encorajar essa arte significa digeri-la. Precisamos de obras fortes, diretas, precisas e para sempre incompreendidas. A lógica é uma complicação. A lógica é sempre falsa. Ela puxa os fios das noções e palavras exteriormente formais para alvos e centros ilusórios. Suas cadeias matam, miriápode enorme asfixiando a independência. Casada com a lógica, a arte viveria em incesto, engolindo sua própria cauda, que continua pertencendo ao seu corpo, fornicando consigo mesma, e o temperamento se tornaria um pesadelo feito de protestantismo, um monumento, uma massa de intestinos cinzentos e pesados.

Mas a flexibilidade, o entusiasmo e até a alegria da injustiça, aquela pequena verdade que praticamos inocentes e que nos torna belos: nós somos delgados e nossos dedos são maleáveis e deslizam como os ramos dessa planta insinuante e quase líquida; essa injustiça define a nossa alma, dizem os cínicos. Isto também é um ponto de vista, mas nem todas as flores são santas, felizmente, e o que há de divino em nós é o despertar da ação anti-humana. Trata-se aqui de uma flor de papel para a casa de botão de cavaleiros que frequentam o baile da vida mascarada, a cozinha da graça, brancas primas [em francês, cozinha (cuisine) e prima (cousine) soam quase iguais — N. do T.] flexíveis ou gordas. Eles traficam com aquilo que selecionamos. Contradição e unidade de pólos opostos ao mesmo tempo podem ser verdade. Caso estejamos absolutamente determinados a pronunciar essa banalidade, apêndice de uma moralidade libidinosa, malcheirosa. A moral atrofia, como todo flagelo produzido pela inteligência. O controle da moral e da lógica nos infligiram a impassibilidade diante dos agentes da polícia — causa da escravidão —, ratos pútridos com os quais os burgueses se empanturraram, e que infectaram os únicos corredores de vidro claros e limpos que restaram abertos aos artistas.

Que cada homem grite: há um grande trabalho destrutivo, negativo, por realizar. Varrer, limpar. A limpeza do indivíduo se afirma após o estado de loucura, de loucura agressiva, completa, de um mundo deixado nas mãos de bandidos que demolem e destroem os séculos. Sem propósito nem plano, sem organização: a loucura indomável, a decomposição. Os fortes pela palavra ou pela força sobrevivem, porque são rápidos na defesa; a agilidade dos membros e dos sentimentos arde sob seus flancos facetados.

A moral deu origem à caridade e piedade, duas bolas de sebo que cresceram como elefantes, planetas, e que as pessoas chamam de boas. Elas não têm nada da bondade. A bondade é lúcida, clara e resoluta, impiedosa para com o compromisso e a política. A moralidade infunde chocolate dentro das veias de todos os homens. Essa tarefa não é ordenada por uma força sobrenatural, mas pelo truste dos mercadores de ideias e açambarcadores universitários. Sentimentalismo: vendo um grupo de homens que discutiam e se enfadavam, eles inventaram o calendário e o remédio sabedoria. Colando rótulos, a batalha dos filósofos se desencadeou (mercantilismo, balanço, medidas meticulosas e mesquinhas), e compreendeu-se mais uma vez que a piedade é um sentimento, como a diarreia em relação ao desgosto que mina a saúde, a tarefa imunda das carniças de comprometer o sol.

Eu proclamo a oposição de todas as faculdades cósmicas a essa blenorragia de um sol pútrido saído das usinas do pensamento filosófico, a luta encarniçada, com todos os meios da

