CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE: POESIA DA VIDA


RELOGINHO, RELOGINHO
Carlos Drummond de Andrade

Reloginho, reloginho
embora apenas suplente,
bate bate direitinho,
bate bem rapidamente
a hora de meu bem chegar.
Mas se é hora de partir,
atrasa o mais que puderes
e não deixes nunca ir
a mais doce das mulheres.

Reloginho, compreendido?
Sempre teu, agradecido.

Do livro Poesia errante


DEZOITO ANOS SEM DRUMMOND

Edmílson Caminha
Texto escrito em 2005

Faz 18 anos que se foi Drummond, em 17 de agosto de 1987, exatamente doze dias depois que morrera a filha amada, Maria Julieta. A propósito da data, vem-me à memória não o poeta, o cronista, mas o brasileiro Carlos, o cidadão comum, igual a tantos outros homens e mulheres do seu tempo. Servidor público, foi Drummond, de 1934 a 1945, chefe de gabinete do Ministro da Educação, seu amigo e conterrâneo Gustavo Capanema. Não nos esqueçamos de que o Presidente da República se chamava Getúlio Vargas, que mantinha o governo sob rédea curta e administrava o Brasil com mão de ferro.

Como vemos, Drummond esteve, por onze anos, muito perto do poder e a poucos passos dos poderosos, e disso não se aproveitou para usufruir privilégios nem para fazer fortuna: viveu honrada e parcimoniosamente, com os ganhos de funcionário público e de escritor que colaborava na imprensa. Deixou para a viúva, Dona Dolores, a pensão devida e um bom mas nada luxuoso apartamento, na Rua Conselheiro Lafaiete, entre Copacabana e Ipanema, em que hoje mora o neto Pedro Augusto e onde já estive muitas vezes.

Se há quem hoje diga, em meio ao escândalo de mensalões, que participou de falcatruas apenas para receber dívidas, Drummond poderia ter prevaricado sob a desculpa de que, para os mortais, é duro resistir quando se está tão perto do tesouro... Não o fez, pelos princípios morais e pelos valores éticos que lhe nortearam a existência. Já dissera Machado de Assis: "A ocasião não faz o ladrão: faz o furto. O ladrão já nasce feito."

Assim, tanto quanto uma admirável obra, Carlos Drummond de Andrade nos deixou uma lição e um exemplo: uma lição de vida e um exemplo de dignidade, com que honrou o Brasil e fez melhor o tempo que lhe foi dado viver.

Escritor e jornalista, Edmílson Caminha é o autor de Drummond: a lição do poeta (Brasília, Thesaurus, 2002).




VIOLA DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Cyro de Mattos

Dos humanos desacordes
compuseste a tua viola
afinada atrás do tempo.
De tudo um pouco ensinas
na arte de ver a vida
além de tudo vinagre.
Esta pedra no meio
do caminho estrepa.
No que segue claro
me sinto menino, maior,
montanha, tamanho de José,
no que não se desvenda
oh, razão, mistério
ninguém acha escape.
E vozes mais das vezes
uma esperança perdida,
a morte do leiteiro,
um quadro na parede,
são alçapões do amor.
Ó da rosa radiante,
a que chamamos solitude,
palavra no ar, tuas mãos,
espantos, tantos espantos.

Do livro Os Enganos cativantes


Grafite de Drummond na entrada do Túnel Velho, Copacabana

PORQUE MEU BEM FAZ ANINHOS
Carlos Drummond de Andrade


Porque meu bem faz aninhos
um raio de sol dourado
entrelaçou mil carinhos
pelo céu, de lado a lado.

Um ramo de beijos ternos
balançava sobre os ninhos
entre miosótis eternos
porque meu bem faz aninhos.

Porque meu bem faz aninhos
o rei, o valete, a sota
mais a fada e os anõezinhos
dançaram samba e gavota.

A nuvem mais cor-de-rosa
enfeitiçou-se de gatinhos
de bigode à Rui Barbosa
porque meu bem faz aninhos.

