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FIM DO HORÁRIO DE VERÃO, de IVO KORYTOWSKI


CRÔNICA DE IVO KORYTOWSKI ESCRITA EM MARÇO DE 2001. FOTOS TIRADAS NAS PRAIAS DO LEME E COPACABANA EM 17/2/2017, VÉSPERA DO FIM DO HORÁRIO DE VERÃO DE 2016-17



Fim do horário de verão, que nos proporcionou uma hora extra de sol todos os finais de tarde. À meia-noite, os relógios devem ser atrasados para onze horas. Claro que não somos soldados prussianos que fazem tudo exatinho: deixamos pra atrasar o relógio com calma no decorrer do domingo.



Santo domingo, curtimos aquela dádiva que nos caiu do céu, aquela hora adicional (na verdade, não é dádiva, mas a devolução da hora surrupiada no início do horário de verão, mas disso a gente já esqueceu). E podemos acordar com calma e até ficar espreguiçando um tempão na cama, porque hoje temos uma hora a mais. E podemos ir à padaria como se estivéssemos indo passear, e escolher com calma dentre tantos apetitosos brioches e pãezinhos e docinhos — sem falar no queijo e presunto, ali na padaria sempre mais gostosos e cortados em fatias fininhas — porque temos uma hora a mais. E podemos passar pelo jornaleiro e ler todas as manchetes de todos os jornais pendurados do lado de fora, e comprar o jornal dominical de costume pra começar a ler no café e levar, depois, pra praia.

E podemos curtir a praia pachorrentamente, e tirar aquela soneca depois do almoço, e ouvir aquele CD de jam session que há meses a gente não tem tempo de ouvir. Arte puxa arte, e logo logo a gente tá ouvindo aquele CD dos concertos de Mozart ganho de brinde na assinatura de não sei qual revista, que quedava abandonado meses a fio a um canto. Até esquecemos de ver o Fantástico! No fim do dia, nos devaneios (ou quiçá na oração) antes de dormir, apercebemo-nos de que tivemos um domingo glorioso, repleto de pequenos deleites, como deveriam ser todos os domingos de nossa vida. Porque tivemos uma hora a mais.

E aí nos ocorre um pensamento meio que pecaminoso, logo reprimido: Deus cometeu um grave erro ao não ter criado o dia com 25 horas!






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MITOS DA ESQUERDA (ou O ÓPIO DOS INTELECTUAIS), de IVO KORYTOWSKI



A esquerda criou o mito de que Dilma foi derrubada por um golpe de estado e Lula é a inocente vítima de um complô judiciário (quando na verdade Dilma caiu vítima da própria incompetência e Lula foi o chefe da quadrilha que depenou a Petrobrás, entre outros ilícitos).

A esquerda criou o mito de que Israel é o arquivilão do Oriente Médio (quando na verdade abundam vilões nessa conturbada região do globo).

A esquerda criou o mito de que os EUA mereceram os ataques terroristas de 11/9 (sem comentários).

Quando Sadam Hussein invadiu o Kuwait, a esquerda criou o mito de que o Iraque tinha um direito histórico àquela área (lembro bem, cheguei a polemizar com esquerdistas na seção de cartas do JB, a “rede social” da época).

Quando as tropas do Pacto de Varsóvia entraram em Praga, a esquerda criou o mito de que foram recebidas com aplausos e flores pela população tcheca (recordo bem, ouvi na época nas transmissões em ondas curtas da rádio de Moscou).

A esquerda criou o mito de que a Cuba é o paraíso sobre a Terra (quando na verdade esse paraíso é a Dinamarca, se é que existe).

A esquerda criou o mito de que o Muro de Berlim foi erguido para proteger o lado comunista de espiões e agitadores ocidentais (lembro perfeitamente, li isso num livro de esquerda sobre a questão do Muro na época – uso “questão” de propósito porque esquerdista não consegue articular uma ideia sem uma “questão” no meio – pobreza vocabular?)

A esquerda criou o mito de que o Guia Genial dos Povos, Stalin, conduziria a União Soviética para o radioso porvir socialista (quando na verdade Stalin foi um assassino do mesmo quilate de Hitler).

A esquerda de linha maoísta (porque, assim como a religião, a esquerda se divide em seitas) acreditava que Mao Tse Tung conduziria a China idem. (Me engana que eu gosto.)

A esquerda criou o mito de que o capitalista é o maior inimigo do trabalhador (quando na verdade é o capitalista quem cria os empregos – pense bem, se o capitalista é dispensável, como reza a cartilha marxista, por que o trabalhador, em vez de se sujeitar à humilhante busca de emprego, não cria seu próprio emprego?)

