TEXTO EXTRAÍDO DO ENCARTE DO VOLUME X DA COLEÇÃO OS PENSADORES DA ABRIL CULTURAL PUBLICADO EM 1972 “Eu não lhe dei, Adão, nem um
lugar predeterminado, nem quaisquer prerrogativas, a fim de que você possa
tomá-los e possuí-los através de sua própria decisão e de sua própria escolha.”
Assim Deus fala na Oração Sobre a Dignidade do Homem, do pensador italiano
Pico della Mirandola (1463-1494). Naquelas palavras está apresentado um dos
temas centrais do humanismo renascentista: a liberdade do homem, que o torna um
ser capaz de criar seu próprio projeto de vida.
Movimento literário e filosófico
originado na Itália – na segunda metade do século XIV – e depois difundido em
outros países da Europa, o humanismo constituiu um dos fatores fundamentais do
surgimento da cultura moderna. Nascido nas cidades e comunas que, na época,
lutavam por sua autonomia, o humanismo repudiou a ordem e a hierarquia cósmicas
contidas na visão de mundo medieval e resguardadas pelo Império (o Sacro
Império Romano-Germânico), pela Igreja e pelo feudalismo. Dentro dessa ordem
hierárquica o homem ocupava lugar insignificante e inalterável, imerso num
mundo que era visto como ocasião para tentações e pecado. Em contraposição à
mentalidade medieval, os humanistas exaltarão a dignidade do homem, proclamando
que sua liberdade pode e deve ser exercida tanto em relação à natureza quanto à
sociedade. Como aspecto do Renascimento, o humanismo reintegra o homem na
natureza e na história, reinterpretando-o em função dessas coordenadas.
O humanismo
O termo “humanismo” é derivado de
humanitas, que no tempo de Cícero
(106-43 a.C.) designava a educação do homem enquanto considerado em sua
condição propriamente humana, correspondendo ao sentido da palavra grega paideia: a educação por meio de
disciplinas liberais, relativas a atividades exclusivas ao homem e que o
distinguiam dos animais. A autonomia do ser humano é buscada pelos humanistas
da Renascença por meio de uma volta à Antiguidade, a seus modelos e a suas
diretrizes pedagógicas. As chamadas “humanidades” – poética, retórica,
história, ética e política – passam desse modo a constituir, sob a inspiração
dos antigos, a base de uma educação destinada a preparar o homem para o
exercício de sua liberdade. Liberdade e capacidade humana de atuar sobre o
mundo são temas fundamentais dos humanistas, aparecendo não apenas em Pico
della Mirandola, como também em Gianozzo Manetti (1396-1459), em Marsilio
Ficino (1433-1499), e ressurgindo nos humanistas franceses posteriores, como
Charles Bouillé (1475-c. 1553). Mais tarde é que as especulações marcadas pela
exaltação da capacidade humana serão contrabalançadas pela nota de ceticismo
que o humanismo assumiu no pensamento de Montaigne (1533-1592), de Pierre
Charron (1541-1603) e de Francisco Sánchez (1552-1581).
Outro fundamento do humanismo
renascentista foi a convicção de que o mundo natural é o reino do homem. Esse
naturalismo conduziu, paralelamente à afirmativa do valor espiritual do homem e
que o torna livre, à exaltação do valor do corpo e de seus prazeres. Opondo-se
ao ascetismo medieval, humanistas italianos, como Lorenzo Valla (1407-1457),
retornam às teses do epicurismo antigo de que o bem é o prazer e de que a
virtude consiste num cálculo de prazeres. Em nome do hedonismo, Valla inclusive
recusa a superioridade religiosa da vida monástica: os verdadeiros seguidores
de Cristo seriam os que dedicam suas atividades a Deus, pertençam ou não a
ordens religiosas. O combate ao ascetismo e à vida monástica é empreendido
também por Gianozzo Manetti, Coluccio Salutati (1331-1406) e Poggio Bracciolini
(1380-1459). A afirmação da naturalidade do homem leva ainda os humanistas a
proclamar a superioridade da vida ativa sobre a contemplativa, e da filosofia
moral sobre a física e a metafísica. “A filosofia moral é, por assim dizer, o
nosso território”, escreve Leonardo Bruni (c. 1370-1444). A mesma idéia é
defendida por Matteo Palmier (1406-1475) e por Bartolomeo de Sacchi
(1421-1481). Nesse sentido é que o humanismo abriu caminho para a obra de
Maquiavel (1469-1536) – em muitos aspectos considerado humanista.
