FLORIANÓPOLIS (FLORIPA): ILHA DA MAGIA

Vista da janela do Hotel Ibis

20/12 Rio-Florianópolis

Quatro horas da madrugada no Hotel Ibis no centro de Florianópolis, cidade de Floriano, Floripa para os íntimos. Insônia. Marcinho (meu filho) dorme feito pedra ao meu lado na cama de casal. O hotel não tem camas de solteiro. Como gosto de hotéis Ibis, o preço estava supercamarada (561 reais por quatro dias, ou seja, 280,5 per capita, uma pechincha) e o hotel se situa estrategicamente bem no centro da cidade, peguei assim mesmo. Depois que Marcinho virou adulto nunca havíamos feito uma viagem juntos. Duas e meia da tarde fui pegá-lo em sua casa. Ele tinha saído para fechar a venda de uma moto e atrasou um pouco. Eu que gosto de “madrugar” no aeroporto já fui ficando nervoso. Pegamos um motorista de táxi que nos contou mil peripécias de como viajou de moto com um grupo de Curitiba para Recife, seus acidentes de moto, moto roubada, enormes prejuízos. 


pela janela dava para ver todo o litoral carioca

O voo, tranquilo. Ultimamente perdi o antigo medo de avião. Na saída do Rio pela janela (lado direito) dava para ver todo o litoral carioca: as praias da Zona Sul, Barra, Pontal, a Restinga. Chegamos, chovia a cântaros. O chofer de táxi contou que fazia dias chovia sem parar. À noite saímos assim mesmo, compartilhando um guarda-chuvinha, rumo ao Mercado Público. O recepcionista do hotel explicou como ir até lá, mas eu nunca entendo direito essas orientações (falta de memória espacial) e acabamos pegando a direção errada e só descobrimos graças ao GPS do celular do Marcinho. Admirável tecnologia nova!


Mercado Público

No Mercado Público saboreamos uns pasteizinhos de camarões e outros de carne seca, e iscas de peixe. E cerveja. Saímos de lá, continuava chovendo.


Floripa, Eu Amo, Eu Cuido: cidade “civilizada”, limpa

A primeira impressão de Floripa é de uma cidade “civilizada”, limpa, onde os carros respeitam as faixas de pedestres. A cidade foi originalmente colonizada por portugueses, sobretudo açorianos, e o estado recebeu depois forte afluxo de colonos alemães. Numa mesa grande no Mercado vimos um grupo que poderia ser perfeitamente de muniquenses na Oktoberfest. Prosit.

21/12 Florianópolis: 1o dia

Floripa by Bus, o city tour oficial de Florianópolis, em “open bus”

Passeio Floripa by Bus, o city tour oficial de Florianópolis, em “open bus” com segundo andar aberto, sem janelas ou teto. Lá do alto você tem um panorama privilegiado e até uns momentos de emoção quando o ônibus passa rente a galhos de árvore – por isso é proibido ficar de pé. O ingresso eletrônico comprei pela Internet aqui antes de partir. A chuva que nos assustou no dia da chegada (será que vai “melar” nossa estadia em Floripa?) esgotou-se, e hoje – sorte grande! – amanheceu ensolarado. Um casal de paulistanos de nosso hotel que veio no mesmo passeio contou que pegou três dias de chuva! O passeio “Toda Ilha” (terça a domingo, 8h às 16h30), “o passeio mais completo da cidade”, entrega o que promete: você vê praias no sul, leste, norte e oeste da ilha e de quebra visita o núcleo histórico Santo Antônio de Lisboa, Mirante Ponto de Vista e pode (opcionalmente) visitar o Projeto Tamar, de preservação das tartarugas. 


você vê praias: Praia da Joaquina vista da Ponta da Pedra


núcleo histórico Santo Antônio de Lisboa: presépio diante da Igreja de Nossa Senhora da Necessidade, única no Brasil com esta atribuição de Nossa Senhora ligada à Peste que assolou Lisboa no início do século XVII


Lagoa da Conceição vista do Mirante Ponto de Vista

Você não só praias, mas em algumas o ônibus dá uma parada (Campeche: 15 min; Joaquina: 15 min; Praia da Barra: 45 min; Jurerê Internacional: 30 min) e você pode dar uns mergulhos. Traga traje de banho sob a roupa, boné e protetor solar. 


você pode dar uns mergulhos

Há uma parada de uma hora num restaurante a quilo superfrequentado, tem fila para se servir, sinal de que é bom. Mostrando o folheto do tour na caixa você ganha dez por cento de desconto. Se comer só salada, frutas e peixes, o preço cai (são comidas literalmente “leves”) e você não fica de barriga cheia na segunda parte do passeio. O tour custa cem reais, mas seniores como eu pagam oitenta. Viva a melhor idade!


pedacinho do Primeiro Mundo: em Floripa a polícia admite a criminalidade e avisa. No Rio sequer em comunidades de alta periculosidade tem placas para evitar que carros desavisados entrem, o que às vezes resulta em tragédia

A impressão que se tem de Floripa é de um pedacinho do Primeiro Mundo dentro de nosso país. [Não é só impressão, chegando em casa e pesquisando, constato que o IDH de Floripa é o terceiro maior do Brasil, na mesma faixa daquele de países como Portugal e Espanha. Ver aqui e aqui.] Aliás, se você ficar uns dias sem ver noticiário, como estou aqui, nosso país é maravilhoso. Em Floripa você roda, roda, roda e não vê nenhuma favela. Vê casas em encostas, à moda portuguesa, coloridinhas (ver aqui), mas são casas de classe média baixa, não barracos com tijolos aparentes em terrenos invadidos. Os parques públicos são limpíssimos. 


casas sofisticadas sem nenhum muro

Em Jurerê Internacional você vê casas sofisticadas (tipo “de jogador de futebol”) sem nenhum muro, aparentemente devassáveis (na verdade, existe um sistema de segurança “invisível” que as protege). As praias são lindas – tem praia mansa, com arrebentação lá na frente; tem praia badalada, lotada; tem praia que é point internacional de surfe, tem praia “piscininha” de lagoa – e, ao contrário das praias em outros rincões brasileiros, não são emporcalhadas por uma população deseducada: não tem aqueles plásticos de embalagem de cerveja em lata, descartados por camelôs em qualquer canto, garrafas PET abandonadas na areia, etc.


O chão de mosaico de pedras portuguesas não tem uma pedra solta

No momento em que escrevo estas linhas, na manhã do dia seguinte, estou sentado em um banco da Praça XV ouvindo o canto dos pássaros que ocupam as árvores frondosas. O chão de mosaico de pedras portuguesas não tem uma pedra solta e só não digo que está totalmente limpo porque, com meu olhar minucioso, detectei duas guimbas de cigarro e um pedacinho de plástico de embalagem de cigarro destoando da limpeza geral. Tudo muito europeu (não que os europeus sejam perfeitos, vide guerras mundiais e genocídios). Aqui não teve a cultura escravagista (“casa grande e senzala”) de que os “poderosos” podem tudo e os “humildes” fazem o trabalho sujo, que deixou marcas até hoje na mentalidade do não-sul do país. O sul foi colonizado por imigrantes que vieram para trabalhar, não para explorar ou enriquecer da noite para o dia. Sociólogos e historiadores de plantão, se estou errado, corrijam-me!


Estátua do pescador Deca na Av. Pequeno Príncipe, quase na Praia do Campeche, que se tornou amigo de Saint-Exupéry (Zé Pery como era chamado lá). Mais informações aqui.

O guia da excursão, ou gravações, o tempo todo dão informações e contam curiosidades. Por exemplo, Campeche seria uma corruptela de campo de peixe (champ de pêche), que é como Saint-Exupéry, que aqui pousava para reabastecer em seus voos pelo correio francês entre Buenos Aires e a França, chamou a área. [Segundo a Wikipedia esta seria uma lenda urbana. Ver aqui.] Tem até uma rua Pequeno Príncipe aqui. Durante o passeio o ônibus toca uma trilha sonora bem variada – seresta, reggae, pagode – de exaltação à “Ilha da Magia”: “mistérios, segredos a me seduzir/ O meu lugar é aqui / Eu te amo Floripa, eterna beleza que me faz sorrir”. A canção faz alusão ao arrastão, ainda em sua acepção original de pesca com rede, nada a ver com o triste “arrastão” carioca.



Com seus quase 500 mil habitantes (mais uma significativa população flutuante), Floripa consegue ser o “Rio dos anos sessenta” como bem observou nosso guia: estilo de vida descontraído e praiano, mas sem a violência que como um câncer corrói nossa cidade maravilhosa.