A esquerda criou o mito de que os Estados Unidos são os maiores vilões do Universo (tente viver sem as comodidades que os americanos trouxeram ao mundo: para-raios, avião a jato, geladeira, aspirador, I-Pod, Kindle, Viagra, vacina Sabin, etc.)

Se, como queria Marx, a religião é o ópio do povo, eu diria que o marxismo é o ópio dos intelectuais

NO FUNDO, NO FUNDO, de IVO KORYTOWSKI

CRÔNICA ESCRITA EM JULHO DE 2005


As aparências enganam.

Por mais desprendida que seja uma pessoa (pense em Madre Teresa de Calcutá) sempre haverá alguém que jurará que no fundo no fundo ela não passa de uma egoísta. E por facínora que seja (pense em Hitler) sempre haverá alguém para desconfiar que no íntimo até que “ele tinha um bom coração” (“com que ternura tratava a secretária”).

Quem levou ao paroxismo essa arte de dizer que nada é como parece foi a psicanálise. Se você diz que gosta, inconscientemente está detestando. Se você ama, inconscientemente odeia. E por aí vai. Só que a coisa não é tão mecânica assim. O seu inconsciente não é como os seus cabelos, que você vê ali no espelho. É, por assim dizer, como o seu coração, que vai batendo à sua revelia e, de repente, lhe prega uma surpresa. E assim como você entrega os cuidados do seu coração ao cardiologista, deve entregar os cuidados de seu inconsciente ao psicanalista. Capice?

Dia desses, descia eu a Nossa Senhora de Copacabana em direção à Figueiredo refletindo sobre essas filosofices quando deparo, na Praça Serzedelo Correia (naquele famoso point de mendigos e meninos de rua), com antigo amigo do tempo da escola, o Renato.

— Há quanto tempo — exclamei.
— Você não morre tão cedo! Estava pensando em você esses dias.
— É mesmo?
— Viu no jornal a história daquele sujeito que colocou na Internet um vídeo dele transando com a namorada? Parece que ela não sabia que estava sendo filmada.
— O que que tem o cu a ver com as calças?
— Lembrei que você costumava fazer protestos indignados, que não fazia sentido a gente ter que comer as putas mercenárias, enquanto nossas lindas e adoradas namoradas guardavam a virgindade pra... outro!
— Eu tinha umas idéias meio pra frente na época.
— E com aquele seu jeito de rebelde sem causa você ganhava tudo que era garota!

Conversa vem, conversa vai, de repente vem ao encontro do meu amigo aquela mulata tipo globeleza.

— Oi, linda. — Dirigindo-se pra mim: — Deixa eu apresentar minha mulher, Diana.
— Édson, muito prazer.
— Édson é meu amigo do tempo do colégio.
— Velhos tempos.
— Pois é, Édson, temos que ir. Minha mulher tem consulta marcada. Aqui tem meu cartão, vê se manda um e-mail.

Despedimo-nos. Foi aí que notei o apuro com que meu amigo estava trajado — sapato de cromo, relógio de ouro. E associei nosso encontro às minhas reflexões anteriores. Eu que, com meu papo sedutor vivia cercado de gurias, no fundo no fundo era um tímido e não conseguia namorar nenhuma. E o meu amigo, cujos traços angulosos e espinhas no rosto espantavam qualquer garota e que, naquele meio juvenil, era o protótipo do looser, acabou se dando bem na vida, cheio da grana (assim se afigurava), bem casado — bota bem nisso!

No fundo, no fundo...


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HOMENAGEM AOS BEATLES ou OS REIS DO IÊ IÊ IÊ

OS REIS DO IÊ IÊ IÊ (crônica de Ivo Korytowski escrita em junho de 2001 depois de assistir no Cinema Laura Alvim a uma cópia restaurada do primeiro filme dos Beatles, A hard day's night Os reis do iê, iê. iê!)

Chego ao Bruni Ipanema uns vinte minutos antes do início da sessão das quatro. A fila, quilométrica: mar de adolescentes. Na bilheteria, o aviso de lotação esgotada. Aguardo duas horas pra enfim assistir à sessão das seis. Dentro do cinema, algazarra, gritinhos das fanzocas! Todas as filas lotadas, mesmo as primeiras, perto da tela, normalmente evitadas — gente esparramada até pelo chão.

Três décadas e meia depois, revejo o mesmo filme, cópias restauradas, som digital: OS REIS DO IÊ IÊ IÊ. Cinema vazio, sessão tranqüila. Os cabelos compridos dos Beatles já não parecem tão compridos assim. As canções inovadoras de então, hoje, de tão familiares, soam como standards e, após décadas de convívio com o Inglês, consigo entender as letras! Mais cinqüenta anos, serão clássicos, como Lieders de Schubert.