O retorno à Antiguidade, que
inspira o humanismo renascentista, confere-lhe agudo senso de historicidade, de
que carecia a cultura medieval, construída em função do ideal de
intemporalidade. A defesa da eloquência dos antigos, por exemplo, resultou para
os humanistas num esforço de recuperação de linguagem genuína da época clássica
e num laborioso empenho para restaurá-la de sob as deformações sofridas no
decorrer da Idade Média. Os humanistas redescobrem a perspectiva histórica,
fazendo no plano da temporalidade uma mudança correspondente à descoberta, ao
nível do espaço, da perspectiva óptica pela pintura renascentista.
A rejeição do ascetismo e das
filigranas teológicas não significou a adoção, pelos humanistas, de uma posição
necessariamente antirreligiosa ou anticristã. O que fazem é rediscutir temas
religiosos, como a providência de Deus e a natureza e o destino da alma, com o
objetivo de defender a liberdade humana e a capacidade do homem de agir sobre o
mundo e modificá-lo de acordo com suas necessidades. Por outro lado, no exame
de problemas religiosos, deram preferência a dois temas que pareciam, na época,
os mais importantes: a função civil da religião e a tolerância religiosa. A
primeira associava-se ao naturalismo: na obra Sobre a Dignidade e a
Excelência do Homem, Gianozzo Manetti defende a tese de que a Bíblia não
contém apenas uma proclamação da felicidade celeste, mas encerraria também uma
mensagem e um programa relativos à felicidade terrena. Por isso mesmo é que
para Manetti, como para Valla e outros, a função fundamental da religião seria
relativa à vida civil e à atividade política.
A tolerância religiosa constitui
outro traço típico do humanismo renascentista. Nos séculos posteriores – XVI e
XVII – a tolerância resultará de guerras religiosas que acabarão por determinar
a coexistência pacífica de vários credos, que todavia permanecem distanciados e
irredutíveis. A tolerância preconizada pelos humanistas era de outro tipo, pois
sustentada pela convicção de que haveria uma unidade fundamental subjacente às
diversas religiões. Isso implicava ainda a intrínseca identidade entre
filosofia e religião. Perguntava Leonardo Bruni: “São Paulo ensinou algo mais
do que foi pensado por Platão?”. Seguindo a linhagem da Patrística – a doutrina
dos primeiros padres da Igreja –, os humanistas consideravam que o cristianismo
teria levado à sua plenitude a sabedoria expressa pelos filósofos antigos: a
Razão (logos) grega seria uma
antecipação do Verbo (Logos) que se
encarna em Cristo. O retorno às origens significava, assim, para o humanismo da
Renascença, a possibilidade de conciliar diferentes concepções filosóficas
(como pretende Pico della Mirandola com o platonismo e o aristotelismo) e ainda
harmonizá-las com a Cabala, a magia, a Patrística e a Escolástica. Com isso,
poder-se-ia retornar às fontes de diversas correntes filosóficas e recuperar a
paz religiosa que fora destroçada pelas disputas teológicas. A tolerância
religiosa, sustentada por argumentos que já então exprimem o despontar da
mentalidade moderna, ressurge como um dos ideais do humanismo de Erasmo de
Rotterdam e de Thomas More.
Numa prisão espiritual
Em agosto de 1495, um frade
agostiniano, vindo de Cambrai, chegou a Paris com o objetivo de obter o título
de doutor em teologia. Tinha sido contemplado com uma bolsa de estudos, mas os
estipêndios, embora recebidos com regularidade, eram tão parcos que foi
obrigado a alojar-se na domus pauperum do colégio Montaigu. Situado no Quartier
Latin, sobre a colina de Sainte Geneviève [Santa Genoveva], o edifício era
triste e sombrio, os dormitórios sujos, as paredes nuas e geladas. As refeições
eram péssimas: frequentemente os ovos e a carne eram servidos quase estragados
e o vinho mais parecia vinagre.
