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BLOG CULTURAL DO TRADUTOR, ESCRITOR, FILÓSOFO E FOTÓGRAFO IVO KORYTOWSKI. SEJA BEM-VINDO E VOLTE SEMPRE!
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GALILEU, UMA VIDA, de JAMES RESTON, Jr
O PEQUENO PRÍNCIPE, de SAINT-EXUPÉRY: UM CONTO FILOSÓFICO?
ARTIGO DE IVO KORYTOWSKI PUBLICADO NO JORNAL O TREM ITABIRANO DE MAIO DE 2022 SOB O TÍTULO "Com vocês, o livro das... De quem quiser boa leitura". Para acessar uma versão PDF do jornal, clique aqui.
Se bem que o livro contraste o universo ingênuo da criança com o mundo às vezes exageradamente sério dos adultos – e foi gestado numa época negra, em que essa “seriedade” causou grande destruição, a Segunda Guerra Mundial –, não foi escrito especificamente para o público infanto-juvenil (como foi, digamos, Reinações de Narizinho), embora seja lido com prazer por esse público. É mais do que isto. É uma literatura alegórica, simbólica, de sátira aos costumes, um tipo de literatura com longa tradição.
Antigamente não se podia sair criticando os reis, as classes dirigentes, a igreja, sob risco de ser queimado vivo ou encarcerado. A crítica social tinha de ser feita de modo sutil, velado, através da alegoria e da sátira. É o caso das Viagens de Gulliver, que podem ser lidas como uma aventura fantástica, mas que no fundo são uma sátira social com profunda carga crítica.
A gente pode fazer várias leituras de O Pequeno Príncipe. Primeiro, vejo este livro como uma crítica à limitação, ao espírito tacanho da maioria dos seres humanos. Vivemos num universo inconcebivelmente grande, complexo, cheio de possibilidades e, no entanto, ficamos (não digo todo mundo, mas a maioria) presos em nossos mundinhos cotidianos, como se vivêssemos nos pequenos planetas (ou asteroides) onde habitam o vaidoso, o ébrio, o acendedor de lampiões, o homem de negócios, o rei, os personagens da primeira parte de O Pequeno Príncipe. Esta é uma leitura que podemos fazer, de sátira à tacanhez, à limitação humana. Mas o livro é mais do que isto.
Eu situaria O Pequeno Príncipe dentro da tradição da novela filosófica francesa cujo grande mestre foi Voltaire. Novela não no sentido de novela da televisão, mas de uma obra literária mais longa que o conto, mas menos longa que o romance. Assim como no Cândido de Voltaire, temos o personagem que, com sua aparente ingenuidade, consegue enxergar mais fundo que as pessoas normais e acaba desconcertando-as. Quando o vendedor de pílulas contra a sede apregoa que, com seu produto, as pessoas terão mais tempo livre, o “ingênuo” principezinho responde que, se tivesse mais tempo livre, iria procurar um poço d’água.
Especificamente, O Pequeno Príncipe guarda certa semelhança com o Micrômegas de Voltaire, que é a história de um gigante de Sirius que decidiu aventurar-se pelo Universo, visita o Sistema Solar e vem parar na Terra, dando a volta ao mundo e discutindo filosofia com os seres humanos. Também o principezinho visita vários asteroides/planetas e discute filosofia com os seres humanos. Quando ele diz que “o essencial é invisível aos olhos” está retomando a teoria de Platão do mundo das ideias. E quando diz que “não se vê bem a não ser com o coração” está refletindo o pensamento de Pascal de que “o coração tem razões que a própria razão desconhece”. E ainda tem gente que acha que é um livro bobinho ou um livro de autoajuda. Bobinho uma ova.
Claro que este é um livro que permite mil leituras diferentes. Há quem veja o principezinho como um anjinho que caiu na Terra. E tem outra coisa: o príncipe morre, supostamente picado pela cobra, para poder subir de volta ao seu planeta sem ser atrapalhado pelo peso do seu corpo. O autor o vê “tombando devagarinho como tomba uma árvore”. Mas tem certeza de que voltou ao seu planeta porque, ao raiar do dia, não encontrou seu corpo. É a história da paixão e ressurreição de Cristo! Só que o “planeta” de Cristo é o reino dos céus!