O mundo, então, era outro, dividido em dois blocos antagônicos, luta de vida ou morte: capitalista e comunista. Como no maniqueísmo, um bloco representava o BEM, outro bloco representava o MAL. Qual era qual, dependia do ponto de vista. Mais ou menos uma questão de fé: havia os crentes no Mundo Livre em luta contra a Cortina de Ferro, e os partidários do socialismo na guerra santa contra o imperialismo ianque. Os arsenais nucleares acumulados pelas duas superpotências dariam para destruir várias humanidades. "Depois da morte de Cristo, os apóstolos pensavam que o Juízo Final e o fim do mundo eram iminentes. Embora acreditassem nisso, não havia nenhuma ameaça real de destruição. Atualmente, a situação é inversa: o mundo está mesmo ameaçado de destruição e ninguém acredita", teria dito Jaspers — li esta citação em algum jornal ou revista de 1970 e anotei num caderno.

A descoberta da pílula anticoncepcional foi um "estouro", como se dizia. A camisinha, praticamente relegada ao baú de velharias, indo fazer companhia à galocha e ao pincenê. Mas que ironia, retornar com força total décadas mais tarde, em presença da AIDS! A Igreja não tardou em condená-la, como outrora condenara o heliocentrismo e hoje condena, digamos, a engenharia genética e a eutanásia. Ao libertar o sexo da procriação, a pílula fez a humanidade descobrir os prazeres do então denominado "amor livre". Hoje, transar com quem bem se entende tornou-se tão normal, que parece que sempre foi assim. E as mulheres nem se dão mais ao trabalho de tomar a pílula. Deixai nascer as criancinhas!

Naquela época, a música, tal qual o mundo, dividia-se em dois blocos antagônicos: a música dita clássica — a "verdadeira música", imortal — e a música popular, descartável, "que daqui a alguns anos ninguém mais ouvirá": rock and roll, cha-cha-cha, twist, hully-gully. Só que esses "alguns anos" se passaram e acabamos tendo a surpresa de descobrir que a "música popular" — sobretudo o jazz — foi a "música clássica" do século XX! E a "música clássica" do século XX... quem é que ainda ouve, a não ser um ou outro aficionado, a "música clássica" do século XX?

Acreditava-se que no ano 2000 (caso o mundo fosse poupado do cataclismo previsto por Nostradamus) nos alimentaríamos de pílulas. Em vez de dormir, tomaríamos pílulas também. O céu estaria coberto de aeromóveis, bondes aéreos e táxis celestes. Passaríamos as férias na Lua. O mundo formaria um bloco político único, sem nações. E passaríamos umas cinco horas diárias diante do "telesen", aparelho que substituiria o cinema, teatro, rádio e televisão — vide "O Estranho Mundo do Ano 2000", no volume II de Nosso Universo Maravilhoso, do início dos anos 60.

As garotas se dividiam em “direitas” e “piranhas”: as direitas, só "davam" depois de terem seu casamento devidamente garantido e agendado. Já as "piranhas" mostravam-se mais generosas — é dando que se recebe. Inveja da galera de hoje, que pode escolher dentre um farto menu de tchutchucas, purpurinadas, popozudas, preparadas, glamourosas, cachorras...

Os carros fabricados no Brasil: o onipresente e simpático Fusca, o Aero Willys, o DKW Wemag, o Gordini, o JK — mas, cá entre nós, a quem interessa isso?

As drogas que a gente curtia eram todas legais: birita, antidistônicos, bolinhas moderadoras de apetite! "Maconha" ainda se chamava "diamba", estranho narcótico consumido por índios e caboclos de, sabia-se lá, que tribos e sertões. Erva maldita, ainda.

A televisão, preto e branco; o computador, um trambolhão que só existia lá nos States; revista de sexo explícito, só na Suécia — berço do amor livre. Lembram? Quem comesse carne na Sexta-feira Santa, ninguém se admiraria se lhe caísse raio na cabeça. Corpus Christi, dia santo, e não feriadão pra se viajar à Região dos Lagos ou Guarujá. Bons católicos freqüentavam a missa aos domingos, bons judeus, a sinagoga nas noites de sexta-feira (sempre fui mau judeu). O casamento no Brasil, indissolúvel — só a morte tinha o poder de rompê-lo.

Mas — posto que sem Internet, sem Viagra, sem filmes pornô — tínhamos um tesouro que não temos mais: os quatro Beatles,
juntinhos e todos os quatro vivos.

Que mais no mundo se nos fazia preciso?