Tudo isso poderia ser visto com
certa naturalidade por quem ainda tivesse uma visão medieval do mundo,
centralizasse a vida em torno do espiritual e negasse o valor das coisas
sensíveis. Mas o frade recém-chegado não pensava e nem sentia desse modo. Para
ele o mundo material não era necessariamente residência do pecado e reino da
contaminação, e cuidar do bem-estar físico não significava afastamento da
bem-aventurança eterna.
Pior que o desconforto ou os
jejuns, eram os sofrimentos pelos quais tinha que passar a inteligência diante
do ensino escolástico, impregnado de sutilezas insípidas, de exagerado
formalismo e limitado a discutir temas irrelevantes.
O colégio Montaigu era, na
verdade, uma verdadeira prisão espiritual, que poderia ter sido útil para
Inácio de Loyola (1491-1556), que ali suportou, durante vinte anos, uma
disciplina de castigos corporais para educar a vontade. Mas era absolutamente
repugnante para a natureza nervosa, independente e moderna do jovem frade
Erasmo. Ele era exemplo vivo de uma nova ordem de coisas: da mentalidade
renascentista, da qual veio a se tornar um dos maiores representantes.
Sua mãe chamava-se Margaretha e
era filha de um médico de Zevenbergen. Seu pai, Gerardus, homem culto e
relacionado com representantes do humanismo nos Países Baixos, era um padre com
funções itinerantes em diversas paróquias da cidade de Gouda, próxima a
Rotterdam. A ligação amorosa com Margaretha não era lícita, mas as regras da
vida cristã estavam enfraquecidas, naqueles tempos, e os rigores da moral
agostiniana não eram mais obedecidos com tanta severidade. Dessa ligação
resultou um primeiro filho, chamado Pieter. Poucos anos depois viria à luz
Erasmo, num dia e mês conhecidos com certeza (passagem de 27 para 28 de
outubro), mas num ano que não se sabe ao certo qual tenha sido: os biógrafos
oscilam entre 1465 e 1469. É certo, entretanto, ter o fato ocorrido em Rotterdam,
para onde Margaretha fora enviada a fim de guardar a discrição necessária em
tais ocasiões. Inicialmente a educação de Erasmo foi confiada a um preceptor,
com o qual aprendeu as primeiras letras. Mais tarde, em 1475, o pai
providenciou seu ingresso na escola dos Irmãos da Vida em Comum, em Deventer.
Era um estabelecimento famoso do norte do continente, no qual se respirava a
atmosfera humanística que imperava na Renascença.
Em Deventer Erasmo encontrou um
dos melhores ambientes intelectuais da época, recebendo influência de
humanistas como Johannes Sintheim e Alexander Hegius (1433-1498), e viveu feliz
com a mãe e o irmão. Contudo, esses anos de bem-estar estavam fadados a
terminar relativamente cedo: Margaretha faleceu e ele foi obrigado a voltar
para Gouda. Logo depois, o pai também morreu, vitimado por uma das pestes que,
naquele tempo, assolavam a Europa periodicamente. Pieter e Erasmo foram então
enviados pelos tutores a Hertogenbosch, onde encontraram uma disciplina de
claustro extremamente desagradável. Não podiam, no entanto, desobedecer aos
tutores e concluíram os estudos, esperando ansiosamente o momento de se
tornarem livres. A solução era entrar para alguma ordem religiosa. E, de fato,
Pieter ingressou no mosteiro de Sion, perto de Delft, enquanto Erasmo
tornava-se noviço agostiniano em Steyn [ou Stein]. Cinco anos depois (1492) era
ordenado sacerdote e concluía um longo período dedicado ao estudo dos autores
clássicos, gregos e latinos, solidificando sua formação humanística. Por outro
lado, os rigores da vida monástica acenderam em Erasmo a paixão pela liberdade
pessoal e a irritação com tudo aquilo que pudesse restringi-la Formaram-se
assim os traços essenciais de um complexo caráter integralmente moderno, que
colocava acima de tudo a independência intelectual, a liberdade de espírito e o
culto do humano em todas as suas formas.