AVERSÃO DADAÍSTA

Todo produto da aversão suscetível de se tornar uma negação da família é dadá; protesto com toda a sua força em ação destrutiva: DADÁ; conhecimento de todos os meios rejeitados até agora pelo sexo pudico do compromisso cômodo e da polidez: DADÁ; abolição da lógica, dança dos incapazes de criação: DADÁ; de toda hierarquia e equação social estabelecidas pelos valores por nossos criados: DADÁ; cada objeto, todos os objetos, os sentimentos e as obscuridades, as aparições e o choque preciso de linhas paralelas, são meios para o combate: DADÁ; abolição da memória: DADÁ; abolição da arqueologia: DADÁ; abolição dos profetas: DADÁ; abolição do futuro: DADÁ; crença absoluta indiscutível em cada deus produto imediato da espontaneidade: DADÁ; salto elegante e sem preconceito de uma harmonia para outra esfera; trajetória de uma palavra atirada como um disco sonoro grito; respeitar todas as individualidades na sua loucura do momento: séria, temerosa, tímida, ardente, vigorosa, decidida ou entusiasmada; despojar sua igreja de todos os acessórios inúteis e pesados; cuspir como uma cascata luminosa o pensamento desagradável ou amoroso, ou acalentá-lo — com a viva satisfação de que tudo é igual — com a mesma intensidade na moita, livre de insetos para o sangue bem-nascido, e dourado com corpos de arcanjos, com sua própria alma. Liberdade: DADÁ DADÁ DADÁ, alarido de dores crispadas, entrelaçamento dos contrários e de todas as contradições, dos grotescos, das inconseqüências: A VIDA.



Fotos (abstracionistas ou quase) e fotomontagens (feitas com slides nos anos 60) do editor do blog. Conheça meu dicionário eletrônico gratuito francês-português, resultante de minha leitura de literatura francesa,  clicando aqui.

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TRÊS MARINHAS

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DIA DO POETA (20/10)


ALGUMAS COISAS QUE O POETA É
Jamil Damous (do livro A camisa no varal)

O poeta é um gavião
espreitando a beleza,
sua presa, seu pão
de cada dia.

O poeta é um avião
sobrevoando
sem mapa
a mata espessa,
a solidão.

O poeta é um peão
construindo sozinho
o edifício do sim
só com os tijolos do não.

O poeta é um cão
rondando a mesa do difícil,
os restos do fácil,
o osso do seu ofício.



MÁGICO
Vera Tavares (texto gentilmente fornecido pela autora)

Lembra circo: palhaço, mágico, domador, equilibrista, contorcionista.

Por um fio invisível ele desce até o mais profundo do mar, e lá se acomoda, permanece hibernando, fugindo e fingindo.

Passado o perigo, numa onda volta à superfície — desliza, salta, surfa. E à terra volta.

Sombra, por entre transeuntes passa. E bons desejos almeja. A canção da paz solfeja.

Enfatiza o amor, receita o amor para qualquer coisa, mazelas inclusive.

Refaz o mundo desfazendo as tristezas, dando sumiço às mágoas, derrubando as incertezas, apagando a solidão.

Mundo novo vestido de guirlandas coloridas, bonitos sorrisos. Céu azul jorrando luz. Estrelas estalando beijos de felicidade.

Sonho do poeta.


DIA DO POETA
Maria Thereza Noronha (do livro O verso implume)

O dia do poeta acende a sala
de palavras: antena outono tâmara
todas compondo a egrégora que a rama
dos anos vai tecendo em fina opala.

O dia do poeta acende a fala:
imagens abrem frestas sobre o tema.
E pouco importa a chama seja efêmera
se eterna é a poesia onde se cala.

À flor do dia luminosa esteira:
vão chegando Drummond, Vinícius, Mário,
Jorge de Lima, Cecília, Bandeira.

Sentam-se à mesa dos eternos topos.
Colhem o dia, acordam tempo vário.
E, como Mallarmé, batem os copos.

Glossário:
egrégora - termo do esoterismo, designa a somatória de energias mentais, criadas por grupos.
topos - grandes temas da literatura, por exemplo, o tema do bucolismo, dos tempos idos e vividos, do carpe diem.


VENCEDOR
Augusto dos Anjos (um dos poetas mais populares no Brasil, durante sua vida só publicou um livro, Eu, cuja edição foi custeada pelo irmão)

Toma as espadas rútilas, guerreiro,
E à rutilância das espadas, toma
A adaga de aço, o gládio de aço, e doma
Meu coração — estranho carniceiro!

Não podes?! Chama então presto o primeiro
E o mais possante gladiador de Roma.
E qual mais pronto, e qual mais presto assoma
Nenhum pôde domar o prisioneiro.