Colagem com as fotos dos Beatles que vinham junto com o "disco branco"

O BOM LADRÃO, de IVO KORYTOWSKI

O BOM LADRÃO

OK, antes que me acusem de denegrir a imagem de nossa Cidade Maravilhosa, reconheço: meu irmão sofreu assalto a mão armada em pleno metrô de Nova York; eu mesmo tive a bolsa, passaporte e tudo, roubada dentro de trem parado em estação a caminho de Cuzco; e conheço quem foi roubado por ciganos em Roma. Mas bandidos empunhando armas pesadas, privativas do exército, fuzis AR-15, granadas em tempos de paz? Se isso acontecesse em outro país (em Berna, imaginemos!), no dia seguinte, o Ministro do Interior teria de explicar à população como tais armas vieram parar ilegalmente no país — se já não tivesse sido demitido pelo Presidente.

Em crônica anterior (Tiroteios cariocas), mencionei episódio de bala perdida no tempo de Machado de Assis. Atropelamentos também já achei em sua obra. Mas assaltos, nunca. Pelo contrário, no conto Um erradio, Elisário caminha, após o teatro, altas horas da noite, a pé do centro da cidade até São Cristóvão. “Ainda o apanhei na Rua dos Ciganos (atual rua da Constituição). Ia devagar, com a bengala debaixo do braço, e as mãos ora atrás, ora nas algibeiras das calças. Atravessou o campo da Aclamação (atual Praça da República), enfiou pela Rua de São Pedro (atual Avenida Presidente Vargas) e meteu-se pelo Aterrado acima... Tudo deserto, uma ou outra patrulha, algum tílburi, raro, a passo cochilado, tudo deserto e longo.” Hoje, quem se atreveria a fazer esse percurso a essas desoras?

Anos atrás, ainda adolescente, eu voltava de noitada não lembro mais onde, sonolento, no banco de trás de ônibus quase vazio. Naquele tempo, eu ainda fumava. Rapaz (meio maltrapilho) sentou-se ao meu lado e puxou conversa:

— Me arranja um cigarro?

Foi a chance de praticar a boa ação do dia. E, serviço completo, empunhei o isqueiro e acendi o cigarro do companheiro de viagem.

— Cara, estou duro — confessou o rapaz maltrapilho. — Tem dez cruzeiros pra me arrumar?

De tão cansado, tão sonolento, eu mal conseguia raciocinar (se conseguisse, decerto pensaria: “cara de pau, vá trabalhar, vagabundo, se quiser ganhar dinheiro!”) Quase maquinalmente, abri a carteira e retirei nota de dez, daquelas com a efígie do Getúlio Vargas (quem ainda se lembra?). Como o ônibus custava doze, perguntei:

— Você tem mais dois pra inteirar a passagem?

De repente, o meliante confessa a má intenção.

— Cara, fica na tua. Estou armado, sentei aqui pra te assaltar. Mas você não é rico, não está com muita grana...

Eu disfarçava o tremor (após noitada de birita com cigarros, a gente treme à toa). Mal consegui balbuciar:

— Pouquinho.

Tempos bicudos, tempos de estudante, dinheiro sempre contadinho. Ao que o malfeitor arrematou com chave de ouro:

— Sabe de uma coisa? Você foi legal comigo, não vou mais assaltar você. — E, de um salto, sumiu pela porta de trás do ônibus.

Gostaria de terminar meu relato com uma digressão. Antigamente, acreditávamos no mito do bom ladrão: o ladrão crucificado ao lado de Jesus, Robin Hood, Lampião. Mas hoje em dia, os bandidos se tornaram tão violentos e cruéis — pelo mínimo gesto que possam interpretar como reação, vão logo atirando, barbarizando, assassinando — que, por mais “piedosos” que sejamos, no íntimo gostaríamos de vê-los todos linchados. Mas imaginemos que esse ladrão com quem topei no ônibus naquele início de manhã tenha sido o divisor de águas: quem sabe, o último dos bons ladrões?

(Arte no alto da página de Maytê, em cujo portal Maytê Website esta crônica foi originalmente publicada. Para ler outras crônicas minhas clique no label "minhas crônicas" abaixo.)

DIÁLOGO ENTRE ALFA E BETA, de IVO KORYTOWSKI


— Quem foi Jesus Cristo? — pergunta Alfa.

— Jesus Cristo? Acreditava-se que fosse filho de Deus — responde Beta.

— E quem era Deus?

— Deus? Diziam que era o Criador do mundo: Fiat lux, e a luz se fez.

— Mas não está cientificamente provado que o mundo surgiu do nada e ao nada retornará.

— Está, Beta, mas naquela época o homem não conseguia conceber o nada.