Em seus voos pelo correio francês entre Buenos Aires e a França, Saint-Exupéry pousava para reabastecer no bairro florianopolitano de Campeche, que seria corruptela de champ de pêche, campo de peixe, como o escritor (que chamavam de “seu Peri”) designava a área. Pelo menos é o que contam aos turistas que visitam a aprazível capital santa-catarinense. Se non è vero, è ben trovato.
VIAGEM A OURO PRETO, MARIANA E CONGONHAS (26-30/4/2022)
Que este “diário de viagem” sirva de orientação & inspiração àqueles que planejam explorar essas encantadoras cidades históricas mineiras.
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Vista de Ouro Preto, Armand Julien Pallière, óleo sobre tela, 1820, Museu da Inconfidência |
Repousemos no centro de Ouro Preto:
São Francisco de Assis! Igreja ilustre, acolhe,
À tua sombra irmã, meus membros lassos.
(para baixar um pdf com seus poemas clique aqui)
Em Ouro Preto ninguém se defende contra a agressão da poesia.
ouro preto raiando de tarde e outono
vila rica ladeira cochilo e ressono
ouro preto a cidade e o lombo da mula
vila rica eriçada nas eras da bula
ouro preto cantiga de avante menino
vila rica amanhando em redobres de sino
Geraldo Reis, Pastoral de Minas, 21, prêmio de poesia do concurso Cidade de Belo Horizonte - 1981. A íntegra do poema pode ser lida aqui.
Mirante do Morro de São Sebastião. As várias igrejas se sobressaem em meio às telhas do casario. |
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... evocando um Rio Antigo que hoje só sobrevive em velhas litografias. |
Não se pode dizer de Ouro Preto que seja uma cidade morta. [...] Ouro Preto é a cidade que não mudou, e nisso reside o seu incomparável encanto. Passada a época ardente da mineração (que foi, de resto, um arraial de aventureiros, a sua idade mais bela como fenômeno de vida), e a salvo do progresso demudador, pelas condições ingratas da situação topográfica, Ouro Preto conservou-se tal qual, em virtude mesma da sua pobreza, aquela pobreza que já por volta de 1809, segundo depoimento de Mawe, fazia trocarem-lhe por escárnio em Vila Pobre o nome de sua fundação em 1711, que era o de Vila Rica de Albuquerque. Na sua decadência econômica, que remonta à segunda metade do século XVIII, não houve dinheiro para abrir ruas, alargar becos, restaurar monumentos. Nas reparações dos prédios envelhecidos a economia levou sempre a alterar o menos possível. Em casas novas ninguém pensava. Elas são raríssimas na cidade, que enfeiam pelo contraste chocante com o resto da edificação.
... não houve dinheiro para abrir ruas, alargar becos |
Primeira foto, chegando em Ouro Preto, antes de rumarmos ao nosso hotel. Bom começo! |
Igreja de Nossa Senhora das Mercês e Misericórdia |
O mingau a gente come pelas bordas. Assim, em vez de atacar diretamente os cartões postais da cidade, Museu da Inconfidência, Casa dos Contos, fizemos um trajeto inicial começando pelas beiradas e penetrando no âmago de forma lenta e gradual. Assim sendo, do Hotel Colonial retornamos à praça da Rodoviária, voltando a contemplar a vista magnífica, nossa primeira visão de Ouro Preto que já nos extasiara na ida ao hotel, da amurada defronte à Igreja de Nossa Senhora das Mercês e Misericórdia. Da Rodoviária, voltamos a adentrar esse baluarte do barroco pela Rua São Francisco de Paula, detendo-nos longamente no alto da velha escadaria defronte à Igreja de São Francisco de Paula, igreja tardia cujas obras se arrastaram pelo século XIX, que estava fechada.
cemitério da igreja |
Da igreja descemos por uma ladeira tortuosa e erma (onde à noite talvez ainda vague o último dos fantasmas), até a movimentada Rua Getúlio Vargas, e pegamos a direita rumo à igreja curvilínea de Nossa Senhora do Rosário, que teríamos visitado se aberta estivesse. Dali nos enfiamos pela Rua Alvarenga, antigo caminho de entrada e saída de Vila Rica, então chamada Rua das Cabeças, nome sinistro cuja origem “vem de que aí se fincavam na ponta de estacas as cabeças dos míseros enforcados pelas esquinas dos becos [...] para servir de exemplo e escarmento aos povos”, como conta Bernardo Guimarães na obra supracitada.