Ordenado padre pelo bispo de
Utrecht, Erasmo de Rotterdam pôs toda a inteligência a serviço de seus ideais e
providenciou, através de negociações secretas muito hábeis – não querendo
opor-se abertamente aos superiores – sua nomeação como secretário do bispo de
Cambrai. Assim poderia libertar-se dos horizontes limitados do mosteiro de
Steyn e tomar contato com o mundo, pois o bispo precisava dele para
acompanhá-lo até Roma. A viagem, no entanto, não chegou a ocorrer, tendo sido
adiada várias vezes, o que permitiu ao moço, ansioso por liberdade, gozar uns
tempos de vida sem problemas. Não era obrigado a dizer missa, podia divertir-se
à vontade, conhecer pessoas inteligentes, aprofundar-se nos autores clássicos
e, principalmente, dedicar-se à redação do diálogo Antibárbaros.
A boa vida, contudo, deveria
acabar. Afinal o bispo não precisava mais de secretário e o alegre frade
deveria voltar para o convento e dedicar-se aos mesmos afazeres dos colegas de
batina. Mas Erasmo tinha tomado gosto pela liberdade e outra vez teve que usar
de habilidade para mudar a ordem normal das coisas. E o fez tão bem que
convenceu o bispo a envia-lo à capital francesa para obter o título de doutor
em teologia. A vida em Paris tinha enormes vantagens, pois a universidade era
um verdadeiro centro internacional de cultura e Erasmo poderia desfazer-se do
provincianismo do país de nascença.
E realmente isso aconteceu,
apesar de confinado a maior parte do tempo naquela prisão do corpo e da alma
que era o colégio Montaigu. Nos momentos em que podia ver-se livre, procurava o
contato com outras instituições e outras pessoas. Foi assim que conheceu Robert
Gaguin (1425-1502) e Faustus Andrelinus (1462-1518), mestres incontestáveis do
humanismo na França. No próprio colégio podia aprofundar o conhecimento dos
primeiros padres da igreja e aperfeiçoar o latim a ponto de passar a rivalizar
com os maiores epistológrafos antigos e modernos.
No entanto, isso tudo não o
isentava dos aspectos negativos da vida em Montaigu, e as torturas físicas
acabaram por deixá-lo enfermo. Tal fato permitiu-lhe, mais uma vez, pôr a
sagacidade prática em funcionamento e safar-se para a terra natal, sob pretexto
de necessitar de cuidados médicos especiais.
Humor e Teologia
Como era de se esperar, a cura
foi muito rápida e logo depois Erasmo aproveitou para libertar-se
definitivamente do colégio “vinagre”, como ele mesmo o chamou. Entretanto, ao
voltar a Paris, no outono de 1496, tinha que providenciar a subsistência. A
solução era dar aulas particulares para não recorrer à Ordem e assim manter sua
independência. Antes já tinha tratado de criar clientela e agora tinha alunos
muito ricos, especialmente entre a aristocracia inglesa. Não só pagavam muito
bem, como possibilitavam-lhe outros privilégios, essenciais para quem queria
manter-se livre e dedicar-se à criação de obras de pensamento e arte. Dessa
época datam os primeiros esboços dos Colóquios
e De como Escrever Cartas, além de pequeno volume de poemas.
Os Colóquios (modificados em várias edições até a definitiva, em 1533)
foram concebidos para funcionar junto aos alunos como manual de conversação. Em
forma de diálogo extremamente vivo, Erasmo ridiculariza costumes sociais e da
Igreja, além de personalidades da época escondidas sob pseudônimos, mas
facilmente identificáveis pelo público mais ilustrado da época. Em O
Casamento e A Jovem Arrependida satiriza os defensores da vida
conventual como ideal de espiritualidade; na Confissão do Soldado e O
Soldado e os Cartuxos qualifica sarcasticamente como loucos os jovens
atraídos pela carreira das armas.