Meu coração triunfava nas arenas.
Veio depois um domador de hienas
E outro mais, e, por fim, veio um atleta,

Vieram todos, por fim; ao todo, uns cem...
E não pôde domá-lo, enfim, ninguém,
Que ninguém doma um coração de poeta!


TRIBO POÉTICA
Manuel de Souza (escrito em Luanda, Angola, a 30 de Setembro de 2005 e dedicado a todos os Poetas de todos os tempos e almas)

Cada vez mais...
Sou indígena da Tribo Poética
Em minhas veias
Agora pela presente
Ao invés de sangue
Circula uma torrente de letras
Jorra um fluído rico em palavras
Meu coração bombeia verbo atrás de verbo
Meus órgãos foram substituídos
Existem no seu lugar imensas bibliotecas
Completas com livros ainda por desfolhar
Minha Alma é uma Prensa Cósmica
Onde se editam páginas sem fim...
Inspiro-me nos raios que advêm das Estrelas
Bebo a seiva da Vida na Fonte Divina
Alimento-me da poeira vinda das Galáxias
Ilumino frase atrás de frase
Página após página...
Com a Luz Maior da Eternidade
Sirvo-me da Mente do Criador como tinteiro
Como se minha própria pena de escriba
Seja em si e em minhas mãos
Uma espécie de Maná de literatura poética
De cuja natureza e essência
Seja ela de origem física ou espiritual
Sou eu próprio feito ...


RECEITA DE POETA
Ivo Korytowski (dedicado a Vinicius, que nos deu a "Receita de Mulher")

O poeta não precisa ser boa-pinta
Mas tem de escrever coisa supimpa.

Não precisa ser um Humphrey Bogard
Contanto que componha uma bela obra.

Que se chame João, José, Almir
Sob a condição de que saiba escandir.

Não importa se branco, índio, preto
Mas tem de compor um belo soneto.

Não importa se pardo, moreno ou louro
Se o soneto culminar em chave de ouro.

O poeta pode até ser meio franzino
Mas tem de compor em alexandrino.

O poeta pode ser coxo ou manco
Mas que se esmere no verso branco.

Ao falar, quem sabe seja gago?
Mas ao escrever tem de ser um Machado.

Na vida real pode até ser vulgar
Mas na poesia tem de saber rimar.

O poeta pode até ser casmurro
Mas precisa escrever com apuro.

O poeta pode até ser ferino
Se compuser como manda o figurino.

Admite-se um poeta pecador
Mas tem de escrever com vigor.

Acaso esqueceu aberta a braguilha?
Tudo bem se compuser redondilha.

Tudo bem que seja bonachão
Se escrever do fundo do coração.

Que seja porventura malandro
Contanto que componha um ditirambo.

Quem sabe seja um paxá?
Mas não pode escrever rima má.

Não é preciso ser trovador
Mas não vá rimar "amor" e "dor".

O poeta pode até ser palhaço
Contanto que nos eleve ao Parnaso.

Do poeta não se exige origem nobre
Contanto que evite a rima pobre.

Que se meta, vez ou outra, num entrevero
Contanto que escreva com esmero.

Pode até ser meio que "filha-da-puta"
Mas tem que escrever coisa batuta.

O poeta pode ser meio cavalar
Contanto que evite a rima vulgar.

Tanto faz se de esquerda ou direita
Contanto que a rima seja perfeita.

No dia-a-dia pode até ser trapalhão
Mas na métrica tem de ser campeão!


POETAS
HFroidi (da revista não funciona n. 10)

Poetas não nascem em Belém
Poetas não são homens de bem
Poetas não dizem ao que vêm
Poetas não são business men

Poetas não vivem de salários
Poetas jamais são necessários
Poetas na roda dos contrários
Agora são bons publicitários

Poetas não têm objetivos
Não são economicamente ativos
Poetas são enterrados vivos
Em sepulturas de livros


VATE EM TRANSE
Cairo Trindade (da revista não funciona n. 10)

poema só se faz poesia
se emitir mensagem
se tiver magia
se for viagem

(o poema não é um monte
de palavras vomitadas:
é um vírus visceral
revolucionário)

e um poeta só será poeta
se for fundo, inteiro, intenso
e viver sempre entre
a vertigem e a voragem