Porque meu bem faz aninhos
eu ganhei um chocolate
que tinha sete gostinhos
todos do melhor quilate.

Hoje eu brinco, pulo, canto,
assim como os passarinhos,
e mais eu canto me encanto
porque meu bem faz aninhos.

Do livro Poesia errante (1988)


E AGORA, POESIA? (trecho de matéria da revista Veja de 26 de agosto de 1987)

Em apenas doze dias, o poeta Carlos Drummond de Andrade esteve duas vezes no Cemitério São João Batista, em Botafogo, no Rio de Janeiro. Na primeira, o poeta mineiro, de 84 anos, enterrou a pessoa que mais amava, a filha Maria Julieta, de 57, vítima de um câncer generalizado. Cabeça baixa, olhos secos e atônitos, Drummond (...) disse: “Não tenho mais futuro, acabou tudo para mim.”

Doze dias depois, o poeta morto [às 20h45 de 17 de agosto de 1987] percorreu a alameda, conduzido no caixão pelos seus três netos e amigos.

A PALAVRA, NO MEIO DO CAMINHO (trecho de um dos raros depoimentos do poeta, concedido em janeiro de 1984 a Edmílson Caminha e publicado no suplemento literário do Diário do Nordeste).

Edmílson: Seus versos já viraram letra de música, enredo de escola de samba e tema de campanha eleitoral. Partindo-se do debate em torno do que é nacional e do que é popular na cultura brasileira, você se considera um poeta popular?

Drummond: Não, eu não me considero um poeta popular, não tenho essa pretensão. Claro que eu gostaria de ser, mas o conceito de poeta popular é muito ligado aos meios de comunicação de massa. Eu não tenho acesso a eles, a televisão jamais me contrataria para fazer um programa semanal. (...) 0 escritor de papel perde longe para os compositores e para os poetas chamados populares. Acho até que o poeta popular de cordel tem mais divulgação do que o poeta brasileiro dito de elite.


Drummond e a Cow Parade (2011)

VISITA A DRUMMOND (do livro de Antonio Carlos Villaça, Os saltimbancos de Porciúncula).

Drummond não gostava de receber ninguém na sua casa. Muitas vezes, conversei com ele, no gabinete do MEC, uma espécie de furna com armários de aço, a isolá-lo do resto da sala.

Fui uma única vez ao seu apartamento, já no fim, dia 18 de setembro de 1985. E por motivos especiais. Maria Julieta, a filha única, fora eleita para o Pen Clube. E morava num minúsculo apartamento, na rua Barão da Torre. Seria impossível receber lá a diretoria do Pen Clube, para a comunicação oficial.

Drummond, solícito, resolveu que a reunião seria em sua casa, um sétimo andar na rua Conselheiro Lafaiete. (...)

Pois nos recebeu au grand complet, em grande estilo, um senhor coquetel, vários garçons, uísque, vinho, salgadinhos variados e até doces. Foi uma festa. O poeta caprichou. Amava tanto aquela filha, que morou longos anos em Buenos Aires.

O poeta estava feliz. Elegantíssimo, de camisa azul, paletó claro. Ia e vinha. como um perfeito anfitrião. Não propriamente à vontade, cerimonioso (como era seu feitio). Mas tão amável. (...)

Mais de meia-noite, Drummond acompanhou os visitantes até a calçada.

TRECHO SOBRE DRUMMOND na década de 1930 do 4o volume das memórias de Pedro Nava, Beira-mar

Era muito magro, mas extremamente desempenado, tinha o gauche que tornar-se-ia folclórico, um ar de orgulhosa modéstia (não sei se posso colocar juntas as duas palavras, entretanto não acho outras), aparência, à primeira vista, tímida, escondendo o homem dono de uma das maiores bravuras físicas e morais que já tenho visto juntas na mesma pessoa. Engana-se quem o julgar pela magreza e pelo franzino. Na realidade esse ser delgado é todo feito de tiras de aço, de couro, de juntas de ferro que servem o homem forte que ele é.


CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Poema de Manuel Bandeira em homenagem aos 60 anos de Drummond

Louvo o Padre, louvo o Filho,
O Espírito Santo louvo.
Isto feito, louvo aquele
Que ora chega aos sessent'anos
E no meio de seus pares
Prima pela qualidade:
O poeta lúcido e límpido
Que é Carlos Drummond de Andrade.

Prima em Alguma Poesia,
Prima no Brejo das Almas.
Prima na Rosa do Povo,
No Sentimento do Mundo.
(Lírico ou participante,
Sempre é poeta de verdade
Esse homem lépido e limpo
Que é Carlos Drummond de Andrade.)

Como é fazendeiro do ar,
O obscuro enigma dos astros
Intui, capta em claro enigma.
Claro, alto e raro. De resto
Ponteia em viola de bolso
Inteiramente à vontade
O poeta diverso e múltiplo
Que é Carlos Drummond de Andrade.

Louvo o Padre, o Filho, o Espírito.
Santo, e após outra Trindade
Louvo: o homem, o poeta, o amigo
Que é Carlos Drummond de Andrade.


VINTE ANOS SEM MARIA JULIETA E DRUMMOND
Texto de 2007 de Edmílson Caminha

Os vinte anos da morte de Maria Julieta — em 5 de agosto [de 1987] — e de Carlos Drummond de Andrade, apenas doze dias depois, são marcados pelo nascimento de um herdeiro e pela edição de um livro. A criança é Miguel, filho de Josiane e de Pedro Augusto, que vem ao mundo com a honra de ser neto de Maria Julieta e de Manuel Graña Etcheverry (grande intelectual argentino) e bisneto de Dolores e do poeta Carlos. O livro é Querida Favita, com mais de cem cartas (inéditas!) do itabirano famoso para a sobrinha Flávia — ou Favita, como carinhosamente a chamava. A edição, bem cuidada e elegante, é da Universidade Federal de Uberlândia, e já tem dois lançamentos confirmados: em Belo Horizonte, no dia 18, e em Brasília, no dia 23.

Que se homenageie Drummond, mas que não nos esqueçamos da grande escritora que foi Maria Julieta. Aí estão, para provar, Um buquê de alcachofras e Pombos & gatos. E, principalmente, A busca, admirável romance escrito por uma jovem de 17 anos, que impressiona pela força dos sentimentos e pela boa realização literária. É hora, já, de organizar em livro as centenas de crônicas escritas por Maria Julieta para O Globo, textos que a incluem, sem favor, entre os melhores nomes do gênero na literatura brasileira.

Certo dia, ao lhe dizer que algumas das suas crônicas, de tão primorosas, poderiam ser assinadas pelo pai, revelou-me ela um segredo: às vezes, por estar acamada, Drummond escrevia a crônica para O Globo; em troca, chegou a filha a mandar, para o Jornal do Brasil, crônicas suas como se fossem do pai. “E nunca ninguém reclamou, nem de um lado nem do outro...”, disse, ao confessar a jogada de cúmplices.

Desaparecidos há vinte anos, Maria Julieta e Carlos Drummond de Andrade continuam vivos, pela grandeza da obra com que fizeram o mundo melhor e a vida mais bela.


DRUMMOND PERMANENTE
Poema de Cyro de Mattos

Em meu ouvido um pássaro
Canta de tudo os instantes
Neste diálogo com o mundo
Como oferendas do amor.
Quantas vezes não mundo
Tão solidário enternece.
Por entre gestos de espanto
Nesta rosa dos eventos
Não sei o que mais comove,
Canto ao homem do povo,
Aquele quadro no deserto,
Sinais e expressões do tempo
Faminto de situações patéticas.
Apenas eu sei que tropeço
Nesta pedra no meio de tudo.
Ó de Itabira, se bem procuro,
Afinal termino encontrando
Não a explicação (relativa)
Da vida mas a beleza,
Sem explicação, da vida.



MÃOS DADAS
Carlos Drummond de Andrade

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,

não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente.




