MEMÓRIAS INFANTIS DE GRACILIANO RAMOS, DE CYRO DE MATTOS


 

Vê-se em Infância (1945), de Graciliano Ramos, que a vida em seu começo ofereceu ao escritor de Alagoas momentos de amargura e pessimismo. Forjada dos contatos com as pessoas de alma pobre e as coisas em estado atrasado, a vida não poderia nas raízes latejar o coração pequeno com batidas leves. Assim, nas queimaduras de uma poeira áspera que se acumulava no cotidiano, o escritor de amanhecer hostil fora acostumado aos maus tratos e castigos.

Nascido em Quebrangulo, interior de Alagoas, o autor de Vidas Secas (1938), romance constituído de episódios autônomos, que podem ser considerados como contos, não guardou nenhuma lembrança de sua cidade natal. Cedo se transferiu para Buíque onde se criou numa zona de indústria pastoril, no interior de Pernambuco. Muitos fatos dessa época estão arrolados em suas memórias infantis atravessadas de dores e incompreensões. As informações precisas sobre pessoas e fatos lá estão alinhavadas de maneira pungente, expostas nas páginas ausentes de serenidade, desde o amanhecer até quando chegava a noite onde tudo é silêncio e a vida respira abafada na travessia solitária formada com sonhos pesados, carentes de ternura.

Dessa poeira cinzenta trouxe pedaços de pessoas, quase sempre más, ridículas, para o seu mundo interior, o qual seria articulado depois em forma de ficção, operada como permanente auscultação de um contínuo psicologismo angustiante. Agora a realidade produzida pelo artista da palavra se vestia com a roupagem do estilo despojado, focado numa humanidade despreparada para o bem-estar, sempre acompanhada de momentos opressivos. No discurso que une o passado ao clássico moderno, sem filiação aos tempos românticos, nem ao beletrismo, avultam as atitudes de rancor, seguidas vezes vão ser encontradas em suas personagens cercadas de atmosfera sombria feita de niilismo devastador.

Encontram-se nessas memórias da vida calejada com a hostilidade as marcas pessimistas dos gestos fornecidos pelos castigos que os pais afligiam ao filho, como bolos de palmatória, chicotadas, cascudos e puxões de orelha, prisão na loja onde convivia com as baratas, ratos e insetos. O pai e a mãe apresentavam-se grandes, temerosos, criaturas desconhecidas como se fossem seres misteriosos. O pai tinha imaginação fraca, era incrédulo, expandia a índole perversa com as surras cometidas no filho, a mais absurda a que fora exercida com o cinturão grosso. A mãe tinha uma índole carregada de sentimentos movidos com a dureza do cotidiano. Montava, atirava, era categórica na atitude imperiosa que comanda.

O espírito infantil de Graciliano Ramos recolheu-se na imagem de que a mãe era uma senhora sempre a mexer-se com uma boca má, olhos que em momentos de raiva se inflamavam com um brilho de loucura. Ente difícil que na harmonia conjugal se afrouxava, amaciava as arestas, relaxava os dedos que batiam na cabeça, dobrados, tendo a dureza de martelos. Pedaços de seus gestos foram capturados pelo escritor nas rugas, olhos nervosos, boca irritada, mãos nada suaves. O pai e a mãe eram dois seres que impunham obediência e respeito com suas vozes absolutas.

Nesse círculo familiar, em que o céu era terrível, natural que os seres e os objetos se tornassem irreconhecíveis, absorvessem nos dias uma atmosfera difícil de fluir sem rancor. Nesta circulava uma humanidade formada com aflições e dissabores. Normal que a submissão de movimentos infantis fosse uma constante, conduzida em suas circunstâncias críticas para uma composição feita de negações e inércia, como soubera com forte tristeza nas primeiras impressões que teve com a justiça através da surra tomada com o cinturão grosso.