Ele mesmo, no entanto, nada tinha
de louco e sabia muito bem como fazer para dar solução aos problemas de
sobrevivência e resguardar sua independência pessoal. Em 1499, acompanhado de
lorde Mountjoy, um dos alunos ricos, chega à Inglaterra, consegue hospedagem no
Saint Mary’s College de Oxford e toma contato com uma universidade muito
mais aberta a novas ideias do que a de Paris. Em Oxford, estudantes e
professores faziam juntos as refeições, em meio a animados debates; eram
banquetes com companhia culta, boa comida, não muito vinho e nobre palestra.
Erasmo sentiu-se em seu elemento, não só por causa desses costumes cotidianos,
mas porque encontrou pessoas que partilhavam de seus interesses intelectuais.
Eram muitos os que, em Oxford, pensavam como ele: o arcebispo William Warham
(1450-1532), John Fisher (1469-1535), os mestres universitários William Grocyn
(1446-1519), Thomas Linacre (1460-1524), e Hugh Latimer (1485(?)-1555), e
sobretudo John Colet (1467-1519) e o futuro chanceler de Henrique VIII, Thomas
More. Juntos, conceberam o projeto de restaurar a teologia através de novas
edições dos textos bíblicos e propunham-se a iniciar, assim, uma revolução na
hermenêutica e exegese dos livros sagrados. As consequências foram as mais
profundas e as novas traduções a partir dos textos originais revelaram um
cristianismo muito diverso daquele que perdurara durante os séculos da Idade
Média.
Logo ao chegar à Inglaterra, em
1499, Erasmo não estava ainda dotado de todos os instrumentos necessários para
esse trabalho, pois faltava-lhe o domínio do grego. Mas dedicou-se a aprendê-lo
com os colegas ingleses e continuou os estudos durante alguns anos, até tornar-se
apto a fazer a tradução, com comentários críticos, do Novo Testamento,
publicado em 1516, e que veio a constituir um marco dentro da história da
hermenêutica bíblica.
Antes, em 1500, Erasmo tentara
deixar a Inglaterra, mas um incidente na hora da partida obrigou-o a redigir e
publicar outra obra que marcaria época: as autoridades portuárias inglesas não
lhe permitiram carregar as economias em ouro e prata, acumuladas custosamente.
Mais uma vez viu-se forçado a recomeçar do zero a luta pelo pão de cada dia.
Não teve dúvidas sobre como fazê-lo e em pouco tempo redigiu uma antologia de
citações latinas e provérbios, colocando nas mãos do grande público um imenso
acervo de cultura, até então privilégio de poucos. O livrinho teve sucesso
imediato e foi o primeiro exemplar de literatura de divulgação. Chamava-se Adágios e trouxe celebridade para o
autor. À cata de patrocínio e ao mesmo tempo cioso de sua independência
pessoal, viaja pelos Países Baixos e pela França, sem fixar-se em lugar algum.
Acima de tudo procura não se comprometer com nenhuma instituição ou pessoa.
Almeja apenas ao pouco que lhe permitia satisfazer as necessidades básicas,
permanecendo livre para o trabalho intelectual.
O Elogio da Loucura
Continuando suas viagens,
concretiza o velho sonho de estagiar na Itália, centro do humanismo e de toda a
renovação intelectual renascentista que se estende pela Europa. Não só as
bibliotecas italianas, onde poderia encontrar preciosos manuscritos, mas a
tipografia de Aldo Manunzio (1450-1515) excitam-no enormemente, e passa horas e
horas a trabalhar com belíssimos caracteres tipográficos, sobretudo os mais
miúdos. A imprensa é para ele mais do que uma simples técnica: é o instrumento
maravilhoso que abrirá todas as portas da cultura, inaugurando uma nova era.