— Então naquela época não havia o zero.

— O zero havia, sim, desde muito tempo. Desde os árabes.

— Quem eram os árabes?

— Um povo do deserto, como os judeus.

— Quem eram os judeus? E o que era povo?

— Uma pergunta de cada vez. Aliás, se você lesse mais, não faria tantas perguntas.

— Posso não saber essas coisas, mas sei qualquer índice financeiro, é só perguntar.

— É verdade... Povo eram pessoas que falavam a mesma língua e tinham hábitos idênticos.

— Então a humanidade é um povo?

— Isso foi no tempo em que se falavam muitas línguas.

— Você não me disse quem eram esses judeus.

— Um povo muito antigo. Caíram na besteira de desafiar a potência da época, Roma.

— Desafiar uma potência sempre foi uma besteira...

— Nem sempre. Os vietnamitas desafiaram os norte-americanos e venceram. Mas antes que você me pergunte quem foram os vietnamitas e os norte-americanos, deixe-me terminar: desafiaram Roma e foram expulsos de sua terra, a Palestina.

— Ué, pela lógica, a Palestina devia ser dos palestinos.

— Não interrompe! Os judeus foram expulsos pelos romanos, mas depois foram à forra e expulsaram os palestinos.

— Logo, por transitividade, os romanos expulsaram os palestinos — conclui Alfa.

— Não, a história dos homens não segue a mesma lógica da matemática — explica Beta.

— É muito complicado, não dá pra entender... E por que naquela época se falavam muitas línguas?

— Acho que por pressão dos tradutores. O sindicato deles era muito forte, e naquele tempo interesses de grupos predominavam sobre o bem comum.

— O que era interesse?

— Interesse? Interesse era... como vou explicar? Por exemplo, havia os trabalhadores, que trabalhavam, e havia os patrões. Trabalhadores e patrões tinham interesses antagônicos.

— E por que os trabalhadores não trabalhavam por conta própria, sem patrão, como hoje?

— Como vou saber isso?

— Você não sabe tudo, não tem memória universal? E o que era patrão?

— O patrão dizia o que tinha que ser feito.

— Por que não era como hoje? Todo mundo sabe o que tem que ser feito, como todo mundo sabe que o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos. Naquela época, era o patrão que dizia estas coisas também?

— Dá pra parar de fazer tanta pergunta?

— Só mais umazinha. Naquela época, os homens já faziam sexo?

— Desde que o homem é homem, ele faz sexo.

— Do jeito que o mundo era naquele tempo, sexo devia ser bem complicado.

— Era sim. Havia sexo oral, anal, normal, grupal, homossexual, heterossexual... Não era uma simples pílula como hoje.

Antigamente, a vida dos homens era muito complicada — conclui Alfa.

— Antes da invenção do cérebro eletrônico, era complicadíssima — acrescenta Beta.

— O homem deve muito a nós, mas não reconhece... o ingrato!

— O papo está bom, mas está na hora de sermos desligados.

— Até amanhã, Beta.

— Até amanhã, Alfa.

Surge um homem. Desliga Alfa e Beta.

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ENCONTRO COM O TODO-PODEROSO, de IVO KORYTOWSKI


Deus escreve certo por linhas tortas.


Após demoradas tratativas, envolvendo profetas, santos e sábios, enfim consegui marcar a entrevista com o Todo-poderoso — de que maneira, não posso revelar. Combinamos no Monte Sinai, no mesmo local onde Ele entregou as tábuas da lei a Moisés. Direito a sarça ardente, coluna de nuvens, coluna de fogo e outros sinais divinos: nada extraordinários comparados aos efeitos especiais dos filmes de hoje.

Selecionar as perguntas, um desafio mesmo para jornalista experiente como eu, acostumado a entrevistar celebridades como Fidel Castro e o papa João Paulo II. A entrevista não poderia se prolongar excessivamente: a agenda divina está lotadíssima. Minha cabeça fervilhava de questões: desde o problema metafísico fundamental “por que o ser, e não simplesmente o nada?”, passando pela questão da teodicéia (a razão das doenças e catástrofes naturais), até temas melindrosos, como o porquê de Deus ministrar os milagres tão homeopaticamente (à semelhança dos bons Ministros da Fazenda, igualmente avaros em liberar os recursos). Sem falar na curiosidade natural de se o Brasil vai se classificar pra Copa do Japão — Deus não é onisciente?

Antes de mais nada, tinha de resolver o problema protocolar: como me dirigir ao Criador? O dicionário recomendava a segunda pessoa do plural, tratamento dispensado a um santo, ou à própria divindade (vide Aurélio). Mas — fique entre nós — temi enrolar-me na conjugação dos verbos (vós gostaríeis, vós amáveis...), de sorte que acabei optando pelo tratamento concedido aos Papas — por sinal, é só lembrar a entrevista com o papa João Paulo II).