Nas subidas, haja fé e fôlego |
Avançamos, passando pela singela capelinha do Bom Jesus da Pedra Fria, velhos chafarizes coloniais, casas de antanho (como o conjunto de sete casas de paredes-meias do século XVIII construídas em adobe que serviam de pouso para os romeiros), Igreja do Bom Jesus de Matosinhos, Colégio Arquidiocesano, até chegarmos à casa onde morou Bernardo Guimarães, hoje sede do FAOP, Fundação de Arte de Ouro Preto, que só vimos de fora, pois (com exceção de uma pequena biblioteca) não está aberta à visitação.
singela capelinha do Bom Jesus da Pedra Fria |
velhos chafarizes coloniais: Chafariz das Cabeças |
conjunto de sete casas de paredes-meias do século XVIII construídas em adobe que serviam de pouso para os romeiros |
casa onde morou Bernardo Guimarães |
Igreja do Bom Jesus de Matosinhos, Colégio Arquidiocesano |
E após uma sesta no Hotel Colonial encaramos a íngreme subida ao Mirante do Morro de São Sebastião, com que abrimos este relato. Cães que ladram mas não mordem (como reza o ditado mas, observava meu sábio pai, “será que os cães sabem disto”?) deram um sustinho, e daqui do alto, o sol já tendo descambado atrás da linda serra, vemos as luzes se acendendo aos poucos por essa cidade que é uma joia do barroco brasileiro, e embora nas encostas dos morros construções não tão coloniais assim tenham se agregado ao conjunto urbano, daqui de cima tudo forma um todo harmônico. Ademais, todas as casas, por mais simples, ostentam portas e janelas de madeira, nada de esquadria de alumínio, deve ser postura municipal. O ar nesses altos mineiros tem um frescor de Alpes suíços. Lá de baixo sobem sons de sinos de igreja, cães ladrando, motos. Aqui em cima, ruído de um ou outro carro vencendo o aclive. Do mato, sons de insetos. Minas montanhosa, pedregosa, luminosa.
o sol já tendo descambado atrás da linda serra |
íngreme subida |
nas encostas dos morros construções não tão coloniais assim |
Terminamos nosso primeiro dia em Ouro Preto saboreando o pão com linguiça e a cerveja Ouropretana num simpático bar na esquina da Rua Cláudio Manoel com a Praça Tiradentes.
cerveja Ouropretana |
Panorama de Mariana, Alberto Delpino, óleo sobre tela, 1931 |
“A última vez que estive em Mariana foi no ano da graça de 1968.” Estava sentado em um banco da Praça Gomes Freire quando escrevi esta frase no meu caderninho.
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“A última vez que estive em Mariana foi no ano da graça de 1968”: slide que tirei lá naquela ocasião. |
Mariana, primeira vila, primeira cidade, primeiro bispado e arcebispado, primeira capital de Minas, segundo o prospecto que apanhei num centro de atenção ao turista. O nome, homenagem à rainha Maria Ana D’Áustria, esposa do rei de Portugal D. João V em 1745, quando a Vila de Nossa Senhora do Ribeirão do Carmo foi elevada a cidade com o nome de Mariana. Ares de cidade do interior drummondiana. “Um homem vai devagar. / Um cachorro vai devagar. / Um burro vai devagar. / Devagar... as janelas olham. / Eta vida besta, meu Deus.”
as janelas olham |
No centro da praça, o coreto. Nos diversos bancos espalhados pela praça, grupo conversando animado, casal namorando, pessoas sós manuseando celulares. Michela e eu tínhamos sentado naquela praça para comer um açaí. O Leonardo, recepcionista noturno no nosso hotel que nos dias de folga trabalha como motorista de aplicativo (caso precise de seus serviços: 31 8671-9630), nos havia trazido ao centro histórico de Mariana e havíamos combinado que ligaríamos à tarde para nos pegar de volta.