O POEMA MAIS GENIAL DE DRUMMOND

No meio da jornada da vida, entre a primeira fase modernista de uma poesia vigorosa, incisiva, antilírica (prosaica por vezes), em suma, de ruptura com o passado, E agora José, No meio do caminho tinha uma pedra, e a fase madura de intenso lirismo, “sentimentalismo ginasiano, lirismo kitsch” acusa/exagera o polêmico Diogo Mainardi, Porque meu bem faz aninhos, Quero ser namorado a vida inteira, época em que conquistou um grande público como cronista de jornal, em meio a essas duas fases, dizíamos, Drummond publica um livro surpreendente, de grande elaboração formal, uma poesia "erudita", no nível dos grandes clássicos do vernáculo: Claro Enigma (1951). Ali figura o poema mais genial de Drummond, o melhor poema brasileiro de todos os tempos segundo alguns escritores e críticos: “A máquina do mundo”.

A MÁQUINA DO MUNDO

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade;

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.


JARDIM

Negro jardim onde violas soam
e o mal da vida em ecos se dispersa:
à toa uma canção envolve os ramos,
como a estátua indecisa se reflete

no lago há longos anos habitado
por peixes, não, matéria putrescível,
mas por pálidas contas de colares
que alguém vai desatando, olhos vazados

e mãos oferecidas e mecânicas,
de um vegetal segredo enfeitiçadas,
enquanto outras visões se delineiam

e logo se enovelam: mascarada,
que sei de sua essência (ou não a tem),
jardim apenas, pétalas, presságio.


"as janelas olham"

CIDADEZINHA QUALQUER

Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.

Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.

Devagar... as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.


Manual do Poeta (ebook de Ivo Korytowski): Tudo sobre a arte poética – verso, estrofe, métrica, rima, ritmo, sonoridade, recursos de construção, recursos imagísticos, soneto, haicai, trova, balada, elegia, ode, cordel etc. Baratinho. Para mais informações clique aqui.

DOS DEFUNTOS, de Hélio Brasil



Não gosto de enterros, mesmo quando os defuntos não me são simpáticos. Ao meu enterro irei por absoluta impossibilidade de faltar, e para não ser descortês com os amigos. Além do que, enterro é envolvido e antecedido por expressões lúgubres e palavras esdrúxulas (em todos os sentidos): nosocômio, coma, CTI, laparatomia, entubação, necropsia, seguidos, em geral, por passamento, expiração, falecimento e velório, logo acompanhados por féretro, ataúde, essa, catafalco, cenotáfio e, mais, sepulcro, jazigo, tumba, exumação.

Este rebarbativo, sonoro e sombrio elenco poderia desqualificar a morte, não fossem a lágrima – amiga da tristeza, mas bela palavra – e, logo depois, a saudade, segundo alguns, vocábulo ímpar da derradeira flor do Lácio, sem equivalente, dizem, nas outras línguas. O regret do inglês e o revenir do francês, não expressam o sentimento, não “traduzem” aquela dorzinha aguda, o desconforto da ausência. Apenas quebram o galho... 



Mas o caso não é vocabular. Sob o título geral de Deslumbramento & Amargura, minhas crônicas não poderiam desprezar o enterro, este ato da comédia humana e, de como, na qualidade (por ora) de assistente, a ele cheguei.

Logo que me aprumei como gente, participando da vida familiar, ouvindo sem ser ouvido, mais escutando do que ouvindo e sempre falando para as paredes, acompanhei minha mãe nos enterros, já com eles familiarizado. Em outras crônicas falei das madrugadas tétricas com as mortes de um dos meus tios e de meu avô, esta última por mim testemunhada. Experiência amarga e repetida, anos mais tarde, ao ver o último suspiro de minha prima Élida, ainda um bebê.