22/12 Floripa: 2o dia
De manhã deixei Marcinho dormindo, já que ele tinha ido à balada, e saí para percorrer um roteiro do Centro Histórico que obtive na Internet. Mas antes, uma informação óbvia mas que nem sempre nos ocorre: Florianópolis é a cidade de Floriano, o segundo presidente da república. Embora na Revolução Federalista (isto quem contou foi o guia do tour, eu não sabia) tivesse mandado fuzilar os líderes catarinenses rebeldes, a ex-cidade do Desterro veio a homenageá-lo em seu nome. Não vou descrever aqui o roteiro completo com as informações históricas detalhadas – você pode encontrá-los no site do Roteiro Autoguiado do Centro Histórico de Florianópolis clicando aqui. Vou só citar alguns destaques.


sobrados oitocentistas multicores

mictório público em elegante art déco

bonitos azulejos esmaltados

Sobre a praça XV, com seu belo jardim (Jardim Oliveira Bello, implantado entre 1875 e 1877), já escrevi ontem, Pois foi lá que me sentei para escrever o diário de anteontem. “Em cima” (norte) da praça a Catedral Metropolitana; à direita, entrando na Rua Fernando Machado, sobrados oitocentistas multicores; embaixo um mictório público em elegante art déco e o chamado “Museu do Saneamento”, antiga estação elevatória de esgotos de início do século XX, fechado à visitação (e mesmo que estivesse aberto, de tão exíguo, pouca coisa se veria lá dentro) e em péssimo estado de conservação mas que vale a pena ver pelos bonitos azulejos esmaltados; no centro da praça uma enorme Figueira; no alto da praça o Monumento aos Mortos na Guerra do Paraguai, com balas de canhão na cobertura; à esquerda o palácio Cruz e Souza. (Veja no Google Maps clicando aqui.)

A Catedral

A Catedral, originalmente de 1753 a 1763 mas reformada em 1922, cuja fachada mescla elementos dos estilos neorromânico e neoclássico, estes últimos acrescidos na reforma, abriga belos vitrais, afrescos, capelas, bela imagem de Santa Catarina no alto do altar-mor e uma talha em dois blocos de madeira, confeccionada na Áustria, representando o Desterro (fuga ao Egito) da Sagrada Família, de grande valor artístico. Enquanto eu conversava com uma monitora, uma senhora se juntou a nós e contou um “causo” interessante que não deve estar registrado em lugar nenhum, e que revelo aqui suponho que em primeira mão. Contou ela que seu bisavô, que colaborava com as obras da igreja, tendo sido encarregado de colocar a talha num nicho no altar-mor, para poder encaixá-la, teve de serrar a orelha do burrico. Mas como depois os fiéis reclamassem de um burro no altar, foi removida de lá, e a orelha serrada recolocada. O fato é que você vê até hoje a marca de onde a orelha foi serrada.


belos vitrais

bela imagem de Santa Catarina

Infelizmente a obra sofreu de vandalismo, a ponto de um dedo de São José ter sido decepado, obrigando a que a protegessem atrás de espesso vidro, prejudicando sua visão. Também obras de Michelangelo sofreram ataques de tresloucados.

Sou como um Réu de celestial sentença,
Condenado do Amor, que se recorda
Do Amor e sempre no Silêncio borda
De estrelas todo o céu em que erra e pensa.
Cruz e Souza, Inefável


Palácio Cruz e Sousa

O Palácio Cruz e Sousa, também conhecido como Palácio Rosado devido à cor, típica de algumas construções clássicas de Florianópolis, abriga o Museu Histórico de Santa Catarina (ingresso: R$ 5; meia R$ 2). Não entrei – não dá para visitar tudo. Originalmente um sobrado colonial, usado no passado como residência dos governadores, sofreu reformas que lhe deram o aspecto atual num estilo Beaux Arts rebuscado. No quiosque no Largo da Alfândega saboreei um megapastel com “mil” camarões a R$ 10 regado a caldo de cana que aqui vem misturado com suco de limão: meu almoço.


caldo de cana

Depois fui pegar o Marcinho no hotel para nossa praia da tarde. De Uber sairia caro, de modo que propus fazermos o que gosto de fazer em toda cidade que visito: usarmos o transporte público e nos misturarmos à população. Fomos até o terminal de ônibus, ao lado da Praça XV, e lá indagamos ao despachante como chegar nas praias. Você tem os ônibus executivos (frescões) que vão direto às praias (R$ 8,50). Os ônibus comuns seguem um sistema inteligente. Em vez de em cada bairro praiano uma linha ligá-lo ao Centro, as linhas convergem em um terminal de integração onde você muda de veículo (sem pagar nova passagem) que o levará ao terminal central.



Praia da Joaquina: faixa de areia limpinha

Pegamos um ônibus executivo meio que aleatoriamente e uma mulher ficou de nos avisar onde deveríamos saltar para então caminhamos até a Praia da Joaquina, que nos havia agradado ontem. No percurso a pé vimos as dunas onde você pode praticar o sandboarding. A praia tem uns hotéis três estrelas, uma pedra tipo Arpoador, embora bem menor (Ponta da Pedra) e uma boa faixa de areia limpinha (o pessoal joga o lixo nos coletores) percorrida por uns vendedores que te vendem uma cerveja geladinha por R$ 5 e ainda batem um papo gostoso com você, se você puxar. Um vendedor contou que aqui, ao contrário do que parece, tem lugares perigosos também, mas como o tráfico é todo dominado por uma só facção, não tem essas guerras tipo Rio ou Sampa.

No fim do dia tencionávamos, cheios de fome, comer a sequência de camarões no Mercado Público, mas, sendo sexta-feira, estava lotado, com barulho de um show ainda por cima, e como aqui no Centro fora do Mercado não tem quase restaurante contentamo-nos com uns pastéis à moda catarinense (massudos) e deixamos a sequência, prato típico local, para o dia seguinte.

23/12 Floripa: 3 o dia



O Hotel Ibis, além de estrategicamente situado bem no centro da cidade, perto da Beira-Mar e a 20 minutos a pé do centro (Praça XV, Mercado Público, etc), tem uma excelente relação custo-benefício. Único senão (que comuniquei ao hotel) é um elevador que você tem que colocar a “chave” (um cartão) numa ranhura para poder selecionar o andar, mas o pessoal da recepção não explica. Aí você entra no elevador, ele fecha a porta, e se você não bota o cartão no lugar porque não sabe (tem um aviso, mas digamos que você é distraído), ou põe na posição errada, o elevador não anda nem abre a porta: terror dos claustrofóbicos! (Espero que corrijam isto porque o hotel é muito bom.)


casa moderna na Rua Rafael Bandeira, 41

Ontem tentei visitar o Museu na casa natal do pintor Victor Meirelles – aquele dos quadros históricos que estão nos livros de história da escola, mas que morreu no esquecimento e pobreza por causa da perseguição ideológica dos “golpistas” republicanos – mas está em restauração, e o acervo está temporariamente abrigado numa casa moderna na Rua Rafael Bandeira, 41, quase esquina com a Victor Konder, pertinho do Shopping Beiramar.

Beira Mar

Percorri um trecho da Beira Mar (que na verdade se chama Av. Jorn. Rubens de Arruda Rakos) do lado do calçadão e ciclovia. A praia é de pedras, em alguns trechos existe uma estreita faixa de areia, mas o pessoal prefere tomar banho nas praias mais distantes.





Na Via Expressa os carros trafegam de faróis acesos, é obrigatório. No Shopping Beiramar procurei um supermercado e comprei duas bananas a 25 centavos para perfazer minha ração diária. Por ser sábado, apenas duas salinhas de exposição estavam abertas, com alguns estudos e esboços do Victor, algumas obras de outros pintores do século XIX e uma sala daquele tipo de arte contemporânea abstrata e antiestética que não me emociona. Retornei ao hotel percorrendo, orientado pelo meu GPS dos velhos tempos (mapa), umas ruas de uma área de classe média alta que era a cara de Sampa, com prédios residenciais de construção recente (alguns belamente ornados com painéis de mosaicos como mostram as fotos acima) e um ou outro elegante casarão preservado com uso comercial, e onde você pode andar horas sem achar nenhum boteco onde aplicar sua sede. 


uma área de classe média alta que era a cara de Sampa

Quase chegando no hotel, achei um providencial Subway onde entrei com a intenção de beber um suco, mas acabei me deleitando também com um sanduíche vegetariano: nada como tomate, cebola, pepino, azeitona, rúcula para alegrar, não digo o seu espírito, mas seu organismo, aquela máquina invisível graças à qual você funciona.


sanduíche vegetariano

Passamos a tarde, Marcinho e eu, na aprazível Lagoa da Conceição, que na verdade é uma laguna, de água salgada, com ligação com o mar. No final da tarde, a esperada sequência de camarões, que na verdade é uma sequência de frutos do mar: lulas, peixe, camarões, casquinha de siri, com molho tártaro e, de acompanhamento, arroz, fritas e pirão. Tudo bem fresco, frito num óleo limpo, sem deixar gosto. 


aprazível Lagoa da Conceição

Você pode escolher entre uma série de restaurantes. O considerado melhor e mais bem servido (com criação própria de camarões) é o Boka’s, mas fomos num mais barato, o Primícias do Mar. Gostamos. Quando adentramos o restaurante caiu uma tempestade daquelas de derrubar barraco de favela no Rio.