A Casa da Câmara e Cadeia estava em restauração |
“O largo onde estão as igrejas do Carmo (direita) e S. Francisco (esquerda) é o mais puro, o mais comovente largo de igreja do Brasil” |
Igreja de Nossa Senhora dos Anjos, de uma confraria de homens pardos, com frontispício chanfrado |
A Casa da Câmara e Cadeia estava em restauração, a Igreja de São Francisco de Assis, fechada, mas pudemos adentrar a Igreja de Nossa Senhora do Carmo, com sua fachada singular que destoa do padrão, torres redondas, sobre a portada o emblema carmelita encimado por dois anjos, talha rococó. “O largo onde estão as igrejas do Carmo e S. Francisco é o mais puro, o mais comovente largo de igreja do Brasil”, escreve Afonso Arinos no livro já citado. De lá subimos pela Rua Dom Silvério, passando pela Igreja de Nossa Senhora dos Anjos, de uma confraria de homens pardos, com frontispício chanfrado, até a Igreja de São Pedro dos Clérigos, a cavaleiro da cidade. Igreja com interessante planta em duas ovais entrelaçadas, desenho depois repetido na igreja de Nossa Senhora do Rosário em Ouro Preto. Sua construção foi uma verdadeira “obra de igreja”: começou em meados do século XVIII, sofreu várias paralisações, até que na década de 1920 foram finalmente concluídas as torres e frontão. Do mirante em frente à igreja pode-se “admirar convenientemente a cidade”, como fizera Afonso Arinos em 1936.
Do mirante em frente à igreja pode-se “admirar convenientemente a cidade” |
Igreja de São Pedro dos Clérigos, a cavaleiro da cidade |
Igreja de São Pedro dos Clérigos: nave elíptica, desprovida de ornamentação |
Descemos pela Rua Dom Viçoso, compramos um açaí, fazia calor, sentamo-nos na praça a fim de o saborearmos, gostamos tanto que Michela voltou para comprar mais um, e eu fiquei guardando o lugar sombreado. Peguei meu caderninho tencionando escrever umas mal traçadas linhas sobre essa aprazível cidadezinha pioneira na região aurífera mineira, cheguei a escrever uma frase que abre o relato deste segundo dia de viagem pelas Minas Gerais, Michela voltou mais rápido do que eu esperava, pus o caderninho de lado, devoramos nosso segundo açaí e prosseguimos o passeio.
Praça da Sé, tão diferente da praça homônima em São Paulo! |
Catedral Basílica de Nossa Senhora da Assunção (Sé de Mariana) |
Casa setecentista |
HÃO DE CHORAR POR ELA OS CINAMOMOS...Hão de chorar por ela os cinamomos,Murchando as flores ao tombar do dia.Dos laranjais hão de cair os pomos,Lembrando-se daquela que os colhia.As estrelas dirão – “Ai! nada somos,Pois ela se morreu silente e fria...”E pondo os olhos nela como pomos,Hão de chorar a irmã que lhes sorria.A lua, que lhe foi mãe carinhosa,Que a viu nascer e amar, há de envolvê-laEntre lírios e pétalas de rosa.Os meus sonhos de amor serão defuntos...E os arcanjos dirão no azul ao vê-la,Pensando em mim: – “Por que não vieram juntos?”