Ao recebermos a comunicação da morte de alguém próximo, parente ou conhecido, mais das vezes cabia à minha mãe representar a família. Ir ao velório – na época, realizado em casa, pois raros morriam nos hospitais – e, a seguir, acompanhar o féretro. Ali, a família era o espetáculo, o defunto um personagem secundário. Viúvas inconsoláveis ou conformadas, filhos pranteando pais, mostrando, porém, o alívio ao se desfazer dos encargos criados por irremediáveis velhos, doentes de irremediáveis doenças.



O morto era entronizado, em geral, na sala de visitas da casa (os apartamentos é que acabaram com os velórios). Coberto de flores, vestido como se fosse a uma festa onde não faltavam  a gravata, as meias e os sapatos de verniz. Lá ficava o falecido, o rosto talhado em marfim, olhos vítreos, entreabertos, o queixo amarrado por um lenço ou por uma gaze, para que não lhe sobrasse um último ar de espanto. Jamais lhes surpreendi um esgar de sorriso. A maioria das vezes, a falsa serenidade deixava transparecer a perplexidade de ter deixado uma vida jamais desejada.

Em nossas terras, usava-se o indispensável cafezinho para distrair os presentes. Aqui e ali, um biscoitinho. Mais requintados, um bolinho. Ou pastéis. Música, nem pensar. Só na missa do sétimo dia, os Gounot, Schubert entravam em cena.

As cenas no fechamento do caixão, para as despedidas tradicionais, implicavam em gritos, choro convulso e um grupo tentando arrancar o sofredor vivo curvado sobre o irremediável morto. O transporte até o carro paramentado com ornatos negros sobre fundo dourado, o roxo da seda do caixão compunham a cine-xilogravura tétrica.


Olhai este retrato lindo / Vereis quem aqui está dormindo

E lá se ia o cortejo, carros e mais carros perseguindo o morto, levando, por vezes, em suas capotas as tétricas coroas, penduradas as faixas: Saudade eterna (como se o amigão fosse eterno), Jamais o esqueceremos (mal voltados do cemitério, já esqueciam quem se fora...). E o defunto perseguido, vigiado na sua última viagem para o campo santo. Lá chegando, uma carreta o esperava. Os mesmos abnegados que o levaram da essa ao carro, o depositavam na carreta. Mas esta nem sempre fora componente do ato e, mãos fortes, de novo, empunhavam as alças do caixão. Seguia-se o trajeto entre as campas e jazigos, seguindo o grupo dos carregadores, mais das vezes as pessoas da família, revezando-se os homens na tarefa, ora pela distância em que se encontrava o sepulcro, ora pelo avantajado peso do defunto. À beira da cova, nova cerimônia. Nada de aplausos, como hoje vem se fazendo. Podia parecer um desrespeito ao morto. Como sonoplastia adicional, o soluçar dos mais chegados, o fungar de um ou outro e, mais raro, uma voz em despedida.  Apenas as orações murmuradas antes que o caixão baixasse, o choro abafado, a pá de cal passada de mão em mão, e a fila aflita para que o derradeiro a lançar o pó branco não fosse um jovem, alimentada a crença de que o último a jogar a cal seria o próximo a morrer, davam som e cor ao lúgubre espetáculo. O arremate cabia aos coveiros que aguardavam com ar entre compungidos e impacientes, chapéus na mão, sua entrada em cena. A terra acumulada ao lado, como se fazia nas covas rasas, era puxada pelas enxadas para encobrir o ataúde, como de praxe, a sete palmos do chão. A operação fazia ressoar o tenebroso ruído dos torrões quebrando-se sobre tampa do esquife, até cessar, sendo substituído pelo som da terra preenchendo toda a sepultura.



Nos jazigos perpétuos, onde os restos mortais seriam sobrepostos – os mais antigos já exumados, os ossos acomodados em uma caixa –, uma laje de concreto cobria o novo hóspede. Jamais acompanhei um morto que fosse guardado nos grandes jazigos, semelhantes a capelas, com gavetões laterais. Meus mortos eram menos importantes.

E assim, família, amigos e conhecidos desfaziam-se do falecido que ganharia visitas esparsas, nos aniversários, no dia dos Finados ou em datas marcantes. Depois, a exumação que se tornava espetáculo macabro, dependendo do solo e das condições físicas do defunto. Mais das vezes, lá estavam os trajes em farrapos e ossos mais ou menos em estranho quebra-cabeças...