Primícias do Mar

Dia 24/12 Florianópolis-Rio

Amanheceu chovendo. Chuva na partida. Chuva na chegada. Sol nos dias que aqui permanecemos. Se algum dia eu disse, ou vier a dizer, que sou azarado estava/estarei mentindo.


Amanheceu chovendo

VIAGEM A ANGOLA ou SORRIA, VOCÊ ESTÁ NA ÁFRICA!

DIÁRIO DE VIAGEM DE IVO KORYTOWSKI

Palanca-negra, símbolo de Angola

Quinta-feira, 23 de novembro de 2017
Quatorze horas e quatorze minutos. Sentado numa “espreguiçadeira” num dos corredores do que, sem a sinalização orientadora, seria um labirinto, no Aeroporto Internacional, diante de um vidro enorme com visão para os aviões “estacionados”. Na minha frente, o avião, com listras vermelhas e laranja e a imagem da palanca-negra – o quase extinto animal símbolo nacional de Angola – no leme, da Angola Airlines (TAAG) que, após uma escala em São Paulo, me transportará para Luanda, do outro lado do oceano. O embarque começará às 15:20 e a aeronave decolará às 16:50. Quando viajo ao exterior gosto de “madrugar” no aeroporto. De que adianta ficar esperando em casa, nervoso? Saí de casa ao meio-dia, peguei um táxi, vim conversando com o chofer no caminho, cheguei no aeroporto às dez para uma, o check-in deveria começar a uma mas atrasou um pouquinho. Minha mochila que já percorreu meia Europa contrasta com os malões dos demais passageiros, suponho que repletos de compras. Sociedade consumista. No controle de segurança, o alarme insistia em tocar. Tive de tirar cinto, tirar sapato, tirar carteira (com moedas de metal). E agora estou aqui sentadinho aguardando o embarque.

Na minha frente, o avião, com listras vermelhas e laranja...

... e a imagem da palanca-negra no leme (desembarque em Luanda)

Sexta-feira, 24 de novembro
No voo, a 38 minutos do destino. A temperatura em Luanda é de 25 graus. Mesma do Rio. Avião com comissário de bordo e aeromoças todos negros é o máximo! Os assentos do Boeing 777-300 ER da TAAG, o “maior bimotor do mundo”, como consta do folheto de instruções de segurança que ninguém lê, são bem mais espaçados que os das companhias aéreas europeias que ligam nossa terra ao Velho Continente (ver observações sobre o voo da TAP no diário de viagem anterior, clicando aqui) O joelho não chega a tocar nas costas do assento em frente. No Rio a aeronave decolou meio vazia. Preocupei-me com a saúde financeira da empresa. Mas em Sampa uma horda enfim quase lotou o aparelho. Peguei assento de centro para poder me levantar no meio da noite e ir ao toalete ou esticar as pernas sem ter que incomodar nenhum passageiro ao lado. Mas entre Rio e Sampa deu para ir um pouco para uma janela vazia e fotografar o incrível céu azul com o tapete de nuvens embaixo


o incrível céu azul com o tapete de nuvens embaixo

Na mesma fila que eu, com um banco vazio nos separando, um naturalista uruguaio, que vai atrás de uma oportunidade de trabalho numa floresta no centro do país, conta um fato que eu já havia lido no livro do Theroux que traduzi ao português: que a guerra civil angolana dizimou grande parte da vida animal do país. “Um efeito da guerra civil de décadas foi que os animais que não haviam sido devorados por pessoas famintas tinham sido destroçados por minas terrestres. O extermínio dos animais selvagens fora completo.” (Paul Theroux, O último trem para a Zona Verde, p. 222) Também na história da TAAG, nas informações de bordo, fico sabendo que, durante a guerra civil, o transporte aéreo era o único meio de locomoção seguro e confiável entre cidades angolanas. O uruguaio acabou se mudando para uma janela vazia, de sorte que (sorte mesmo) fiquei com as três poltronas centrais para mim. Deu até para deitar e (algo inédito para alguém que não pregava o olho nas viagens aéreas) dormir ao som de Bach e do piano de Horowitz. De manhã ouvi música folclórica angolana. Afinal nosso samba originou-se do semba angolano, dizem. Enfim, após 66 anos de existência terrena, perco o pavor das viagens aéreas. Contribui o fato de a TAAG fazer cinco voos semanais entre Brasil e Angola e nunca, ao que eu saiba, caiu algum avião seu.


Cheguei. O guarda da migração vê meu passaporte e, diante de meu sobrenome (Korytowski), pergunta se falo polaco. Respondo que meus antepassados falavam, conto que meus pais vieram como refugiados para o Brasil por serem judeus, em suma, de repente estamos conversando como velhos amigos. Bem diferente das migrações europeias onde você chega tremendo de medo e é submetido a um interrogatório policial: que veio fazer aqui, até quando vai ficar?

Meu irmão Sergio veio me apanhar no aeroporto. Vive há dez anos em Angola. Atualmente trabalha na gestão financeira de um negócio de restauração (restaurantes) e pastelaria (confeitaria) de um libanês. Ele conta que, quando chegou em Angola dez anos atrás, aqui era um fim de mundo. O aeroporto não tinha nem saguão, você esperava os viajantes na rua, pegando chuva. O país viveu um grande boom na fase da alta do petróleo, mas com a crise financeira americana de 2008 e a queda do preço do petróleo, veio a crise econômica, da qual só agora o país – sob um novo presidente – começa a sair. Angola tem suas peculiaridades. Uma delas é que tem mais mulheres do que homens – 13,3 milhões de mulheres (52%) para 12,5 milhões de homens (48%) segundo o último censo (seria o efeito das mortes na guerra civil?) – o que gera uma sociedade de mulherengos: sexta-feira é conhecida como o “dia do homem”. Neste dia “têm liberdade total para namorar outras mulheres, beber até de madrugada e fazer tudo o que lhes passar pela cabeça, enquanto as mulheres ficam em casa a tomar conta dos filhos”, como conta a matéria SEXTA É DIA DO HOMEM EM ANGOLA… OUTRA VEZ! no site Bons Rapazes. Aliás, essa cultura pró-“sexo forte” está refletida neste comercial da cerveja Cuca: 


CUCA - ANGOLA from Take It Easy Film on Vimeo.

A criminalidade é baixa, exceto em certas áreas bem periféricas, porque, segundo me explicaram, a polícia aqui age com rigor e tem o respaldo das autoridades. Só mesmo no nosso Rio a bandidagem caça e extermina policiais. Enquanto o nosso querido Brasil é o 13o país no ranking das mortes por violência (30,53 por 100 mil habitantes), Angola está na 48a posição (10,89 por 100 mil habitantes), como você pode ver clicando aqui.



Quando cheguei falei que queria trocar cem dólares em moeda local (kwanza) e o motorista nos levou a um beco onde fizemos o câmbio com um cambista em plena rua, conseguindo 390 kwanzas por dólar. Se fosse fazer o câmbio pelas vias oficiais num banco conseguiria bem menos. Quando as pessoas reclamam que Luanda é uma cidade caríssima é porque trocaram a moeda pelo câmbio oficial. Uma coisa que impressiona é o número de gente na rua, gente que não acaba mais, incluindo um monte de vendedores ambulantes. Suponho que a guerra civil tenha provocado um êxodo rural: dos 25,8 milhões de angolanos contabilizados no censo de 2014, o primeiro desde a Independência, 6,9 milhões (ou seja, 27 por cento) vivem na província de Luanda, ou seja, a “Grande Luanda”. O município de Luanda propriamente abriga 2,2 milhões de habitantes. 

Existe uma elite do governo que controla a economia. O ex-presidente angolano José Eduardo dos Santos é o chefe de Estado mais rico do mundo, superando Trump e os emires de Catai e Dubai. 

Essa oligarquização implica certos riscos. Alguém me contou que o dono, estrangeiro, de um restaurante certa vez chamou a atenção de um grupo de moças que estavam fazendo muita algazarra. Horas depois chegou no restaurante um bando de agentes parrudos com uma intimação para que deixasse o país em 24 horas. Parece que uma da moças era filha de não sei qual potentado.