Em 1509 a Coroa Inglesa passa à
cabeça de Henrique VIII (1491-1547), que Erasmo conhecera desde menino e com o
qual chegara a corresponder-se em latim. O monarca estava sempre imerso na
leitura dos Adágios, segundo
informação do ex-aluno Lorde Mountjoy, e os amigos insistem para que Erasmo
volte à Inglaterra, pois poderia conseguir do novo soberano uma pensão
permanente. Em 1509 deixa definitivamente a Itália e hospeda-se em Londres, na
casa de Thomas More, onde encontra o ambiente ideal para o estudo e as longas
conversas eruditas. A saúde frágil, porém, perturba-lhe a tranquilidade, e
crises de cálculo renal obrigam-no a longas horas de repouso. Erasmo reage ao
mal por meio do recurso que lhe servia até como remédio: escrever. Nasce assim
uma obra-prima da literatura de todos os tempos e de todas as línguas: O
Elogio da Loucura.
Apenas sete dias bastaram para
escrever a obra, graças à absoluta liberdade de concepção e total ausência de
compromissos. Não se tratava de trabalho feito sob encomenda ou programado para
obtenção urgente de dinheiro para subsistência. Era uma brincadeira para passar
o tempo, mas quem assim brincava tinha atrás de si toda uma vida dedicada à
melhor literatura clássica e mais as experiências de um homem voltado
inteiramente para as coisas do espírito.
Erasmo tinha sofrido todas as
agruras da pobreza e da bastardia e tinha convivido com príncipes e poderosos.
Tinha passado pelos rigores da vida monacal e vira bispos comprazerem-se no
luxo e na libertinagem. Fora testemunha do furor criminoso dos príncipes da
Itália em guerra e vira a miséria aflitiva do povo. Tudo isso soava-lhe
profundamente estúpido e ao mesmo tempo a própria estultícia parecia ser o
motor dessas ações absurdas. Passou-lhe então pela cabeça, pouco antes de chegar
à Inglaterra, atravessando os Alpes, a ideia de colocar isso tudo no papel. As
crises de cálculo renal, na casa do amigo More, forneceram-lhe as
circunstâncias propícias para fazer a Loucura subir ao púlpito, sempre
acompanhada pela Lisonja e pelo Amor-Próprio, e elogiar a si mesma.
O resultado foi a crítica
impiedosa dos juristas minuciosos, dos filósofos escolásticos, dos nobres
arrogantes, dos bispos luxuriosos, dos negociantes sórdidos e estúpidos, dos
militares que julgavam ser suficiente atirar uma moeda numa bandeja para
adquirir a indulgência que os deixaria puros e limpos como quando nasceram.
Todo o Elogio da Loucura é
uma mascarada, mantida viva pela ambiguidade estrutural que anima a crítica aos
costumes e aos poderosos, e pela inspiração vibrante vestida de admirável
roupagem estilística. A opinião pessoal do autor permanece inacessível e, se
alguém se atrevesse a discutir com ele por causa do sarcasmo e das críticas que
distribui generosamente, poderia responder, tranquilo, que não foi ele quem
disse isso, mas Dona Estultícia. E quem deve tomar a sério a loucura?
O próprio livro nada tinha de
louco e, muito embora tudo parecesse brincadeira para homenagear o anfitrião
Thomas More (em grego, loucura é moria),
a pequena sátira obteve imediatamente enorme sucesso e desempenhou papel
fundamental na eclosão da Reforma protestante. A maior parte daquilo que os
reformadores objetavam à Igreja encontrava-se criticado por Erasmo. O Elogio
da Loucura, sob a aparência de festivo fogo de artifício, foi uma das obras
que mais abalaram seu tempo, funcionando como verdadeiro panfleto
revolucionário. Constituindo a mais ousada e a mais artística obra de sua
época, era consumida amplamente por aqueles que voltavam de Roma irritados com
os desregramentos de papas e cardeais, a viver a vida suntuosa de príncipes, em
contradição com os preceitos do cristianismo original. Os revoltados reclamavam
uma reforma geral da Igreja e alimentavam-se ideologicamente das críticas do
brilhante humanista Erasmo de Rotterdam.
Liberdade ou servidão?
As críticas aos costumes e às
instituições, escritas em 1509, vinham-se juntar a uma nova concepção da vida
cristã, tal como Erasmo tinha exposto no Manual do Cristão Militante
(1501). Nessa obra sonhava com um ideal religioso ao alcance de todos, uma
religião interiorizada e humanizada, sem os excessos místicos de boa parte da
Idade Média e também sem o racionalismo estéril do formalismo escolástico.