Na surra terrível com o confronto desigual de forças, entre o algoz prepotente e a vítima encurralada, a parte que lhe cabia no polo passivo de um processo cruel era constituído de elementos que o atormentavam. Irrompiam das fissuras que tinham a perda de suas características humanas, destituídas do estar gregário harmonioso em família.


“Sozinho, vi-o de novo cruel e forte, soprando, espumando. E ali permaneci, miúdo, insignificante, tão insignificante e miúdo como as aranhas que trabalhavam na telha negra.” (página 31)


Subalterno da voz absurda admitia que era justo o que se fazia com ele. Na surra que tomou com o cinturão grosso acontecera seu primeiro contacto com a justiça, colocando-o na situação irremediável de réu considerado como uma coisa reles, derrotado pela impotência. Na cela de sua passividade frequente não tinha como se opor a toda essa miserável situação adversa.

De suas memórias infantis mestre Graciliano Ramos com um estilo realista traz imagens e figuras que marcaram os passos sem auroras. Nos movimentos de uma narrativa que não cedeu à facilidade, pouco faz concessões à esperança, suas criaturas aparecem com a marca de coisas desagradáveis. Chico Brabo era perverso com o menino de dez anos, mas prestativo com os da rua. Uma das recordações mais desagradáveis que lhe ficaram das pessoas na infância estava em Fernando, sujeito magro, de aspecto tenebroso, impertinente, nunca fora visto sorrindo. Sua fisionomia viscosa, de coisa úmida, dava a sensação repugnante de uma lesma vertebrada e muito ágil.

De todas as páginas escritas com a mão de mestre, nessas memórias que evocam os primeiros movimentos de um autor com a suas experiências negativas de vida, sobressaem algumas que de tão verdadeiras fazem pensar que a vida é inviável quando se move com a insensatez dos desarranjos, má vontade, conflito, soluço. Entre aquelas que chegam impregnadas desse conteúdo pelo avesso, destacam-se como páginas de análise arguta da natureza humana, resultantes de uma narrativa concisa e revoltante, por exemplo, “Um Incêndio”, “Um Enterro” e “Venta-Romba”.

Em “Um Incêndio”, o menino vai com o amigo José conhecer um incêndio nas cabanas pobres com a cobertura de folhas de Ouricuri. Tinha conhecimento até aquele momento do fogo com suas pequenas labaredas quando se cozinhava a comida no fogão a lenha ou nas fogueiras de São João. Fogo imenso com labaredas altas e fumaça impelida para o céu como uma nuvem cinzenta, densa, nunca lhe ocorrera na visão. Daí a decepção quando encontrou os tocos de uma cabana queimada pelo fogo. Teve a atenção chamada pelo grupo de pessoas que se lamentavam em torno de um resto de gente, um torrão sem braços e pernas, a cabeça queimada, o rosto como uma careta feia na qual pelos buracos dos olhos desciam uma gosma nojenta. Era de uma menina preta que havia morrido queimada no incêndio. Havia duas meninas pretas que estavam cozinhando a comida na cabana enquanto os pais trabalhavam no eito. A centelha do fogo que saltara do fogão a lenha pegara nas palhas da cobertura do barraco. Uma das negrinhas fugiu, a outra ficou tirando de dentro da cabana as coisas que achava como importantes. Quando pensou que conseguira salvar todas as coisas tidas como importantes, lembrou-se da litografia de Nossa Senhora. Ao tentar sair do barraco em chamas com a litografia da santa encontrou a porta da entrada bloqueada pelo fogo.