Um derradeiro ato da tragicomédia humana.


Este texto, um dos capítulos de Cadernos (quase) esquecidos de Hélio Brasil, foi gentilmente cedido pelo autor para publicação neste blog cultural.  Fotos do Cemitério São João Batista (Rio de Janeiro) do editor do blog. E para coroar com chave-de-ouro a experiência lúgubre, você está convidado a ouvir minha declamação do poema O DEFUNTO no vídeo ao final.




JUSCELINO KUBITSCHEK



"LANÇO OS OLHOS MAIS UMA VEZ SOBRE O AMANHÃ DE MEU PAÍS" de Stella Leonardos

Pelo Planalto sem fim
         lá vais indo, Juscelino:
num monomotor tão mínimo
         pra teu sonho tão grandioso.

Tão pronto o aviãozinho pousa
         te sentas, naquele toco,
de árvore junto de um corgo.

E leio no Livro de Ouro
         o que escreves pra teu povo:

           “Deste Planalto Central
desta solidão que em breve se
transformará em cérebro das
mais altas decisões nacionais,
lanço os olhos mais uma vez
sobre o amanhã de meu país e
antevejo esta alvorada, com uma
fé inquebrantável e uma
confiança sem limites no seu
grande destino.”

Não sei se é manhã, se é tarde.
  Do que eternas, Juscelino,
da esperança  que te inscreve,
         raia uma eterna alvorada. 

(Do livro SAGA DO PLANALTO)



JUSCELINO SEGUNDO PEDRO NAVA:

Nossa turma era muito unida e até hoje os doutorandos de 1927 mantemos contato uns com os outros e anualmente nos reunimos para um jantar de confraternização no aniversário de formatura [...] Fomos clínicos, cirurgiões, especialistas, médicos do interior, médicos de cidade e professores. Seria motivo para outro gênero de livro estudar as personalidades de um a um e mostrar o que a todos ficou devendo a Medicina do Brasil. Um nome, entretanto, está nesta lista sobre o qual não se passa sem palavra de reverência: o de Nonô Kubitschek. Ele projetou-se mais que os outros como personalidade brasileira e mundial. Fora sua simpatia radiosa, seu espírito sempre alerta, sua alegria sadia, seu zelo pelos estudos, seu prodigioso coração — outros predicados não distinguiam aquele menino vindo da casinha de porta e três janelas da rua do São Francisco, na Diamantina — dos outros meninos de sua turma.


Era um moço de talento entre tantos outros bem dotados daquele grupo de doutores de 1927. Ainda não se tinham produzido as circunstâncias sociais e políticas que iriam transformar esse homem num gênio nacional, que figura em nossa história no rol em que estão o nosso descobridor, os desbravadores, os bandeirantes, os integradores da pátria, os fautores da unidade nacional, os libertários da Inconfidência, do Dezessete e Vinte-e-quatro, os pró-homens da Independência, Abolição, da Proclamação da República, os grandes Chefes de Estado. Dos últimos, foi o maior e sua glória excede às de D. João, dos Pedros, de Isabel, de Prudente e dos Conselheiros porque nenhum desses governos foi tão cheio de consequências como o seu. A construção de Brasília e a Conquista do Oeste desviaram completamente o curso de nossa história e deram-lhe perspectivas até hoje não completamente avaliadas. E o admirável em Juscelino é que ele se conservou na ascensão, na glória, na queda e na adversidade dentro das mesmas qualidades de endurância, brandura, tolerância, alegria e bondade que tinham habitado o menino cuja infância foi magistralmente traçada por Francisco de Assis Barbosa e cujas qualidades — sobretudo a do perdão — foram exaltadas por David Nasser em O Testamento, artigo que vale um livro. Eu que fui seu companheiro de bancos escolares, que acompanhei toda a trajetória de sua vida, que o quis como amigo, que compreendi sua pessoa e admirei suas qualidades — fico bestificado! de ver o ódio que não desarma duma minoria contra a figura deste Pai da Pátria... Não há o que discutir nisso. É responder com a nossa canção, adaptando-a à circunstância.