Aliam-se também a seu trabalho como filólogo, preocupado com revisar os erros
da vulgata e dedicado a uma nova
tradução, para o latim, de todo o Novo Testamento. Isso sem contar as
inúmeras edições críticas, que preparou, das obras dos primeiros padres da
Igreja, especialmente as de São Jerônimo.
Há muito, portanto, Erasmo estava
procedendo a uma eficaz reforma da doutrina cristã, ao atacar o pensamento
medieval em suas bases. Não possuía, contudo, aquele grão de loucura que ele
mesmo achava necessário para fazer o mundo caminhar mais depressa. Não era um
revolucionário que pegasse em armas para atacar violentamente o adversário e
tentar derrotá-lo em pouco tempo. Não era um condutor de massas, muito embora
sua pena tivesse a força de muitos exércitos. Preferia atacar o mal de maneira
sutil, pela ironia e pela vivacidade de espírito, dirigidas aos mais
inteligentes. Solapava as bases do pensamento da época sem fazer nenhum
estardalhaço. Era muito diferente daquele outro frade agostiniano, Martinho
Lutero (1483-1546), que estava prestes a irromper como um furacão para mudar
toda a ordem econômica, política e religiosa da Europa.
Em abril de 1511, Erasmo deixou a
casa de Thomas More, sem ter conseguido obter a esperada pensão de Henrique
VIII, cujo amor ao humanismo já tinha sido substituído pelo amor às intrigas da
corte e à glória nos campos da batalha. Viaja então até Paris, a fim de
publicar Elogio, e retorna à
Inglaterra, onde passa a ensinar grego e teologia na universidade de Cambridge.
Em 1512 o arcebispo de Canterbury consegue-lhe um reitorado em Kent, com pensão
anual de 20 libras, pagáveis inclusive no exterior, mesmo que deixasse de
exercer as funções. Dois anos depois Erasmo transfere-se para Basileia, na
Suíça, tendo, pouco antes, redigido uma sátira contra o papa Júlio II
(1443-1513).
Em Basileia liga-se ao editor
Frobenius (1460-1517) e trabalha junto com os operários da tipografia, cuidando
do texto grego e latino, além de apreciações críticas, do Novo Testamento
e das Cartas de São Jerônimo. Liga-se
também ao pintor Holbein (1497-1543) que o retrata várias vezes, e desenha
ilustrações para o Elogio da Loucura.
Em meio aos trabalhos eruditos,
Erasmo entra em contato, pela primeira vez, com Lutero, através de uma carta de
Spalatinus, secretário do embaixador da Saxônia. O diplomata, entre outros
assuntos, fala-lhe do jovem frade, que sente por ele a mais alta estima, mas
não concorda com sua concepção sobre o pecado original. Não adota a opinião de
Aristóteles, segundo o qual é justo aquele que procede com justiça. Para
Lutero, só se é justo quando se está em estado de justiça. Em outros termos,
Lutero acha que primeiro é preciso que o indivíduo seja transformado
interiormente; justificado por Deus (Se apropriando, assim, da justiça divina
por imputação); as obras viriam depois.
Nessa pequena discordância
filosófica estavam contidas todas as diferenças entre os dois reformadores.
Erasmo era um humanista no mais completo sentido, que acreditava integralmente
nas possibilidades de a razão humana distinguir claramente entre o bem e o mal,
e colocava no livre-arbítrio de cada um a fonte de todo autêntico pensamento
religioso e da opção moral. Lutero esposava o agostinismo mais extremado,
segundo o qual o homem é um miserável ser, condenado ao pecado e à degradação,
da qual só pode ser salvo pela graça divina; o homem não pode por si só atingir
a beatitude eterna mediante aquilo que faça; é preciso antes entregar-se a Deus
pela fé e esperar pacientemente pela misericórdia divina. Erasmo procura a
reforma pelo esclarecimento racional, Lutero afirma, antes de tudo, o poder da
fé.