“Curvei-me num arremesso de coragem. Faltava-lhe o cabelo, faltava a pele – e não havendo seios nem sexo, perdiam-se os restos da animalidade. A superfície vestia-se de crostas, como a dos metais inúteis, carcomidos no abandono e na ferrugem. Em alguns pontos semelhava carne assada, e havia realmente um cheiro forte de carne assada; fora daí ressecava-se demais.” (Pág. 83)


Distinguiu uma cara, melhor dizendo, sobra de cara, máscara pavorosa, e retornou para a sua casa com a imagem horrível daquela visão, arrependido de ter aceito o convite para conhecer um incêndio. Responsabilizou Nossa Senhora como autora daquela agonia sórdida. Se a criatura não tivesse a ideia de salvar a imagem, estaria cortando palma de Ouricuri para fazer nova cabana. As pessoas grandes refutaram o seu modo de julgar a situação acontecida por força maior, independente da ação humana. Nossa Senhora não era uma figura feroz e impiedosa. Podia ser pior. O fogo poderia ter comido um dos prédios importantes do comércio local. Escolhera a negrinha para que alçasse ao céu, sem precisar passar pelo fogo do purgatório. Não lhe convenceu o argumento com a benesse estranha ao drama. Não lhe pareceu que o fogo do purgatório tivesse a ver com o do incêndio que matou a negrinha. E a negra, imunda e com um defeito de cor, não estava no céu.


“Que ia fazer lá? Estragaria as delícias eternas, mancharia as asas dos anjos”. (pág. 86)



Nessas memórias infantis tomamos conhecimento de vivências amargas que serviram ao escritor para construir na sua ficção regional com personagens vivendo uma atmosfera angustiante coberta de sombras. O gosto pela literatura provavelmente herdara do avô paterno, de quem tinha um retrato velho no álbum guardado no baú. O próprio Graciliano Ramos admitia ter recebido desse avô a vocação que se alimentava do ócio e das coisas que não servem para nada. Em Buíque, na primeira escola, provou os primeiros desconfortos dos livros didáticos do Barão de Macaúbas. Mudou-se para Viçosa, depois passou para Maceió onde frequentou um colégio de má fama, que lhe deu momentos da vida sem bons predicados. Retornou e, aos 18 anos, foi morar em Palmeira dos Índios, no interior de Alagoas, onde se tornaria prefeito. Graças a dois relatórios que escreveu se tornou conhecido. Os documentos, provenientes da gestão municipal com a marca de sua escrita precisa, deram a entender que ali havia um escritor promissor, inclinado para largas expressões, voos altos.

Vem se dizendo ao longo dos anos que vivemos em um vale de lágrimas. A vida é sofrimento. Sofremos é porque estamos na vida, alude Jorge de Lima. Constata-se que toda boa literatura tem sofrimento. Graciliano Ramos escreveu uma obra singular como conhecimento da vida, haurida no Nordeste sem o verde, seco, desamparado, que confirmam essas observações. Faz lembrar por isso o que a literatura tem de catarse para libertar-nos de paisagens calcinadas, sombrias, em que andamos.

E o poeta William Blake adverte que nunca se deve deixar de sonhar porque só nos sonhos pode ser livre o homem.


Referência

RAMOS, Graciliano. Infância, Editora José Olympio, Rio de Janeiro, 1945.




REYNALDO VALINHO ALVAREZ

TEXTOS DE CYRO DE MATTOS E ALEXEI BUENO

 


Imagem obtida no site Recanto do Poeta


POETA NO GALOPE DO TEMPO, de CYRO DE MATTOS


Nascido no Rio de Janeiro, Reynaldo Valinho Alvarez (1931-2021) é autor de diversos gêneros, entre o romance, a crônica, o ensaio, a literatura infantojuvenil e o poema. Legítimo escritor nas diversas manifestações literárias, destaca-se com qualidades inconfundíveis de um discurso coeso e fecundo no último gênero. A crítica especializada vê neste poeta um dos nomes importantes que surgiu na linhagem melhor da poética brasileira, desde que fez sua estreia com Cidade em Grito (1973). O livro rendeu-lhe o Prêmio Olavo Bilac da Secretaria de Cultura da Guanabara.