Dei minha primeira volta sozinho. Desci (ou subi, sei lá) um trecho da Avenida 21 de Janeiro, uma das artérias da cidade, com trânsito bem pesado, tipo uma Avenida Brasil. Não tem sinais de trânsito, só umas faixas de pedestres que à primeira vista você tem a impressão de que são desrespeitadas, mas depois acaba percebendo que, quando se forma um grupo, os carros acabam parando. Quase não tem ônibus aqui. O transporte público é feito por umas vans Toyota Hiace cuja denominação tradicional era "candongueiros", mas que costumam chamar de “táxi”. À semelhança de linhas de ônibus, seguem certos itinerários e, afora o condutor, têm um cobrador que, além de arrecadar o dinheiro, abre e fecha a porta e vai apregoando o destino para as pessoas nos pontos. Uma boa descrição desse veículo que transporta diariamente 500 mil pessoas para o Centro e de volta para casa você encontra no blog EU EM ANGOLA


umas vans Toyota Hiace cuja denominação tradicional era "candongueiros", mas que costumam chamar de “táxi”

O pessoal lança muitos detritos nos logradouros públicos, mas existem varredores de rua. Quando cheguei de manhã fazia tempo nublado, mas mais para o meio-dia surgiu o sol inclemente, africano. Como estamos fora da estação de chuvas, existe muita poeira nas ruas. Tem umas ruas transversais sem calçamento que parecem as entradas de certas “comunidades” do Rio. O que os alemães têm de organização e os britânicos de pontualidade os angolanos têm de gentileza e simpatia.


simpatia

Almoçamos no Gula Gula no Belas Shopping. Deve ser filial do brasileiro, com sistema a quilo e comidas semelhantes: feijão preto, linguiça... Mas tinha uma parte com comida com cara de baiana. Era a comida angolana: banana da terra, aipim, batata doce, creme de uma verdura tipo espinafre, o funge, um pirão de farinha de mandioca ou milho que é o “feijão com arroz” dos angolanos,  e feijão mulatinho. A pimenta então era Bahia pura. Tinha um peixe também, local, não muito grande, frito com cabeça e tudo, aspecto pouco convidativo, muitas espinhas, mas delicioso. Quem vê cara não vê coração.


Era a comida angolana

O shopping é o que é um shopping em qualquer parte do Brasil ou do mundo. Loja de havaianas (uns cinquenta reais o par), loja de celular, cinema e um baita supermercado de Primeiro Mundo, com predomínio de produtos de origem lusitana. O Sergio me diz que os “tugas”, como são aqui chamados os “portugas”, dominam este ramo.

Chope aqui é um “fino”.

Chope aqui é um “fino”. O chope menorzinho é “lambreta”. Colarinho de chope é “gravata”. O melhor chope localmente produzido chama-se Cuca: sabor fresco e agradável efeito alcoólico, tipo um chope da Brahma. Pelo menos na área do chope já estou me aculturando.

aqui em Angola Fidel é venerado

Para nós direitistas Fidel Castro foi um tirano liberticida. Mas aqui em Angola Fidel é venerado. Depois da recente morte virou até nome de uma artéria importante, devido ao papel exercido por Cuba na Guerra Civil pós-Independência que se travou no contexto da Guerra Fria. Fidel ajudou o Movimento Popular pela Libertação de Angola (MPLA), liderado por Agostinho Neto e apoiado pelo bloco socialista (o “lado bom”, na visão angolana, que acabou vencedor e está no poder até hoje), contra os “vilões” da União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), liderada por Jonas Savimbi  com fama de cruel, de mandar queimar vivos os desafetos (coisa que nossos traficantes também fazem em seus “fornos de microondas”) – e apoiada pela África do Sul racista e Estados Unidos. Agostinho Neto tem fama de “homem do povo”. 


Dr. Antônio Agostinho Neto, primeiro presidente da República Popular de Angola

Contam que, certa vez, em viagem a uma aldeia no interior, hospedou-se na casa do dono da melhor moradia da região, que se sentiu honrado em recebê-lo. Na manhã seguinte, seus seguranças não o encontraram em seu quarto. Alarmados, constataram que o líder máximo da nação havia saído discretamente por uma portinha nos fundos e caminhado até uma árvore, onde o encontraram placidamente sentado, contando histórias para umas crianças. Assim é a fama do “pai da pátria”. Mas socialismo é sempre uma grande hipocrisia, e o sucessor de Agostinho Neto, José Eduardo dos Santos, perpetuou-se no poder (1979 a 2017) e tornou-se um dos homens mais ricos da África. Recentemente foi sucedido por João Lourenço, do mesmo partido, que tenta emplacar umas reformas moralizadoras e modernizadoras. No discurso de investidura (posse) declarou que “ninguém é rico ou poderoso demais para se furtar a ser punido, nem ninguém é pobre demais ao ponto de não poder ser protegido”, como leio na primeira página da edição de hoje do Jornal de Angola.


como leio na primeira página da edição de hoje do Jornal de Angola

Existe um problema crônico de ineficiência aqui – e talvez na África Negra em geral. Um exemplo concreto é a carta de condução (carteira de motorista) do Sergio que nunca fica pronta, fazendo com que ele tenha de dirigir com uma papeleta provisória que tem de ser periodicamente carimbada na medida em que se esgota o prazo. Fui hoje com ele na repartição competente para obter esse tal carimbo.

Observei que Sergio e um amigo brasileiro, em conversa em mesa de chope, diziam um monte de palavrões. Perguntei se os palavrões angolanos são os mesmos dos brasileiros. O amigo respondeu que os angolanos são muito educados, não falam palavrões. Mas adoram os brasileiros exatamente por sua irreverência. E adoram as telenovelas brasucas.

Existem certas carências aqui. Por exemplo, o lado de lá da Avenida 21 de Janeiro é servido por um sistema de água encanada, mas no lado de cá, onde Sergio trabalha e reside, a água precisa ser encomendada a carros-pipa.

Amanhã tem safári (fotográfico, claro) no Parque Nacional de Kissama. Reservei ainda no Brasil com a ECO TUR ANGOLA. Pagando cash em dólares são 220. Se pagar em moeda local sai mais caro. O país está com escassez de divisas, por isso cartões de crédito quase não são aceitos. Se você vem a Angola, traga dólares.

O jipe da Eco Tur Angola

Sábado, 25 de novembro: Safári ao Parque Nacional de Kissama
A expectativa é tamanha que às quatro horas da manhã já estou acordado e, por mais que tente, não consigo conciliar o sono. O jipe da Eco Tur Angola chega às seis e vinte, mas estaciona do lado de lá da Avenida. Pelo telemóvel (celular) Sergio pede que venha para o lado de cá. Nesse início de manhã de sábado, já claro, deixamos Luanda. Vamos para o sul, pela costa. Ao observar, na beira da estrada, umas placas com o aviso “reserva fundiária - proibida ocupação”, pergunto ao guia se ninguém invade. “Não, eles têm medo da polícia.” Passamos pelo Museu da Escravatura, com o mercado de artesanato ao lado. Primeira parada, Miradouro da Lua, mirante com uma vista do mar e umas formações geológicas escarpa abaixo que dão a impressão de uma paisagem lunar, lembrando o Vale de La Luna em La Paz.





Embora seja uma atração turística, tem lixo espalhado (como você pode ver aqui e aqui). Theroux conta que, em algum país africano, perguntou certa vez ao seu guia por que, com tanto homem jovem ocioso, desempregado, ninguém se dá ao trabalho de recolher os detritos. Parece que é cultural, ninguém liga. Depois prosseguimos até o Kwanza Lodge, um resort na foz do rio Kwanza, onde fomos tomar nosso “mata-bicho” ou “pequeno almoço”, que é o café da manhã em português do Brasil.

Kwanza Lodge: bangalô com coqueiros

Eu sou o único turista a lazer do grupo, os outros são turistas a serviço. A um casal aparentemente de japoneses pergunto “Where are you from?” Poderiam ser chineses, né? Na verdade, não é um casal, são colegas. O japa, cara de garotão, já é engenheiro e está trabalhando na instalação de um cabo submarino entre Angola e Brasil. A gente pensa que hoje em dia as telecomunicações ocorrem todas no ar via satélite, mas o velho cabo submarino resiste, ao contrário das galochas e máquinas de escrever. Observo que Brasil e Japão estão em lados opostos do globo (são antípodas) e o japonesinho conta que um humorista japonês tem um quadro em que olha para o chão e chama: “Alô, Brasil!” Temos também no grupo um casal de simpáticos lusitanos, que já estiveram no Brasil em alguma praia paradisíaca do Nordeste, e dois norte-americanos do ramo petrolífero que se enturmam e ficam o tempo todo conversando no inglês de filme americano, enquanto eu, os portugas e o guia exercemos nossa lusofonia.


 passeio fluvial Rio Kwanza acima

Após forrarmos o estômago – comi uma banana como faço habitualmente de manhã, fatia de melancia e duas torradas com ovos mexidos – partimos em nosso passeio fluvial Rio Kwanza acima numa lancha pilotada por um pretinho simpático, de sorriso gostoso, descalço, bermuda Adidas, camiseta (que aqui se chama “camisola”). Quando a conversa a bordo passa a abordar as praias favoritas (gosto da praia tal), dou logo uma esnobada e falo da Praia de Copacabana. Não só falo, como saco da minha Kipling cartão postal de nossa famosa praia, que deixei de lembrança para o piloto (quando viajo sempre levo alguns postais para distribuir). A vegetação à beira do rio é baixa, mas densa. Dos crocodilos, dos quais uma caveira adornava nosso refeitório, nem sinal.

um pretinho simpático, de sorriso gostoso

A vegetação à beira do rio é baixa, mas densa

Pergunto se crocodilos aqui atacam pessoas, o guia diz que ao contrário, têm medo das pessoas. Após o passeio de barco, temos uma hora de espera até o almoço. Vou até à praia. A areia está coalhada de sargaços. Caminho em direção à aldeia. Uma bonita igreja está em fim de construção: santuário de Nossa Senhora de Nazaré das Águas, no município de Belas. As obras começaram em agosto de 2012 (ver aqui). Ofereço a duas criancinhas um pacote de biscoitos e pergunto se posso tirar uma fotografia. Elas posam, sorridentes. Cumprimento com um gesto de mão uma pretinha em trajes “domingueiros”, ela responde educadamente com um “obrigado”. Ao retornar pela praia ao resort, pergunto a um pescador se pegou algum peixe. “Não tem mais peixes aqui”, responde, “acabaram os peixes.” 