A fé remove montanhas, a razão
não; pelo menos é no que acreditavam as massas camponesas da época, crença que
interessava aos príncipes alemães, preocupados em libertar-se do jugo econômico
do Vaticano. Assim, a Reforma seguiu o caminho de Lutero e incendiou o
continente, a partir das famosas 95 teses redigidas e afixadas na porta da
igreja de Wittenberg, em 31 de outubro de 1517.
Entre dois fogos
A história posterior a essa data
é marcada pelos insistentes pedidos de Lutero e dos outros reformadores, no
sentido de que Erasmo participasse das novas ideias religiosas, pois afinal
todos queriam basicamente as mesmas coisas e o célebre humanista seria uma arma
decisiva na luta, com toda sua cultura e erudição muitíssimo superiores às dos demais. Do outro
lado ocorre o mesmo, com o Vaticano a solicitar a Erasmo que condenasse as
teses de Lutero, para isso chegando mesmo a oferecer-lhe um posto de cardeal.
Mas Erasmo não se deixa render, porque não concorda com nenhum dos lados. A
Igreja lhe parece podre e a exigir profundas modificações, mas os reformadores
eram, a seu ver, bárbaros e fanáticos. Além do mais, faz questão de conservar
absoluta independência pessoal, e isso implica não tomar partido. O que poderia
parecer covardia era, na verdade, o resultado de arraigada convicção de que os
dois lados estavam errados e o verdadeiro caminho deveria ser criado pelo homem
enquanto ser inteligente e livre.
As paixões a seu redor o
aborreciam, mas apesar disso continuava a executar seu trabalho intelectual. Em
1517 vem à luz a Questão da Paz, onde advoga o ideal de uma Europa unida
e sem fronteiras nacionais. O próprio Erasmo não queria ser holandês, francês,
inglês, italiano ou suíço, como realmente não foi, mas tão-somente um cidadão
do mundo, e isso ele o foi com coerência e lucidez. Em 1522 publica uma nova
edição ampliada dos Colóquios, na
qual apresenta uma sociedade justa e racional, verdadeiramente cristã e amiga
da paz, que julga possível existir no futuro. Em 1524 é a vez do pequeno
tratado Sobre o Livre Arbítrio, contestado dois anos depois pelo Servo
Arbítrio, de Lutero. Como se tudo isso não bastasse, continua a trabalhar
nas edições críticas dos textos originais dos primeiros padres da Igreja.
Em 1529 Basileia deixa de ser um
refúgio tranquilo, e os conflitos religiosos eclodem. Em fevereiro o culto
católico é oficialmente abolido, os mosteiros são expropriados, cerram-se as
portas da universidade. Erasmo é obrigado a partir. Refugia-se na cidade de
Friburgo e continua a escrever: A Amável Concórdia da Igreja, uma nova
tradução do Ecclesiastes e quatro
volumes sobre a arte da pregação, dedicados ao bispo Fisher, que logo depois
seria condenado à morte por não aceitar a autoridade de Henrique VIII em
matéria religiosa.
A saúde, entretanto, está
abalada. O reumatismo e as dores de estômago são insuportáveis. Mas o remédio
contra os males do corpo e do espírito continua à mão: escrever. E viajar
também. Projeta voltar à terra natal, para onde é chamado insistentemente pelo
bispo de Brabante. Vai antes, contudo, para Basileia, onde deveria esperar o
degelo da primavera. Alguns fiéis o retêm por mais algum tempo e cuidam dele
carinhosamente. Visita a tipografia de Frobenius para supervisionar a edição do
Ecclesiastes e escreve ainda um Comentário
ao Salmo XIV, que há muito prometera a um amigo humilde chamado
Eschenfelder. Foi o último trabalho.
Em junho de 1536 Erasmo está tão
fraco que já não consegue ler, e um mês depois, exatamente no dia 12 de julho,
pronuncia as últimas palavras de sua vida, Lieve God (em holandês: Bom
Deus) e exala o último suspiro. Deixava como herança a ideia de que a razão
deve combater todos os fanatismos e que acima de todos os valores deve estar o
homem, sobretudo enquanto ser de inteligência livre.