Terminada a visita à casa do poeta simbolista que, à semelhança do pintor Van Gogh, só veio a alcançar a merecida fama após a morte (“Sua vida foi modesta. [...] A semi-obscuridade, senão a obscuridade, foi-lhe o ambiente de cada dia”, escreveu Abgar Renault), voltamos à mesma praça Gomes Freire, onde já estivéramos, para chamar e aguardar nosso motorista. Abri a bolsa para pegar meu caderninho e prosseguir as anotações do dia. Tinha sumido. Revirei a bolsa de alto a baixo. Nada. Voltei à casa do poeta para ver se havia deixado lá. Neca. Voltei a Ouro Preto sem o caderninho. Sem as anotações do primeiro dia de viagem. Mas uma boa alma, daquelas que se existe o céu irão para lá, achou o caderno no banco da praça, viu que seu dono estava hospedado no Hotel Colonial de Ouro Preto e se deu ao trabalho de vir à cidade vizinha entregá-lo na recepção do hotel! Reza a lenda judaica que, enquanto existirem ao menos dez justos no mundo, Deus não o destruirá!
Conquanto próxima a Ouro Preto e com origens semelhantes no ciclo do ouro, Mariana é diferente. Mais pacata, ar de cidade de interior, enquanto em sua cidade-irmã pululam turistas e estudantes. Contrastando com o emaranhado ouro-pretano, o traçado das ruas marianenses é simétrico, planejado. E o relevo com ondulações mais suaves, aclives e declives menos acentuados.
Telhados e torres da Igreja de N.S. do Pilar |
Dito isto, vamos à programação do dia: esplendorosa Igreja de Nossa Senhora do Pilar (partindo da Praça Tiradentes e descendo por íngremes ladeiras, mas na volta subindo por um caminho alternativo mais suave); recém-inaugurado e magnífico Museu Boulieu de arte sacra barroca universal; almoço mineiro no mui recomendado Bené da Flauta; meio sem graça Mirante das Lajes.
MATRIZ DE NOSSA SENHORA DO PILAR (Praça Monsenhor Castilho Barbosa)
Sem adro, comunica-se diretamente com a rua defronte, em relação à qual está ligeiramente desalinhada |
o visitante surpreende-se com a majestosa nave de forma elipsoidal |
Todos os retábulos têm coroamento em dossel e são integralmente dourados |
Sacristia: pintura do teto |
MUSEU BOULIEU (Rua Padre Rolim, 412, no caminho do Centro para a Rodoviária)
O casal Boulieu |
Maria Helena de Toledo, nascido em Bebedouro, em São Paulo, formou-se em piano no Conservatório de Belo Horizonte. Os professores, considerando o seu talento, aconselharam-na a mudar-se para o Rio de Janeiro para continuar seus estudos.
Maria Helena aperfeiçoava os estudos de piano enquanto trabalhava na Presidência da República, no secretariado do presidente Getúlio Vargas e, em seguida, de seu sucessor eleito, Juscelino Kubitschek.
Jacques Boulieu, francês de Lyon, especialista em tecelagem e impressão de tecidos em seda, sempre gostou de música clássica. Trouxe mais de 20 quilos de discos quando, em 1951, se mudou para a Argentina e, em seguida, para o Brasil.
Após quatro anos em São Paulo, Jacques trabalhou no Rio, na Jean Manzon filmes, produtora de películas documentárias, onde fez amizade com Monique, preceptora das filhas Kubitschek.
Apaixonada por música, Monique tinha livre acesso ao camarote presidencial do Teatro Municipal. Jacques, muitas vezes, a acompanhava.
Certo dia de 1959, Monique avisou que uma amiga também estaria no camarote: “Mas você vai ver... Ela é muito simpática...”
Quando entraram no camarote, Maria Helena já estava lá. Virou-se, olhou Jacques com seus belos olhos azuis. O resultado foi fulgurante.
Um ano depois, Jacques e Maria Helena se casaram na Igreja da Glória. Juscelino foi padrinho da noiva. Já se passaram mais de 60 anos de felicidade...
Nossa Senhora do Rosário, de la Montera, sécs. XVIII-XIX, Altiplano andino, óleo sobre tela |
Sant'Ana Mestra, séc. XVIII, Pernambuco, escultura em madeira policromada |
O museu abriga o que talvez seja a maior coleção privada brasileira de arte sacra, com pinturas, esculturas, oratórios, do Altiplano andino, América Central, Bahia, Minas Gerais, nordeste brasileiro, Índia. Admirável que um único casal tenha conseguido juntar tamanha coleção e, não tendo filhos, resolvido compartilhá-la com o resto de nós!