Nessa geração de poetas que esplendem suas criações com a marca da transcendência, por meio do uso da mítica na palavra, Reynaldo Valinho Alvarez tem lugar garantido. Junta-se a vozes importantes da poética brasileira, como a de um Ledo Ivo, Cassiano Ricardo, Carlos Nejar, Francisco Carvalho, Marcus Accioly, Fernando Mendes Viana, Stella Leonardos, João Carlos Teixeira Gomes, Myriam Fraga e Telmo Padilha.

Com Cidade em Grito, pequeno grande livro, temos a estreia de um poeta que se expressa com recursos modernos, dono do ofício, argumentos lúcidos quando canta a metrópole do Rio de Janeiro, que está a girar sempre, de difícil apreensão no gesto solitário do viver. Apresenta-se para isso não apenas como um só cantor, mas constituído de vários, pois a jornada é complexa, exige padrões criativos de ricos significados.

Na jornada pontuada de gritos lancinantes é capaz de responder ao desafio de cantar a cidade grande com versos pungentes, que fluem em várias direções: asfalto, rua, travessa, beco, céu sombrio onde edifícios tentam escalar os altos com uma gente estranha. Ante “sentimento brutal nunca domado”, canta a colmeia gigantesca com seus milhões nas ruas, dos juntos ou dos sós. O poeta procede com gestos firmes nesse canto multifacetado, formado na dialética da paixão, tormento e sobressalto. No poema curto ou grande retira visões lancinantes da enorme forja urbana, que na semana se movimenta com o tempo da vida, avança no jogo do partir, colide no que nunca chega. Embora aconteça com a calma no jardim, o vazio da praia, é enganosa assim na paisagem com o seu grito abafado. Vestida com a pele do tédio sempre flui com as sombras que cercam os escritórios fechados.

No mais é sempre falar dessa cidade que tudo tem no vaivém das estações danosas, embora desfrute das alegres. Flui e reflui, está a rolar no asfalto, a sambar na passarela, a soltar da garganta os gritos da paixão no gigantesco estádio de futebol, que delira, pensa pelos pés na partida, na diversão que faz arte, imita a vida, se presta à fantasia, à religião cuja liturgia é mesclada com amor e raiva. Do samba no asfalto ao tédio no vazio de arredores, de gente na madrugada à invasão do povo na semana, há sempre esse grito agudo, nascido também por passageiros do hospital, em madrugadas solitárias, esquina, no torpor do vício, fumo, álcool. Vista na constante e desatinada viagem, segue atravessada pelo tempo indiferente às humanas dimensões terrenas, distante do abuso de ocorrências que se lastimam no tom menor ou maior dos absurdos.

Impossível de aprisionar esse grito lancinante que irrompe da vida em trânsito veloz. O poeta em vigília reveste-se com o fato de que cantar é muito pouco, confessa sua impotência, no discurso precário chega então a chorar. Os seres humanos mudam na rotatividade das estações, não muda o tempo, que é o mesmo, talhado nas dimensões cósmicas sem fim, com espaço e lugar que se confundem ante o efêmero que “procura o que ontem foi”, na vã pesquisa, que termina na colheita da “flor vidrada dos ladrilhos”.

Ao cabo, sem ter certeza de que respondeu com precisão ao desafio de celebrar a cidade de milhões, resta ao poeta o consolo de quem tem o prazer desse canto, fez o que pode para expressá-lo na junção de gritos e ais, em rito agudo da dicção afiada, em que entram elementos ásperos, frequentes consoantes expostas ao tormento. Entre poucos que sabem usar o talento verbal na construção do bom poema, nos meios que ficam com os fios lúcidos de “vestido rápido de fada” pelo menos acha o consolo da alma, que no galope fala do mundo com as vozes do vento.