A areia está coalhada de sargaços


santuário de Nossa Senhora de Nazaré das Águas


Elas posam, sorridentes


um pescador

O almoço é servido nuns grandes panelões com tampas e a gente escolhe a comida: batatas fritas, arroz, feijão mulatinho, funge, muamba de galinha, peixe, bacalhau. Partimos rumo ao Parque Nacional de Kissama. Na administração, parada para apanhar o guia do parque e a ida preventiva à “casa de banho” (toalete), porque depois que começarmos a rodar o parque não vai dar mais. O guia porta uma metralhadora, por medida de segurança, mas conta que nunca precisou usar. 


o guia do parque

Na bagunça da guerra civil a população animal do parque foi dizimada, mas após a pacificação um general repovoou o parque com animais vindos da África do Sul, que agora estão se reproduzindo. O parque abriga apenas animais herbívoros. Os carnívoros estão no complexo de parques maior no encontro de Angola, Namíbia e Botsuana. Se você acha que num safári turístico ao parque vai ver algo comparável aos filmes de natureza selvagem, bandos enormes de bichos percorrendo alguma savana, não é bem assim. Você tem que rodar os meandros do parque “à caça” dos bichos. 


Você tem que rodar os meandros do parque “à caça” dos bichos

Os tetos solares do jipe são agora abertos e você pode ficar de cabeça para fora. Depois de muito rodarmos embrenhando-nos parque adentro, o guia mostrou: uma girafa! De fato, uma girafa em carne e osso, placidamente pastando numa árvore. A oportunidade de clicar uma fotografia que ficará como uma recordação pelo resto da vida de nosso encontro com o animal em seu habitat natural, não confinado no zoológico.


você pode ficar de cabeça para fora


uma girafa em carne e osso

E assim, à medida que a gente roda, roda, roda, os animais vão surgindo. Uns bambis graciosinhos, gnus, grupos de bisões. O parque tem elefantes mas hoje não apareceram. As zebras são ariscas, quando o veículo se aproxima, fogem correndo. Paramos num mirante de onde se descortina a vista de um rio.

Imbondeiro, o baobá angolano

Natureza luxuriante

Paramos num mirante de onde se descortina a vista de um rio

tento fotografar do carro em movimento o sol que vai se pôr

Na volta a Luanda, tomo minha terceira latinha de cerveja do dia e tento fotografar do carro em movimento o sol que vai se pôr. O guia gentilmente para o carro. Aqui e ali você vê alguma choça precária feita de chapas de zinco que parece que à primeira ventania vai desabar.

Pelo bastão de Xangô
E o caxangá de Oxalá
Filho Brasil pede a bênção Mãe África
Clara Nunes, “Mãe África”

E por toda parte a natureza. Você está na África selvagem, berço da humanidade, que foi fornecedora de escravos para os trabalhos pesados do Novo Mundo, que foi retalhada e explorada pelas nações colonizadoras, que tenta se integrar na modernidade mas com raízes culturais muito diferentes daquelas que deram origem ao mundo moderno. A África que nos deu o samba (originário do semba angolano), a África que nos deu a culinária brasileira, a capoeira, a religiosidade popular, a África ainda tão presente em nossa querida Bahia. O Brasil deveria se voltar mais para nossa mãe África.


E por toda parte a natureza

Você está na África selvagem

Na entrada de Luanda, já noite, trânsito pesado. Nos postos de gasolina, filas de carros como no Brasil no tempo do choque do petróleo e racionamento. Num subúrbio montes de gente acorrendo a um largo com barracas de comida e clima de festa. É a “praça noturna”, diz o guia.

– x –

De noite aquela conversa regada a uísque com meu irmão que, quando nasceu, minha mãe disse que foi buscar em São Paulo porque naquela época não se dizia às crianças que uma mãe ia tirar um bebê da barriga na maternidade. Irmão que eu não via há cinco anos. Irmão que nas últimas décadas viveu no exterior. Tivemos então aquela conversa sobre nosso passado e nossas vicissitudes que nunca tínhamos tido na vida.

A única coisa que se sabe fazer é roubar. Até o telhado dum hospital se pode roubar, basta que não haja guarda. E quem o faz? É o povo, o próprio povo. Porque esse só pode roubar o telhado do hospital que está ali próximo. Os poderosos roubam muito mais, até se podem dar ao luxo de condenar o povo que rouba o hospital. O povo não tem acesso às grandes traficâncias e às comissões [...]
Pepetela, O desejo de Kianda

Aqui e ali ouço histórias de corrupção. Uma “cervejinha” aqui é uma “gasosa” ou um “saldo”. Todos os grandes negócios – shoppings, hipermercados – têm como sócios, testas-de-ferro, pessoal do governo. Tudo tem um general no meio. A filha do ex-presidente abriu uma fábrica de cerveja com os chineses, só que a população está boicotando o produto dela, alguém me contou. Um general proibiu a instalação de refinarias no país para poder exportar petróleo bruto, mandar refinar lá fora e vender a gasolina cara aqui. Mas os Estados Unidos (segundo rumores) andaram pressionando, e o governo novo, recém-empossado, promete mudanças.



Domingo, 26 de novembro
Aqui rico é rico, pobre é pobre. Não tem a mistura que vemos no Rio de Janeiro (pelo menos nas nossas democráticas praias). Rico vai para as piscinas dos hotéis. Foi para onde meu irmão me levou. Mas dei uma fugida para ver a praia dos pobres. De areia meio grossa, empedrada. Cheia de detritos, como muitos locais públicos aqui. Mar manso. Na verdade não é uma praia “oceânica” e sim praia de baía, já que a chamada “Ilha de Mussulo” em frente na verdade é uma restinga (“um banco de areia com cerca de 30 km de comprimento formado pelos sedimentos do rio Cuanza”, segundo a Wikipedia). 


Rico vai para as piscinas dos hotéis


Vendedoras preparam peixes em grelhas. A impressão é de uma Praia de Ramos pré-Piscinão. Nas piscinas chiques você vê negros & brancos. Na Praia do Pôr do Sol, a praia dos pobres, só tem negros. Tem um calçadão com uns bancos, num dos quais estou sentado escrevinhando estas linhas. Tem uns coqueiros, mas, por toda parte, lixo (como você pode ver aqui e aqui). Do outro lado do calçadão, as casas dos ricos (como estas), uma delas com três seguranças. Rico é rico, pobre é pobre. 

Vendedoras preparam peixes em grelhas

Rico é rico, pobre é pobre. Quando um sujeito com pinta de rico feito eu se aventura em uma área de pobres, estes estranham, olham enviesado. Senti isso. Na África, parece que ainda persiste um ressentimento de negros contra brancos por conta do passado colonial. Fico cheio de dedos para tirar uma fotografia, não quero ofender, agredir ninguém. Tiro meio que disfarçando, ou de longe com zoom. Ou então procuro me aproximar e pergunto se posso tirar uma fotografia. Na praia do Pôr do Sol fui tirar um retrato de uma vendedora de uns peixes numa grelha e ela percebeu e reclamou. Pedi desculpas, disse que deletaria a foto, e assim fiz. Uma outra vendedora do lado se compadeceu e me convidou a tirar uma foto do peixe dela (foto esta que você pode ver acima). Aí uma “tropa” (“galera” no nosso linguajar), vendo por meu boné que sou um visitante brasileiro, me convidou a fotografá-los. Pedi o Facebook de alguns para enviar as fotos depois. Quando vi que um deles chama-se (no Face) Diemex Lírico o Pretinho Dourado, perguntei se eram artistas. São músicos amadores de KUDURO (“bunda dura”), um ritmo afro pop de origem angolana que “mistura elementos eletrônicos com o folclore do país africano”, segundo a Superinteressante



“As letras mesclam português com dialetos locais e falam do cotidiano pobre e de sexualidade. Sim, como o funk carioca.” Meus amigos angolanos curtem funk, entoaram até seu “batidão”, que filmei e que você pode ver abaixo. 



Curtem samba mas confessaram que não sabem dançar. Isto só nós, brasileiros, sabemos (menos eu!) Deixei meu boné canarinho do tempo das manifestações antiDilma com eles, além de um postal do Cristo e outro do Pão de Açúcar. Comentei que somos, brasileiros e angolanos, povos irmãos. .