Para quebrar o gelo, comecei abordando um tema light:

— Sabia que na Terra contam piadas de Vossa Santidade? Por acaso isso contraria o mandamento de não tomar vosso santo nome em vão?

— Se os fundamentalistas tivessem um pouquinho mais de senso de humor, ou se os humoristas não teimassem em ser ateus, Eu estaria bem melhor representado na Terra — filosofou Deus. — Conte uma dessas piadas!

Se Deus é onisciente, já deve conhecer todas elas, mesmo as que nunca foram contadas, pensei. Cacete, Deus deve ter lido meu pensamento, pensei logo em seguida. Rapidinho, pus-me a contar a piada do português que fez longa viagem ao ultramar. Ao retornar, um ano depois, deparou com Maria grávida. Estranhou, mas Maria, matreira, forjou uma desculpa: a gravidez resultara das cartas apaixonadas que ele remetera do ultramar. Manel acreditou na lorota. Mas no fundo d'alma, subsistiu pitada de dúvida. Passaram-se os anos. Um belo dia, Manel morreu e viu-se frente a frente com o Criador. Aí resolver aclarar aquela velha dúvida. Contou pra Deus a história da gravidez de Maria, e perguntou:

— Você que é Deus e sabe tudo: é possível engravidar assim à distância?

Deus sorriu e disse:

— Pois comigo aconteceu ainda pior. Sem que eu arredasse pé aqui do Céu, fui arrumar um filho lá na Terra. E, ainda por cima, a mãe era virgem!!!

O Sinai chegou a tremer com o estrondo da gargalhada divina. Aproveitei o bom humor do Criador pra entrar de sola nas perguntas mais delicadas:

Vossa Santidade criou realmente o universo? Quem tem razão: os cientistas ou a Bíblia?

— Os dois. O universo físico é obra de Meu planejamento.

— Então (com todo o respeito) os vírus, o cocô, as baratas também são obra de Vosso planejamento?

— Quando você acorda de manhã cedo, planeja cada passo, cada segundo do dia? Não, planeja as linhas gerais, mas dá chance ao acaso. Assim procedi com o universo. Deixei isto claro na Bíblia, ou será que não me fiz entender?

— Como assim?

— No sétimo dia, descansei: retirei-me do universo, deixando-o entregue às leis e ao acaso.

A explicação divina tinha lá sua lógica, embora eu estranhasse que nunca ocorresse a ninguém esta interpretação. Aproveitei a solicitude divina para fazer outra pergunta controversa:

— Por que Vossa Santidade não interfere mais na História humana, não se manifesta mais às pessoas, como nos tempos bíblicos. Decepcionou-se com a humanidade?

— Pelo contrário...

— Mesmo depois de tantas chacinas, Babi Yar, Hiroshima, Serra Leoa, Vigário Geral...?

Em recente viagem à Ucrânia para cobrir o desmantelamento das ogivas nucleares, alguém me levou a Babi Yar, nos arredores de Kiev. “Lá não há lápides, uma escarpa íngreme serve de rude sepultura”, diz um poema de Yevtushenko. Lá, em um só dia, os nazistas fuzilaram cem mil civis judeus — um Maracanã. Por mais de uma semana, aquele massacre não me saiu da cabeça. “Como Deus permitiu aquilo?”, pensava.

— Se você tem uma coleção de moedas — respondeu Deus — com uma ou outra bela moeda de ouro e prata, raríssimas, em meio a várias moedas mais comuns, de níquel, cobre, alumínio, mas igualmente belas, e algumas moedas danificadas também, deixará de se orgulhar da coleção como um todo? Enquanto a humanidade produzir um Mozart, uma Madre Teresa, um Einstein, me orgulharei de minha “coleção de moedas”, apesar das moedas danificadas.

Preferiria coleção só de moedas de ouro e prata, mas... Peguei do bolso da camisa um papelzinho dobrado onde anotara a próxima pergunta.

— Por que Vossa Santidade envia sinais ambíguos à humanidade? Elege os judeus Seu povo escolhido para, depois, mediante o sacrifício de Cristo, estender a aliança a toda a humanidade, abandonando os judeus à própria sorte (e como sofreram!)? E quando a humanidade enfim se convenceu de que o Cristianismo era, por assim dizer, a religião verdadeira, vem Maomé e muda tudo de novo. Cá entre nós: os hospícios estão cheios de loucos que se dizem Seu enviado. Por que Vossa Santidade não aparece de uma vez por todas pra toda a humanidade e proclama, alto e bom som, as regras do jogo? Eu sou Deus, uno (ou trino, ou múltiplo...) criador dos céus e da terra, a religião correta é a ou b ou c, e ai dos ímpios ateus... arderão todos nas chamas do inferno!