Não há dúvida que o poeta aqui na sua estreia produz valiosa poesia. Inventa o poema com conteúdo palpitante, forma virtuosa, sedenta, faminta de vida que atropela, fere e não cura, se põe a serviço de uma lira que tudo lembra da cidade enorme com seu grito sem fim. Lancinante gravita com suas paisagens interiores, habita inquieta o cenário agarrado ao tempo que tudo dá e toma, escorre, bebe e lambe.

Depois da estreia marcante com Cidade em Grito, Reynaldo Valinho Alvarez só fez aumentar as qualidades de sua construção poética, de livro para livro, com níveis elevados. No alcance de um projeto estético universal produziu com a habilidade de um talento artesanal incrível a façanha de quem sabe que a poesia é forma de conhecimento da vida, fundamental como o amanhecer em tempo de estio ou chuva. Tornou-se dono de ideia fecunda advinda do homem em estado crítico no final do século vinte. Citemos como ilustração desse belo e sofrido fazer poético os livros seguintes: Canto em Si e Outros cantos, O Solitário Gesto de Viver, Solo e Subsolo, O Sol nas Entranhas, O Continente e a Ilha, Lavradio, Galope do Tempo e O Sol nas Entranhas.

Na estrada que se estende com uma vintena de livros de poesia, o poeta passou a acumular prêmios de primeira grandeza, outorgados como reconhecimento de sua vocação exemplar, por órgãos e instituições da importância do Ministério da Educação, Instituto Nacional do Livro, Academia Brasileira de Letras, Câmara Brasileira do Livro, União Brasileira de Escritores (Rio), Pen Clube do Brasil, Biblioteca Nacional e Fundação Nacional de Literatura Infantil e Juvenil.

Em Galope do Tempo (1997), o poeta de rítmica variação estrutural nova surge das zonas da poesia feita com o melhor que se tem da razão e emoção. Brilha inteiriço como sendo a antena da raça preconizada por Ezra Pound. Operador hábil de formas modernas, também das convencionais como as usadas pelo exímio sonetista, tanto no soneto à moda inglesa como no formato de Petrarca, é eficaz nos dísticos que anunciam ou puxam a seguir o poema com seu sentido amplo, pulsante de símbolos, metáforas, imagens, e em tudo mais que encontramos nesta poesia com grande proveito de quem a lê. E vê o poeta alçar-se numa ideia que esplende novo passo. No texto conjugado com a harmonia da composição que impressiona há um processo moderno para “libertar-se e viver, para colher o fruto a mais que a vida oferecer.”

Domador dos sentimentos com o peso do mundo, pensador do tempo que sempre permanece na indiferença pela vida humana, passando com os seus sortilégios, dores e martírios, a evasão tomada emprestada ao sonho se faz necessária, prazerosa e útil nesse poeta emblemático. A experiência impõe que haja o voo e se apaguem as fronteiras quando então os gestos e os medos se fundem no espaço e no mesmo lugar, fazem com que as esperanças ganhem a forma de um abraço. Embora preso nas algemas desse senhor absoluto, que tudo sabe dos caminhos, valem na estrofação com profundidades esses versos pungentes, cantantes numa lira reflexiva quando medra a ternura com bases na solidariedade decorrente do duro embate.

Na composição de processo novo, a galopar no tempo que gira, em seu permanente estar no mundo, o poeta empreende a aventura áspera, mesclado de vida e sentimentos agudos. Na escritura ideal a alquimia da palavra movimenta-se com os achados certos do coração. E assim, corajoso e firme, incide no enfrentamento dos dias simulados numa linguagem condensada rica de significados. À equação em que são vistos os dias que se perdem nesta luta vã, mal surge a manhã, o poeta informa, canta, revela a notícia de que essa passagem dos muitos ligada no efêmero é forma fundamental para o conhecimento da existência. Tenaz é a busca para tocar na alvorada, nas fronteiras que se apagam, no espaço fazendo que o mundo ganhe a forma de um abraço. É nesse jogo em que o tempo não muda, mostra-se indiferente com as terrenas e abusivas ocorrências humanas, sendo nós que mudamos, que o poeta tenta ser visto no início de um alvorecer, embora “preso nas algemas quer voar, vencer, colher o fruto a mais que a vida oferecer”.