Aqui, como em todo país de Terceiro Mundo, existem problemas de infra-estrutura. Inexistem placas com nomes das ruas (salvo em algumas do Centro) e numeração de casas. Se você tiver que enviar uma encomenda a um luandense ele vai ter que apanhar no correio. Falta luz amiúde. Hotéis, restaurantes, shoppings e casas melhorzinhas têm geradores. O recolhimento de lixo nos logradouros públicos é irregular, você vê muita sujeira. Na cidade de Luanda inteira, uma capital nacional, vi pouquíssimos sinais de trânsito, todos no Centro. Existem faixas de travessia de pedestres, e vi os carros parando para grupos maiores, com mulheres, crianças, atravessarem a rua. Mas quando é uma pessoa só, ou duas, não se aventuram, esperam abrir uma brecha no fluxo do trânsito (eu observei). Contudo o angolano é educado, se você na rua diz bom dia, boa tarde, respondem, não te fitam com cara de “o que este maluco está querendo comigo?” O atendimento no comércio, restaurantes é dez.

bufê do Hotel Béu Mar

Falei, falei, mas não contei tudo que fiz. Sergio me levou à piscina e bufê do Hotel Béu Mar. De lá dei a fugidinha até a “praia dos pobres” para ver o contraste social. No final da tarde, o amigo Marcelo mostrou um pouco do Centro de Luanda ao entardecer...

Centro de Luanda ao entardecer

Nova Assembleia Nacional em estilo Capítólio

Sede da Sonangol (esquerda), Monumento ao Soldado Desconhecido (Centro) e Correios de Angola (casa antiga baixa da direita)

...e nos levou, pela ponte, até a Ilha, ali sim com uma praia de areias brancas e limpas padrão Copacabana, além de restaurantes e bares para o pessoal com dinheiro. Agora praias paradisíacas mesmo tem na Ilha do Mussulo, para onde se vai de barcas, que partem do terminal do Mussulo.




praia de areias brancas e limpas padrão Copacabana

Esquerdistas, saltem para o próximo parágrafo que lá vem chumbo grosso! Esquerdismo é tudo hipocrisia. Cá em Angola, um partido esquerdista, o MPLA de Agostinho Neto, apoiado por soviéticos e cubanos, combateu os guerrilheiros direitistas da UNITA apoiados pelo regime racista da África do Sul. Até aqui tudo bem. Só que, depois que subiram ao poder, seus dirigentes se locupletaram bem no estilo petista. Dizem más línguas que a filha do ex-presidente tem apê na Vieira Souto (será verdade?) Esquerda vive falando de nossas raízes africanas, coisa e tal, mas na hora de viajar (ou, na ditadura, quando se exilaram) vão/iam mesmo para Paris e Londres.


Segunda-feira, 27 de novembro
Deixei o Serginho em paz trabalhando e vim fazer meu turismo solitário no Centro. A noite foi fresca, pedi até pro Sergio desligar o ar-condicionado, mas neste momento, meio dia e dez, no alto do morrinho onde está a Fortaleza São Miguel, o mormaço é tão quente (o céu está encoberto) que tive de pedir a uns soldados um pouco da água deles, água de bica, dessa que dizem que você não pode beber de jeito nenhum aqui na África, que dá disenteria. Em mim, que sou bicho ruim, que não morre (nem fica doente) não vai dar nada. Haja protetor solar! Já me lambuzei todo. Afinal estamos em ÁFRICA. Ia! (Aqui usam muito o “ia” como sim, não sei se do alemão ja via Namíbia ou do inglês yea.



Querem saber como cheguei aqui no Centro? De candongueiro. O Fred, que trabalha com o Sergio, explicou direitinho qual “linha” pegar – a que vai para Mutamba – e onde pegar: do outro lado da Avenida, direção Sul, na altura da Clínica Multiperfil (aqui). O “candongueiro” (nome tradicional, mas eles chamam de táxi) é o que nós chamamos de van. Só que no Brasil a van é um transporte alternativo, quase marginal, enquanto aqui é o principal meio de transporte urbano, complementado somente pela linha de trem suburbano e os raros catamarãs. Linhas de ônibus quase inexistem. Os “táxis” ficam nos pontos finais disputando passageiros. Têm ar-condicionado, mas naquele em que vim os bancos tinham alguns rasgões e em outro no qual voltei na terça-feira o vidro do para-brisa estava rachado. Um trocador fica abrindo e fechando a porta, recebendo os pagamentos (150 kwanzas, 2,90 reais pelo câmbio oficial, pelo negro dá pouco mais de um real) e apregoando aos brados o destino do táxi, tanto no ponto final como durante o trajeto, sempre que salta um passageiro, assegurando que o transporte nunca fique vazio: Mutamba! Mutamba!

a ponte que liga o “continente” à ilha

A Fortaleza de São Miguel fica no alto de um morrinho (Morro da Fortaleza) na pontinha noroeste da cidade, onde está a ponte que liga o “continente” à ilha. Um velho forte português do século XVIII que oferece uma vista panorâmica da cidade – um bom local para você começar a se familiarizar com ela. Abriga o Museu das Forças Armadas. “Para que os oficiais, sargentos e soldados das FAPLA, as gerações vindouras possam instruir-se sobre o alto patriotismo e coragem, os sacrifícios que ao longo dos séculos o nosso povo ofereceu para poder ser livre, foi criado este museu.” 


canhões dos velhos tempos

Além de canhões dos velhos tempos você também vê armamentos mais modernos empregados na guerra colonial e na subsequente guerra civil. Uma boa oportunidade de aprender alguma coisa sobre a história recente de Angola.


história recente de Angola

Numa das casas que compõem o conjunto você é surpreendido por um tesouro de azulejos portugueses daqueles bem tradicionais, em azul cobalto, retratando a fauna africana e a colonização do país. Uma festa para os olhos e a máquina fotográfica.


tesouro de azulejos portugueses

Minha barca quase mete água nas intempéries
Encarrego o destino de lhe tapar os rombos
Rogo para que não afunde assim tão facilmente
Oro para que sua fragilidade seja feita de coragem
Manuel de Souza, "Meu Sagrado Corpo Do Sonho, Minha Barca Física Do Desejo"

No momento em que me sentei para descansar, quis saber as horas e me ocorreu consultar o celular (“telemóvel”) que o Sergio me emprestou para que possamos eventualmente nos comunicar durante minhas andanças. Liguei para o Sergio a fim de fazer um teste (em termos de celular sou semianalfabeto) e ele me avisou que o Manuel de Sousa havia lhe telefonado e iria me contactar. Dito e feito. Pouco depois Manuel ligou.

Preciso apresentar o Manuel. Conheci-o naquele período de virada de século quando me separei e descobri a Internet, ainda uma novidade, e os amores virtuais. Mas nem só de amor virtual vivia a rede. Naquele tempo circulava muita poesia na Web. Eu mesmo editei uma revista virtual de poesia, a Caixinha de Surpresas, que chegou a ter o Artur da Távola como colaborador. Neste contexto travei conhecimento com o Manuel, residente em Luanda, Angola, autor de uma poesia visionária, esotérica, surreal, espiritual, caudalosa, versos longos na contramão do estilo de época de versos econômicos. Pois bem, em 2007 meu irmão Sergio veio trabalhar e morar em Angola e um dia calhou de conhecer o Manuel. Quando este viu o Korytowski do Sergio comentou que tinha um “amigo” no Rio com sobrenome idêntico. O mundo é pequeno.

Movo-me por vias do pensamento
Energizo-me por intermédio da luz
Vou e venho pulsante ao infinito
Não paro nem por um segundo
Sou tudo e nada em simultâneo
Manuel de Sousa, “Quanticamente Descalço Ou Cosmicamente Nu De Pó E Alma”

periferia de Luanda

Manoel me apanhou de carro, pegou a “Circular” (a Via Expresso, espécie de “Marginal”) e saímos da cidade atravessando um mar de musseques, que são as favelas locais. Paul Theroux, no seu livro sobre sua última viagem africana que traduzi para o português (ver aqui), faz críticas contundentes ao processo de êxodo rural africano que inchou as capitais com uma população desempregada ou subempregada vivendo em condições miseráveis, quando no campo, conquanto vivessem uma vida frugal, ao menos tinham seus meios de subsistência tradicionais.

periferia de Luanda

Perguntei ao Manuel qual porcentagem da população luandense mora em musseques. Ele disse que acha que são 90% mas não existem estatísticas oficiais. Na periferia de Luanda você percebe a presença de chineses que investem fortemente no país. Você não vê chineses propriamente (quase não vi nenhum), mas vê grandes empreendimentos – fábrica de cimento, fábrica de cerveja, etc. – com letreiros também em caracteres chineses.

Passamos pelo Catete. Se Catete é palavra de origem indígena brasileira, não sei por que cargas d'água veio a designar um sítio (os portugueses chamam locais de sítios) angolano. Passamos pela terra de Agostinho Neto, Caxicane. Vi casas de pau-a-pique, algo que quase não se vê mais no Brasil. Vi casas de chapa de zinco. Vi casas de tijolo de cimento e barro. E vi uns conjuntos de casas bonitinhos também, construídos pelo governo. 