BENÉ DA FLAUTA (Rua São Francisco de Assis, 32)
Feijão tropeiro: só até as 17 horas |
linda pintura de Ouro Preto de grande dimensão por Milton Passos na parede |
MIRANTE DAS LAJES
Ao contrário do Mirante de São Sebastião, situado em subida íngreme e tranquila, de pouco trânsito (como descrevi no primeiro dia), o Mirante das Lajes situa-se em rua de trânsito pesado, desagradável de percorrer a pé. Enquanto do Mirante de São Sebastião você vê (além do centro) a parte oeste da cidade, aqui você vê (idem) o lado leste. Foi mais ou menos daqui que Pallière pintou sua famosa vista que abre esta postagem.
Vista do Mirante das Lajes: Igreja de Nossa Senhora das Mercês e Perdões, Museu da Inconfidência e Igreja de Nossa Senhora do Carmo |
No percurso sinuoso de ida e volta em meio à serraria, o motorista contou (com aquela fala gostosa do mineiro, mas sem os proverbiais “trem” e “uai” e “sô”, que não ouvi em lugar algum – caíram em desuso?) causos de ricos topázios vermelhos encontrados em quintais de casas, uma moradia que desmoronou por ter sido erguida sobre uma antiga mina de ouro, prospecção clandestina de minerais, dado que a mineração é restringida devido aos danos causados ao meio ambiente – vimos no percurso uma encosta degradada pela exploração mineral.
No alto de um morro ergue-se o Santuário do Bom Jesus de Matosinho |
No alto de um morro (dentre os tantos morros que compõem o relevo ondulado dessa região brasileira tão rica em minérios) ergue-se o Santuário do Bom Jesus de Matosinho, patrimônio legado à humanidade (de fato, o santuário foi eleito patrimônio mundial pela UNESCO) pela resiliência de um artista que, à semelhança de Beethoven, enfrentou uma doença cruel que tentou tolhê-lo em sua capacidade criativa: Aleijadinho. Segundo Manuel Bandeira, “inegavelmente, o maior arquiteto e estatuário que já tivemos”, que, se houvesse vivido na Europa, “teria dado motivo a toda uma biblioteca”. Suas estátuas dos profetas, ao ar livre, na escadaria que dá acesso ao adro, sob as intempéries, bem como as esculturas em madeira que compõem os Passos da Paixão nas capelas ao longo do aclive defronte à igreja, são vitórias do espírito brasileiro e humano. Rivalizam com as esculturas de mestre Michelangelo – na Europa, onde rondam loucos e terroristas, os profetas estariam protegidos por vidro à prova de bala, caso do Moisés de Michelangelo em Florença, mas aí não exerceriam o mesmo impacto.
Augusto da Silva Telles assim descreve a fachada da igreja (clicando numa palavra em azul claro você acessa uma explicação ilustrada, uma oportunidade de ampliar sua cultura e vocabulário no campo da arquitetura sacra): “A igreja obedece ao plano setecentista de Minas Gerais, com nave única, torres sineiras salientes às ilhargas e capela-mor contornada por corredores que dão acesso à sacristia localizada nos fundos. A fachada é ladeada por dois pares de pilastras que se estendem até a cimalha e tem, ao centro, uma portada singela, formada por quartelões que suportam elementos de cimalha, acima da qual volutas envolvem uma cartela. Todo esse conjunto possui, aos lados, as janelas no nível do coro. Acima da cimalha da igreja, que percorre toda a frontaria, eleva-se um frontão barroco margeado por curvas e volutas. Lateralmente, assentam-se as sineiras esguias, encimadas por calotas com arestas salientes.” (em Patrimônio Construído: As 110 mais belas edificações do Brasil, à venda na Amazon).
uma portada singela, formada por quartelões que suportam elementos de cimalha, acima da qual volutas envolvem uma cartela |
Na capela-mor, o retábulo é mais rígido |
Anjo tocheiro |
As paredes laterais e teto da nave são adornados com pinturas sacras de Nepomuceno Correia e Castro |
impressionantes ex-votos, alguns de mais de cem anos atrás |
Em Congonhas, uma senhorinha, Lucimar, convidou a Michela a entrar em sua própria casa para ver seus gatos – ela acolhe gatos abandonados – e a presenteou com um queijo minas artesanal – hospitalidade mineira. Na estrada, em duplicação, durante longa meia hora tivemos que aguardar a liberação do tráfego, e ninguém fica buzinando nem tenta furar fila – placidez mineira.