É conhecedor de que o tempo não engana com o seu peso do enigma, não se solidariza com a solidão, que é certeza absoluta de um dia em que tudo se dissolve. Fecham-se as cortinas de todas as coisas no trânsito da vida, do tempo limite onde não mais há o limiar. No terminal por conta de saudosa memória há o ocaso sem escape. Preso ao acaso do tempo contra o tempo, no galope de muitas uvas e poucas chuvas, amargura e ternura, noivar e separar, grão e imensidão, vaga do mar. Quando se escutam vozes ligadas nessas horas críticas em que o vento fala de flor, de homem, de terra, de estrela, da lavra de luar.

Nas vias da solidão e multidão, o poeta mede a vida, mente que divaga, nas ondas do transitar medita. Seu galope que se lança nos intestinos do intertexto acontece com as pinturas de Goya, viaja na palavra realista de Eça, mundo vertiginoso de Cesário, epicidade de Camões. Passa pela Escandinávia, adiante é puxado pela cauda da herança galesa, escorre nas ruas cinzentas de Londres, lateja com os lampejos do eterno. Inventa-se com a companhia de Pessoa. Machado de Assis e Lima Barreto, entre Capitu e Clara dos Anjos, enquanto dorme e sonha não sabe qual deles é seu guru. Tudo converge para sabermos que há um tempo passageiro, às vezes se mastiga, renasce com as esporas do ar.

Sempre nesses versos tocantes o tempo de conhecer a vida, embelezar mundividências do sofrer onde somos e estamos a passar com os passos do sol e da chuva. Tempo de dar, não tomar. Quando se entra em contato com esse galope do tempo forjado com maestria pelo poeta Reynaldo Valinho Alvarez, ficamos mais convencidos de que é inútil apressar. Não adianta, tudo no tempo tem seu tempo, até que seja a vez da hora absurda desse tempo tumular.

A vida inteira é menina, tão moça, alerta o poeta, nesse galope que o tempo faz com passos impassíveis. Com uma neutralidade que ao mesmo tempo espanta, atormenta, para a qual não se consegue chegar perto, pois fora ou dentro sempre está cercada por um mar.

Daí se dizer com o toque do poeta que vai fundo:


Quem aprende com as aves sonha mais.

Não há gurus. Há sóis, luas e ais.


Referência

ALVAREZ, Reynaldo Valinho. Cidade em Grito, Gráfica Danúbio, Rio de Janeiro, 1973.

ALVAREZ, Reynaldo Valinho. Galope do Tempo, Editora Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1977.


TRECHO DE UMA HISTÓRIA DA POESIA BRASILEIRA ONDE O AUTOR, ALEXEI BUENO, ABORDA O POETA REYNALDO VALINHO ALVAREZ:



O carioca Reynaldo Valinho Alvarez, de ascendência galega, é dos maiores mestres da forma poética no Brasil, um poeta sobretudo urbano, de índole expressionista, que poderíamos dizer da família de um Augusto dos Anjos, sobretudo pela visão crítica das misérias sociais do Brasil que encontramos em alguns dos seus livros. Se a memória domina um grande livro como Lavradio, de 2004, um olhar apocalíptico sobre a civilização é o cerne de Corta a noite um gemido, de 2007. Afora essas características, Reynaldo Valinho pertence inegavelmente à linhagem dos poetas da morte, daqueles que, como homens normais que são, não conseguem ficar indiferentes ao maior de todos os assuntos, linhagem que, entre nós, vem desde um Alphonsus de Guimaraens até um Ivan Junqueira [...]