Vi casas de chapa de zinco

Mas a certa altura os núcleos urbanos começam a rarear. Você está na floresta. Vê imbondeiros (os baobás angolanos) de troncos grossos, mas não são muito altos. A mata aqui é de arbustos e arvoredos. Chegamos na região irrigada pelo rio Kwanza, maior rio do país, que deu nome à sua moeda. Em certo ponto a estrada passa a tangenciar o parque de Kissama. Aqui tem leopardos, que os locais chamam de onça. Tem crocodilos, que chamam de jacaré. Tem cobras. Tudo isto um rapazinho a quem Manuel deu carona na volta nos contou. 


Vê imbondeiros


rio Kwanza, maior rio do país

E eis que chegamos no ponto alto do nosso passeio, uma grata surpresa com que o Manuel me brindou: o Santuário de Nossa Senhora da Muxima, espécie de Aparecida angolana, uma singela igreja antiquíssima (1599) pré-barroca com seu frontão triangular maneirista. No interior ouve-se a missa mas não se vê o padre. Muxima significa coração. A maioria dos fiéis são mulheres, muito simples, mas com muita fé, parece. Indagamos e nos informam que a missa é gravada. Coisas da modernidade.


Santuário e rio Kwanza


Santuário de Nossa Senhora da Muxima

Do lado de fora crianças pretinhas, gracinhas. Distribuo um pacote de biscoito tipo cookie que trouxe do Brasil. Uma festa no coração da África. Peço que posem para uma fotografia. 



Uma ladeirinha leva ao velho forte português no alto de um morrote. Portão fechado, batemos, ninguém atende. Mas valeu pela vista.


Santuário de Nossa Senhora da Muxima

Um detalhe interessante: numa loja de conveniência no posto de gasolina à beira da estrada vendiam Havaianas grosseiramente falsificadas, provavelmente Made in China.
– x –

À noite marquei com Sergio no Chá de Caxinde, uma espécie de café-concerto Rival com shows de música tradicional angolana e um farto bufê administrado pela empresa para a qual o Sergio trabalha. Quem toca é a Banda Maravilha (que você pode ouvir no YouTube clicando aqui). Sergio brinca e chama a vocalista de Mulher Maravilha. O semba angolano lembra muito a música cubana. Se o samba deriva do semba, o semba deve ter sido muito diferente duzentos anos atrás. Pela segunda vez desde que cheguei em Angola peço caipirinha. No Brasil raramente bebo. Cachaça aqui é “capuca”. A certa altura, anunciam o aniversário de Tony Jackson e tocam o Parabéns. A primeira parte é igual à nossa (“Parabéns para você...  Muitos anos de vida”) mas tem uma segunda parte que eu desconhecia (“Hoje é dia de festa / Cantam as nossas almas / Para o menino/a menina (nome do aniversariante) / Uma salva de palmas!). Tony é chamado ao palco e nos extasia com uma sucessão de canções em francês, italiano, espanhol, inglês perfeitos, sem sotaque, como se fossem suas línguas maternas (para uma palinha, clique aqui). Ao cantar It’s a Wonderful World é como se Armstrong tivesse reencarnado.


Terça-feira, 28 de novembro
Ontem tive um dia cheio, pretendia hoje dormir até tarde. Mas quando você viaja não consegue parar. Acabei acordando mais cedo do que pretendia. Deixei o Sergio trabalhar e peguei meu “táxi” (candongueiro) até Mutamba, no Centro. Percorremos a Estrada da Samba, larga avenida paralela à costa. Em certos trechos dá para ver o mar, coqueiros, algumas casas tipo resort. A certa altura, um carro virado. “Excesso de velocidade faz isso”, alguém comenta. Passamos pelo Hotel Samba. Quando nos aproximamos do Centro, o trânsito fica mais lento, com momentos de retenção. Ambulantes aproveitam para vender de tudo: CDs, pilhas, celulares... Uma musiquinha ritmada naquele sotaquezinho angolano gostoso fala que fui a (um monte de lugares) “com minha bacia na cabeça fazendo negócio”. De fato as mulheres aqui equilibram coisas – até caixas de ovos como você pode ver aqui – na cabeça e prendem os bebês no tórax com um pano.


uma casa meio que dilapidada no estilo português

Estou meio tonto de sono. Compro uma água de uma mulher. Fotografo uma casa meio que dilapidada no estilo português que lembra nosso casario antigo no Brasil. Dou meia-volta, ando devagar, contemplando a atmosfera local, e eis que a mulher que me vendeu a água vem gentilmente perguntar se procuro alguma coisa. Digo que estou passeando, que sou do Brasil, e ela me conta que foi várias vezes ao Brasil, que em Sampa fica na Augusta, no Rio, em Copacabana. A dona de uma simples birosca. Será sacoleira?


Banco Nacional de Angola visto da entrada do moderno Museu da Moeda

Vou até a Avenida 4 de Fevereiro, que o pessoal chama pelo nome antigo, Marginal, um belo calçadão à margem da Baía de Luanda (que você pode ver aqui). Procuro um banco à sombra onde possa pôr em dia este diário. O sono atrapalha. Resolvo andar para ver se o espanto. Deparo com o Museu da Moeda, bela construção moderna. Mostra a evolução dos meios de troca no país, desde conchas e sal até o kwanza pós-independência. Assim como no Brasil pré-real, a moeda sofreu várias reformas monetárias com cortes de zeros, em decorrência da inflação.



Saio. Ainda estou com sono, até que deparo com a salvação: Café de Angola. Entro, toma um primeiro café, delícia, produzido em Angola, tomo o segundo e acabo permanecendo duas horas e meia e comendo uma “sandes mista” (sanduíche misto) e enfim colocando em dia este meu querido diário de viagem.

Ao lado da cafeteria, uma pequena exposição sobre a história do café e a produção cafeeira angolana. Angola já foi produtor importante de café, porém a produção atual é ínfima (mas os dois cafezinhos angolanos que saboreei e que me salvaram do sono estavam uma delícia). O socialismo (Angola formalmente é socialista, tem até a foice e martelo na bandeira) tem esse condão de gerar guerras civis e destruir economias. Acontece o que o iugoslavo Milovan Djilas descreveu em seu clássico A Nova Classe: a cúpula dirigente cria entraves kafkianos à livre iniciativa para manipular a atividade econômica e enriquecer. 

Mas voltando à vaca-fria, na exposição sobre o café travei conhecimento com o rapazinho que toma conta, Singeles Gola. Conversa vai, conversa vem, do café a gente passa para seu maior produtor e, de repente, o Singeles conta sobre um livro que vem escrevendo desde os dezessete anos e que agora está com dificuldade de publicar. O livro aborda seu ambiente cultural e familiar. Aproveito e dou para ele o meu Passaporte para o Paraíso. Pergunto onde posso encontrar um bonezinho de Angola para levar de lembrança e ele gentilmente me presenteia com o seu, do café de Angola. Mas promete que, quando for ao Rio – sim, ele está tentando, através de contatos, uma bolsa para estudar agronomia na Universidade Rural – vai me levar um bonezinho de Angola e uma bandeira.

terminal de catamarãs

Caminhada pelo centro de Luanda. Contrastes. Por um lado, prédios modernos, como o da Sonangol, a estatal do petróleo, ou dos hotéis cinco e quatro estrelas (poucos); o calçadão ao longo da Baía de Luanda com sua ciclovia sem nenhum sinal de bicicleta; o Museu da Moeda; o Porto de Luanda com seu moderno terminal de catamarãs que ligam o Centro a alguns bairros da cidade. 


calçadas esburacadas


uma ou outra ruína da arquitetura colonial portuguesa

Por outro lado, sinais de trânsito queimados transformando a travessia da Marginal numa aventura; mulheres sentadas no chão vendendo frutas, legumes, bananas assadas, milho assado; crianças pobres à porta do hotel de luxo pedindo uma moeda ao passageiro do carrão que parte; um ou outro mendigo (bem menos que em São Paulo); calçadas esburacadas; de repente, cheiro de mijo (vi gente urinando em vias públicas); latões com lixo transbordando; prédios dilapidadas com roupas penduradas nas janelas lado a lado com construções modernas; uma ou outra ruína da arquitetura colonial portuguesa; um ou outro grupo de ociosos mal-encarados (num deles tive a impressão de que alguém gritou para mim: maluco). 



Descendo a Rua Rainha Ginga a certa altura vejo uma carreira de grafites num muro e fotografo para minha coleção. No alto de um morrinho vejo o que se me afigura um palácio (aqui). Pergunto para alguém, que palácio é aquele, ele responde, não é palácio, é uma igreja, e explica como chegar lá. É preciso contornar um hotel de luxo e subir a Rua Nossa Senhora da Muxima, uma ladeira. igreja” na verdade é a Escola São José de Cluny, mas tem uma capela. 


igreja” na verdade é a Escola São José de Cluny, mas tem uma capela

Ao descer de volta paro numa amurada com vista do Centro, oportunidade de tirar mais fotos. Embaixo, um musseque. Contrastes.