Telhados ouro-pretanos e torre da igreja de N.S. da Conceição |
Retornados a Ouro Preto, repetimos o feijão tropeiro no Bené da Flauta e, barrigas cheias, fizemos a digestão caminhando até a Igreja de Nossa Senhora da Conceição (fechada), passando pelo Chafariz de Marília no paredão do antigo solar onde residiu a musa do poeta inconfidente, daí subindo a ladeira rumo à Igreja de Santa Ifigênia (fechada), de lá descendo até a Capela de Padre Faria (fechada) ao anoitecer e, já noite caída, trilhamos o caminho de volta ao hotel, que andar é preciso, a certa altura surpreendidos pelo som de instrumentos musicais ensaiando.
Igreja de Santa Ifigênia |
Chafariz de Marília |
Ladeira acima |
Calçamento de pedras |
Capela de Padre Faria |
5o DIA: ÚLTIMO DIA EM OURO PRETO
O que é que Ouro Preto tem?[...]E ali na rua das Flores,na varandinha do bar,tem a figura risonhado grande pintor Guignardque Deus botou neste mundopara Ouro Preto pintar.Cecília Meireles no álbum de dedicatórias do pintor
MUSEU CASA GUIGNARD (Rua Conde de Bobadela, 110)
Paisagem imaginária (detalhe) |
Apaixonado por Ouro Preto, lá passou os últimos meses da vida, depois que foi “despejado” do casarão do seu médico Santiago Americano Freire. Tendo acolhido seu paciente alcoólatra, solitário e incapaz de administrar seu talento, sofreu uma campanha da imprensa que o acusou (falsamente) de se apropriar da renda da venda dos quadros do artista, subitamente valorizados. Em Ouro Preto Guignard veio a falecer e foi enterrado. Uma curiosidade do museu são os 111 cartões que escreveu/desenhou na década de 1930 para Amalita Fontenelle, uma paixão platônica. Nunca chegou a enviá-los, e acabaram sendo adquiridos em 1987 pelo governo mineiro e incorporados ao acervo do museu.
Um dos cartões escritos para Amalita Fontenelle mas jamais enviados |
IGREJA DE NOSSA SENHORA DO CARMO E MUSEU DO ORATÓRIO ANEXO
Oratório ermida, Nossa Senhora da Purificação, Minas Gerais, séc. XVIII/XIX |
Oratório de salão, Santo Antônio, Minas Gerais, século XVIII |
A Igreja de Nossa Senhora do Carmo, típica do rococó religioso mineiro, foi projetada por Manuel Francisco Lisboa, pai do Aleijadinho, risco depois revisado pelo filho, que também executou a portada da fachada e o lavabo da sacristia, em pedra-sabão. Única igreja de Ouro Preto com painéis de azulejos no altar-mor, importados de Lisboa.
Igreja de Nossa Senhora do Carmo, típica do rococó religioso mineiro |
Painel de azulejos (detalhe) |
MUSEU DA INCONFIDÊNCIA
Museu da Inconfidência na antiga Casa da Câmara e Cadeia |
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Casa da Câmara e Cadeia em gravura de Augusto Riedel de 1868 |
Em torno das cinco e meia vimos, do adro da Igreja do Carmo, o sol se pondo atrás da serra. Pouco depois, apanhamos a mochila no hotel e rumamos a pé, já noite caída, à Rodoviária para voltarmos ao dia-a-dia paulistano. Mas as cidades históricas mineiras tocaram nossos corações e deram um combustível ao nosso por vezes esmaecido orgulho pela terra natal. “Criança! não verás nenhum país como este!”