O PARADOXO DA REENCARNAÇÃO: HOMENAGEM AO CENTENÁRIO DE JOAQUIM KORYTOWSKI

TRECHO DO MEU LIVRO AINDA NÃO PUBLICADO EM HOMENAGEM AO CENTENÁRIO DE NASCIMENTO DO MEU PAI, EM 19 DE FEVEREIRO DE 2024. NA FOTO QUANDO, ADOLESCENTE NA ALEMANHA, AINDA SE CHAMAVA KARL JOACHIM KORYTOWSKI. AO SE NATURALIZAR BRASILEIRO APORTUGUESOU O NOME PARA JOAQUIM KORYTOWSKI. PARA OUTRAS FOTOS DO MEU PAI CLIQUE AQUI.


Em nova viagem do Joaquim e Thelma à terra do Tio Sam em 1972, deveriam retornar ao Brasil num voo na sexta-feira, dia 13 de outubro, mas por uma causa curiosa (não foi superstição em relação ao dia considerado azarento) protelaram a volta para a segunda-feira, dia 16. O motivo teve a ver com espiritismo.

Já no Brasil, antes da Thelma vir morar conosco, meu irmão mais velho, eu, nosso pai e um amigo do meu irmão que era médium espírita fizemos algumas vezes o que chamávamos de “brincadeira do copo”, que de brincadeira não tinha nada, ao contrário, levávamos muito a sério: era uma forma de comunicação com os espíritos que surgiu na Europa com o kardecismo na segunda metade do século XIX. A gente coloca um copo virado para baixo, dispõe as letras do alfabeto ao redor em círculo, mais as palavras SIM e NÃO, invoca um espírito para entrar no copo, faz perguntas ao espírito, e o espírito responde. Posso assegurar que ninguém de nós empurrava o copo, se alguém empurrasse daria para perceber, juro que o copo andava sozinho. Segundo a ciência, o movimento do copo se deve a um suposto “efeito idiomotor”: ele é empurrado de forma inconsciente, sem que os participantes percebam que estão empurrando. Mas quem já participou da experiência sente que essa explicação é forçada.

O espiritismo kardecista surgiu na França, mas foi no Brasil que encontrou mais adeptos, talvez por sua compatibilidade com as crenças de matriz africana. Meu pai acreditava e, a certa altura, passou a frequentar um centro espírita e me contou que desde então sua vida estava melhorando. Ilusão, já que no frigir dos ovos sua situação financeira degenerou.

Na teoria da reencarnação existe um paradoxo. As pessoas imaginam que as reencarnações são sucessivas: você nasce, vive, morre, e logo depois, ou pouco depois, ou não muito depois reencarna. Tanto é que, quando morre um Dalai Lama, pouco depois procura-se a alma reencarnada daquele Dalai Lama num recém-nascido. Não passaria pela cabeça de ninguém que a alma levaria cem, duzentos anos para voltar a encarnar. As pessoas que acreditam no espiritismo imaginam que encarnaram sucessivamente nas diferentes épocas da história humana: na época dos romanos, na Idade Média, no Renascimento, na era vitoriana, etc. Acontece que a população mundial no passado era bem menor que hoje. Há dez mil anos, éramos apenas uns 2 a 3 milhões. Há 2 mil anos, cerca de 200 milhões. Em 1800, a população mundial era de 1 bilhão. Em 1930, 2 bilhões. Em 1950, 2,5 bilhões. Em 1999, 6 bilhões. Agora somos 8 bilhões. Veja bem, no passado não havia pessoas suficientes para receber todas as 8 bilhões de almas que existem hoje. Este é o paradoxo da reencarnação.

Mas voltemos à viagem do Joaquim e Thelma aos EUA em outubro de 1972. Na noite de quinta-feira, dia 12, estavam na casa dos melhores amigos da Thelma, tomando um drinque de despedida. Quando estavam prestes a se despedirem, conversa vai, conversa vem, começaram a falar em espiritismo, e eis que o amigo era médium amador e tinha em casa um tabuleiro ouija. Nos Estados Unidos, em vez de um copo percorrendo letras sobre uma mesa, utilizam-se esses tabuleiros com letras e números (e algumas palavras como “Yes”, “No”, “Goodbye”), e um marcador (“um tripezinho com um furo, pelo qual se vê a letra”, na descrição do meu pai). Quando os participantes colocam o dedo em cima do marcador, ele se move e forma as mensagens.