Embaixo, um musseque

Aqui ou você é pobre, ou você é rico. Pobres e ricos vivem em mundos paralelos. Rico anda de carro, não caminha pela rua. Ao verem um passeante com pinta de “magnata brasileiro” como eu, algumas pessoas me espiam com o rabo do olho. Mas são educadas: se você diz “bom dia”, “boa tarde”, retribuem, ou dizem “obrigado”. Se você pede uma informação, dão de bom grado. De muito melhor grado do que na afluente Alemanha. Os angolanos são vaidosos, arrumadinhos, capricham no trajar.



Pelas ruas do Centro vende-se de tudo: gravatas, relógios, tênis, o escambau. Ao contrário de Copacabana, você quase não vê velhos: a expectativa de vida é baixa (60,2 anos segundo o censo de 2014). Enquanto no Brasil bandidos matam policiais, aqui a polícia é que mata os bandidos, ouvi dizer de mais de uma fonte. Com isso a criminalidade é relativamente baixa (10,89 mortes violentas por 100 mil habitantes, contra 30,53 do Brasil e 5,56 dos Estados Unidos – ver aqui). Mas, como em todo lugar, ocorrem crimes. Na televisão vi as notícias de um assalto a um depósito em que mataram o segurança e do estupro e morte de uma jovem. Ouvi casos de crimes contra estrangeiros também. Um alemão que veio para uma feira comercial, como seu transporte não chegasse na hora marcada, pegou um candongueiro e teve seu laptop roubado. Um espanhol que estacionava o carro à noite no Centro foi abordado por ladrões armados e, como reagiu, levou um tiro na cabeça e morreu. Se no Rio quem ostenta fuzis são traficantes, aqui são os seguranças sentados à porta dos bancos. Aliás aqui é comum ver seguranças nas portas dos estabelecimentos.

Igreja de Nossa Senhora dos Remédios, a Sé Catedral de Luanda, erigida em meados do século XVII mas que sofreu reformas posteriores

Antes de voltar ainda dou uma entrada na Igreja de Nossa Senhora dos Remédios, a Sé Catedral de Luanda, erigida em meados do século XVII mas que sofreu reformas posteriores, como você pode ver na Wikipedia. Lá dentro não está sendo celebrada missa, mas uma mulher do povo faz uma devoção espontânea, como fazem aqui no Brasil os evangélicos. 


Lá dentro

O “trocador” do táxi (van) de volta para “casa” percebe que sou “brazuca” (é assim que me chama) e pergunta qual país é melhor, Angola ou Brasil. Estou no dilema: não quero ofender o angolano, nem quero mentir. Diplomaticamente respondo que depende do ponto de vista: cada pessoa gosta mais do país onde nasceu. Ele confirma que gosta mais de Angola, e logo o pessoal da van indaga sobre o racismo no Brasil. Viram na GloboNews internacional não sei qual atriz global reclamando de algum ato racista contra o filho e acham que o Brasil é uma África do Sul da era do apartheid. Explico que existem casos isolados mas que no geral no Brasil brancos, negros, asiáticos, judeus, árabes etc. convivem em harmonia. Falamos de corrupção, aqui (em Angola) e ali (no Brasil), e uma moça que se mostra bem informada em assuntos internacionais observa que é “nossa herança portuguesa, em Portugal é assim também”.

Com a posse do novo presidente, João Lourenço, existe uma expectativa de uma liberalização, desburocratização da economia. Ou seja, a transição do socialismo ao capitalismo que até a China dita comunista faz.

O museu está instalado em uma casa branca...


 ... e capela anexa, sobre uma pequena elevação à beira-mar

Quarta-feira, 29 de novembro
De manhã, o senhor Valter, um motorista que presta serviços de transporte em seu carro particular – não chega a ser um Uber, é mais informal – levou-me ao Museu Nacional da Escravatura em Benfica, na zona sul da cidade. Pode-se ir para lá também de catamarã, que sai do porto de Angola e faz uma parada intermediária no Terminal Marítimo Capossoca, mas os horários são escassos (ver aqui). O museu está instalado em uma casa branca e capela anexa, sobre uma pequena elevação à beira-mar, que pertenceram a Álvaro de Carvalho Matoso, um dos maiores traficantes de escravos da primeira metade do século XVIII. Este museu modesto, mas significativo, conta (em português somente) a história do processo de escravização de africanos para trabalharem nas plantações da América do Norte, Caribe e Brasil. Além de textos explicativos e iconografia, exibe também objetos, e aborda a influência cultural africana sobre o Novo Mundo.




Um totem em frente ao museu explica: “Fundado em 1977, o MNE tem como principal objectivo ilustrar e manter vivo na memória de todos o genocídio a que tantos Africanos foram sujeitos. A História da Escravatura em Angola é apresentada ao longo das cinco salas do Museu, que ilustram o percurso que homens, mulheres e crianças foram obrigados a percorrer, de forma violenta, do momento em que foram capturados até a travessia do Atlântico rumo às Américas e a uma vida de completa submissão. As condições sub-humanas em que (sobre)viviam e viajavam, ilustradas pelos instrumentos utilizados para os prender, manietar e castigar, bem como documentos relativos a essa parte tenebrosa da história da Humanidade, traduzem-se num patrimônio histórico-cultural muito rico no tocante a toda a questão da escravatura.”


 Ungu, instrumento musical de origem africana, utilizado pelos afro-descendentes nas Américas, no Brasil conhecido como "birimbau"

Um dos painéis do museu informa que "o país que mais recebeu influência da cultura angolana foi o Brasil, que importou de Angola cerca de 68% de todos os escravizados durante o século XVIII. O calundu no Brasil durante os séculos XVII e XVIII representava a prática de curandeirismo. O termo calundu associa-se à palavra "quilundo", de origem quimbundo de Angola. O samba recebeu influência de danças originárias de Angola, vinda do semba, mais especificamente da região Congo-Angola, onde ainda hoje o semba perdura."


Ao lado, o Mercado de Artesanato, onde o turista encontrará bonitos objetos para levar de lembrança. Divide-se em três: pinturas (bonitas, mas como levar no avião?), roupas multicoloridas e peças entalhadas em madeira, belíssimas. Dizendo que você é brasileiro os caras abaixam o preço (ao menos fingem abaixar). Levei uma talha linda de um guerreiro tribal por 8500 kwanzas, que era tudo que me restava em moeda local, uma pechincha. Mas o vendedor foi tão gente fina que deixei com ele uma camiseta das Olimpíadas cariocas. Após um almoço leve e com os últimos kwanzas contados para pagar o senhor Valter, que me levará ao aeroporto, encerro este relato de minha mescla de viagem sentimental para rever o irmão desgarrado & aventura para descobrir que mistérios guarda esta África Negra, berço da humanidade, culturalmente tão rica – culinária, religiosidade, música – com tamanho potencial turístico por abrigar a fauna mais fascinante do planeta, mas que padece de pobreza crônica da qual não consegue se libertar. Quis ver com meus próprios olhos e entender com meu próprio cérebro.

Hora de voltar. Aeroporto é uma tortura: tem que chegar horas antes; descobrir o guichê do check-in; no controle de segurança, tirar cinto, esvaziar bolsos, tirar o tablet da Kipling; na Migração, funcionário olha para o passaporte, olha para você, olha para a tela do computador, e você fica com medo de que, por algum engano kafkiano, veio parar na lista da Interpol, e depois tem que ficar de olho atento no quadro de avisos e de ouvido atento ao alto-falante para embarcar em tempo no portão certo, e a viagem em si numa classe turística apinhada não é lá essas maravilhas. Mas no frigir dos ovos fiz um ótimo voo, e aquilo que sempre tentei mas não consegui agora, sem que eu tentasse, me ofereceram: um lugar na porta de emergência, sem bancos na frente. Deu pra esticar bem as pernas e tirar um bom cochilo. E a aeromoça, uma pérola negra, foi de uma simpatia! Voe TAAG.


Uma última digressão: a África teve uma história de tribalismo, escravagismo, colonialismo. As estruturas tradicionais tribais rurais ruíram, sem que o novo modo de vida urbano conseguisse dar dignidade à grande maioria da população. Os velhos conflitos tribais, as guerras anticoloniais e depois as guerras civis travaram também o progresso do continente. Além disso, a população negra, devido às vicissitudes históricas, carece de uma cultura capitalista de boa gestão, de eficiência (a tal “ética protestante” do Weber). Minha impressão foi que os empreendimentos aqui são tocados, em grande parte, por portugueses, libaneses, chineses, brasileiros (construção de estradas, portos, barragens) e angolanos brancos. Mas não existe nada de estrutural, de intrínseco nisto. Uma cultura pode ser mudada. Uma mentalidade pode ser forjada. Os alemães, historicamente um povo guerreiro, hoje são uma das populações mais pacíficas da Terra. Os judeus, que por milênios eram humilhados e não reagiam, hoje defendem com unhas e dentes seu Estado de Israel. A Europa, cujas metrópoles abrigavam, no século XIX, contingentes de miseráveis (leia Dickens, Hugo etc.) hoje são a epítome da afluência. A África também pode mudar, e em alguns países já vem mudando. Se em minha vida ainda conseguir ver a paz no Oriente Médio, o fim da corrupção no Brasil e o fim da miséria na África, morrerei feliz.

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