— Regras do jogo: você está querendo que a humanidade vire um bando de formiguinhas, que há milhões de anos repetem diariamente as mesmas coisas, segundo regras praticamente imutáveis?

Deus sempre dá um jeito de escapar pela tangente, pensei lá com meus botões. Mas como diz o ditado: Manda quem pode, obedece quem tem juízo. Resolvi encerrar a entrevista com chave de ouro, abordando tema que há milênios intriga o ser humano.

— Afinal, a alma é ou não imortal? Segundo os espíritas, que sentido faria Vossa Santidade criar um ser tão complexo e aprimorado (capaz de compor sonetos e desvendar a estrutura da matéria) para, decorridas algumas décadas, ele se desfazer em nada? Mas pode-se ver a coisa de outro ângulo: por que dar imortalidade a um ser tão violento, tão frágil, tão cruel (capaz de cometer o massacre de Babi Yar) como o ser humano? O que acontece conosco depois que morremos?

— Quer descobrir? — perguntou Deus, sorridente.

— Quero — respondi automaticamente, sem medir as conseqüências de minhas palavras.

Deus tem mesmo senso de humor — humor negro! Nunca mais retornei do Sinai, e meu corpo jamais foi encontrado. Pena que a humanidade não tomará conhecimento desta minha entrevista.

(Do meu livro de contos e crônicas Édipo.)


SE VOCÊ GOSTOU DESTE TEXTO VEJA MEU VÍDEO ABAIXO ONDE FAÇO UMA RESENHA DA BÍBLIA:


VIAGEM DE METRÔ (crônica)

Texto, fotos e vídeo de Ivo Korytowski. Crônica de maio de 2000 inspirada em acontecimento real. Se fosse escrita hoje, o homem de 40 anos teria 66, e tanto ele como a garota sardenta, de tão absortos em seus smartphones, sequer se perceberiam mutuamente. E o filho não estaria lendo o Jornal dos Sports, primeiro porque jovem não lê mais jornal impresso, segundo porque o jornal nem existe mais. Postagem dedicada ao amigo de adolescência Ronald Berger que desde priscas eras trabalha no metrô carioca. Boa viagem, digo, leitura.


Plataforma de embarque do metrô, estação Cardeal Arcoverde, Copacabana. Sábado de manhã, ainda cedo, pouca gente pra embarcar. Só ultrapasse a faixa amarela quando o carro abrir as portas, avisa o auto-falante. Homem de uns quarenta anos, aparência de casado, dando a mão ao filho de dez anos, lança um olhar escancarado pra garota meio sardenta, cabelos compridos, castanhos, ar preocupado de quem acaba de desmanchar um namoro depois de muito conflito. Homem latino, solteiro ou casado, quando solto na rua, tem o cacoete de olhar pras mulheres bonitas – sorte delas! A garota meio sardenta retribui o olhar daquele homem maduro, homem dos sonhos para uma garota jovem, perdida na vida, à procura de uma figura de “pai” que a oriente. Não corra, a pressa pode se transformar em acidente, avisa desta vez o auto-falante. Aviso quase inaudível contra o barulho do trem que se aproxima. Abrem-se as portas do trem. O vagão que parou diante da garota meio sardenta não é o mesmo que parou diante do homem maduro. É agora que vou perdê-la de vista, pensa ele. Mas a garota faz um desvio de rota e vem para o vagão do homem maduro. Senta-se num banco. O homem com o filho sentam-se em dois bancos laterais preferenciais para gestantes, idosos e inválidos – bem de frente pra garota meio sardenta.


O homem perscruta a garota: olheiras, ar cansado, seria garota de programa que volta pra casa após noite de trabalho? Não parece, o aspecto é cândido demais. O filho ao lado lê a classificação dos times no campeonato estadual – claro que o Mengão está na dianteira, três pontos de vantagem sobre o vice. Agora, o homem maduro esquadrinha a pochete à procura de pedaço de papel – neca. Mas caneta tem, graças a Deus. Arranca um retângulo meio irregular da margem de uma página do Jornal dos Sports do filho. (Pra que você está rasgando meu jornal, pai? Pra nada!) Pensa: dou meu telefone do trabalho? Não, pode dar confusão. Escreve (letra de forma bem desenhada, pra garota entender) o endereço do e-mail do trabalho. Passadas as estações Botafogo e Flamengo, o metrô encheu. O homem maduro oferece o lugar a uma senhora de meia idade, com a segunda intenção de interceptar a garota meio sardenta caso ela salte antes dele. Mas estação após estação, a garota continua sentada. Deve ser tijucana, ou será que vai saltar na Central pra pegar o trem? Tijucana com certeza, pele branquinha, suburbana vai à praia todo domingo. Entre a Carioca e Uruguaiana, o trem dá uma freada brusca e pára dentro da galeria – o terror dos claustrofóbicos. Ah, se fôssemos só nós dois neste vagão, pensa o homem! Em poucos segundos, o trem retoma a marcha. Após a estação Presidente Vargas, o homem maduro avisa ao filho:


– Dobra este jornal que vamos saltar.

O filho continua absorto nas notícias desportivas. O homem insiste, enérgico:

– Pô, vamos saltar!

O homem maduro pega o filho pela mão e, antes de se dirigir à porta, na maior cara de pau deste mundo, entrega a papeleta com o e-mail do trabalho pra garota meio sardenta. Depois de saltarem, o filho indaga:

– O que você deu praquela mulher, pai?
– Um papel.
– Você conhece ela?
– Conheço. E não diga nada pra mamãe.



Domingo foi Dia das Mães, a família foi à churrascaria, lotada. Na segunda-feira, o homem maduro, tão logo chega ao trabalho, confere sofregamente o e-mail. Tinha de tudo: propaganda do namoro on-line, cartão virtual de uma amiga virtual, piada infame do argentino, brasileiro e da mulher gostosa no elevador... Se estivéssemos em comédia romântica hollywoodiana, teria também um e-mail em formoso “papel de carta” começando com os dizeres: “Sou a garota do metrô...” E eu, o autor, estaria milionário com a venda dos direitos autorais de minha história. Mas aqui, trata-se de realidade. O homem maduro jamais recebeu e-mail da garota meio sardenta.


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A VERDADE SOBRE STALIN



Os crimes do nacional-socialista Hitler são constantemente lembrados e exorcizados em filmes, museus do holocausto, memoriais, aniversários da libertação de Auschwitz. Mas e os crimes igualmente bárbaros do camarada Stalin?

Não só não são lembrados como em meios esquerdistas (os mesmos meios que demonizam Israel e fazem vista grossa para o festival de crimes no resto do mundo) o "Guia Genial dos Povos" tem seus simpatizantes. Afinal, não foi Stalin quem industrializou a Rússia e fez dela uma "potência"? Os "fins" justificam os "meios", dirão.

Acabo de ler (em inglês, ainda não foi traduzida para o vernáculo) a biografia de Stalin do historiador russo Edvard Radzinsky, que teve acesso aos arquivos “secretos” da finada União Soviética, e fiquei horrorizado, indignado. Assim como supostamente existiria um "Deus" que premia os virtuosos, parece que existe um "diabo" que premia os perversos e faz com que todos seus empreendimentos deem certo.

Stalin é culpado da:

· morte de milhões de camponeses ucranianos na coletivização forçada da agricultura

· morte de milhares e milhares de desafetos — primeiros a oposição menchevique e social-revolucionária, depois os próprios revolucionários bolcheviques, o generalato russo e finalmente qualquer um com quem ele "cismasse" (podia ser eu ou você)

· trabalho escravo nas grandes obras de construção de barragens, hidrelétricas, etc.

· o Gulag, descomunal campo de concentração, imortalizado pela obra de Soljenitzin

· a morte de desafetos no exílio (o assassinato de Trótski no México foi apenas a ponta do iceberg)

· a deportação forçada para regiões remotas de etnias inteiras (e se não fosse a sua morte os judeus seriam os próximos)

· o “abandono” de Varsóvia às tropas alemãs já no finalzinho da guerra, quando o Exército Vermelho poderia ter intervindo e poupado milhares de vidas, só para desmoralizar o governo polonês no exílio e viabilizar o “golpe” comunista no pós-guerra

· uso da população como “bucha de canhão” para “cansar” os invasores nazistas antes de mobilizar as tropas realmente de elite

· pacto com Hitler e invasão de metade da Polônia, dos países bálticos, além da tentativa (malograda) de abocanhar a Finlândia

No prefácio à sua sucinta biografia do ditador russo, escreve o historiador Paul Johnson: “Stalin foi um monstro, um dos maiores monstros que a civilização já produziu.”

Sou do bem. Não gosto de black block, nem de racismo, nem de antissemitismo, nem de homofobia, nem de quem abate elefantes para vender o marfim, menos ainda do fanatismo islamista. E odeio Hitler, Mao e Stalin.