Meu pai conta numa carta que logo apareceu um espírito que se dizia seu parente por parte do avô materno, mas de quem nunca ouvira falar. Primeiro se identificou como Jacob Katz, mas depois mudou o nome para Jacob Kantorovich, nascido em 1874 e falecido em 1939, que vivera em Düsseldorf. Respondia meio em alemão, meio em inglês, de forma que meu pai (cujo dedo não estava sobre o marcador) acabou “falando” com ele em alemão, língua que os dois médiuns que “manobravam” o marcador não sabiam! O que derruba a explicação científica para a “brincadeira do copo” ou o “tabuleiro ouija” de que se trata de um efeito ideomotor.

Passada a meia-noite (ou seja, já estavam no dia da viagem, 13), um outro espírito enviou uma mensagem para a Thelma: “Não viaje hoje em veículo algum!” Perguntaram se ao menos poderiam ir de carro para a casa dos cunhados, onde estavam hospedados, e a resposta foi “sim”. Ao perguntarem se poderiam viajar “amanhã” (sábado), a resposta foi “não”. Quando poderiam viajar? Só na segunda-feira, dia 16. Please do not ride, we fear danger. Conclusão: telefonaram para o atendimento 24 horas da Panam e remarcaram a viagem. “Fiquei impressionadíssimo e muito agitado com esta estória”, conta meu pai numa carta, “até agora, escrevendo a respeito me comove.”

Mas seria Jacob Katz/Jacob Kantorovich (1874-1939) de fato parente de meu pai por parte do avô materno? Parece que não. Os pais de Gertrud Lewin, mãe do meu pai, foram Rosa Bornstein (1874-1926) e Paul Lewin (1877-1950). Este emigrou com a segunda esposa, Rosa Wolff (1883-?), para São Paulo antes do início da guerra. Seus pais foram Gerson Lewin (1845-?) e Charlotte Romann (1850-1921). Estes foram os dados que achei nas páginas 30-31 e 54 (árvore genealógica) do citado livro do Pöllmann, já que meu pai nunca comentou comigo sobre a família de sua mãe. Observe que chamei as mulheres pelos sobrenomes de solteiras, que é o que interessa num estudo genealógico.

Pesquisei Jacob Kantorovich no Google e achei uma pessoa com exatamente este nome, nascida em 1885 e falecida em 1935, enterrada no Waldheim Cemetery Co., Forest Park, Cook County, Illinois, EUA. Parece não ter vivido em Düsseldorf, e as datas não coincidem com a do espírito. Mas encontrei um Jacob Katz, morto em 6 de fevereiro de 1939 e enterrado no cemitério judaico de Vorst, cidade de Tönisvorst, a 30 quilômetros de Düsseldorf! 

E last but not least: meu pai conta que o voo da Panam do dia 13 chegou ao Rio sem incidentes, mas naquela noite ocorreram dois desastres aéreos no mundo. Fui conferir e de fato a primeira página do Jornal do Brasil (que meu pai lia) de 15/10/1972 noticia:

Um jato soviético Ilyushin-62 da Aeroflot caiu e explodiu sexta-feira à noite perto de Moscou, matando todo os seus ocupantes [...] no que pode ser o pior desastre da história da aviação civil. Outras 47 pessoas – inclusive um time de rúgbi de Montevidéu – foram dadas como mortas ontem num bimotor F-27 da Força Aérea Uruguaia, que ia para Santiago. Um mineiro da região andina chamada Desfiladeiro Tibúrcio afirmou ter visto a queda do avião.