Tim-Tim, Tim-Tim
Tim-Tim, ô-lá-lá,
Quem não gosta dele?
Do que gostará?


(Do quarto livro de memórias de Pedro Nava, Beira-mar.)





JUSCELINO SEGUNDO ANTONIO CARLOS VILLAÇA:


Juscelino compareceu (...) a uma noite de autógrafos de que participei, na Livraria Cobra Norato, em Ipanema, com Raul Bopp, que lançava Samurai, e Aurélio Buarque de Holanda, que autografava O chapéu de meu pai.


Não me lembrava direito como se escrevia o sobrenome dele. Escrevi apenas — "A Juscelino, glória do Brasil." Ele respondeu, gentilíssimo, envolvente — "Você é que é glória do Brasil." Parecia um bailarino.

Jantamos juntos em casa de Altair de Souza, no Flamengo. Juscelino quase não comia. Tinha pavor de engordar. Sentou-se no chão. Parecia um estudante, um rapaz. Tão lépido. Tão inquieto. Tão buliçoso. De repente, Maria José de Queiróz, a mineira, se pôs a cantar. Juscelino se entusiasmou. Parecia um enamorado.

Um sábado, almoçamos no sítio do advogado Emer Vasconcelos, em Jacarepaguá. Aurélio Buarque de Holanda estava lá. Juscelino comeu como um passarinho. Meia banana. Um camarão. Quase não comia. Esfuziante, sim. Mas talvez nostálgico. Seus olhos de cigano buscavam algo, muito além. Era um ser insatisfeito...

(Do livro Os saltimbancos de Porciúncula, editado pela Record.)


Mais informações sobre Juscelino Kubitschek no Portal Brasil.

RABINO HENRY I. SOBEL: Deus

Artigo (brilhante) publicado originalmente na revista Shalom de julho de 1983. 

Mas antes a história de como este artigo veio parar em minhas mãos. Em 14 de outubro de 1995, após ouvir o sermão do rabino na véspera de Yom Kipur, minha falecida tia, Helga Flatauer, escreveu-lhe uma carta (em inglês, aqui traduzido) dizendo (entre outras coisas): "Vi-o de pé falando sobre Deus. [...] A questão é: Quem é DEUS? Um homem de barba branca como nos contam quando somos crianças e a quem rezamos antes dormir? Uma força cósmica? DEUS é 'amor'?" Em resposta o rabino enviou-lhe este artigo que acabou parando no meu arquivo junto com as cartas. A seguir, o artigo e as cartas. 

Se achar que as letras do artigo estão pequenas, aumente o zoom da página (Ctrl + botão de rolagem do mouse).





Clique no marcador Deus abaixo para ler outras postagens neste blog sobre este tema. E veja meu vídeo abaixo com uma visão crítica da Bíblia:

O SILÊNCIO E AS MAJESTADES DAS SEXTAS-FEIRAS SANTAS, de Carlos Heitor Cony


Nas Sextas-Feiras Santas do passado, os trens da Central do Brasil não apitavam nem mesmo quando entravam ou saíam dos túneis espalhados pelo trecho que ia de Belém, atual Japeri, até Mendes, subindo a serra do Mar com o esforço de suas caldeiras alimentadas com o bom, o sólido, o inigualável carvão inglês.

Com a guerra, em 1939, o carvão importado foi substituído por lenha nacional, que muito devastou florestas, fazendo da carne de nossas árvores o alimento daquelas fornalhas escuras que produziam uma fumaça esbranquiçada. Muitos trens não conseguiam subir a serra e precisavam do reforço de uma locomotiva extra, que ia e vinha engatada nos últimos vagões, como um Cirineu ajudando a composição a levar a cruz ao alto de um calvário ferroviário.

Mas os trens não apitavam nas Sextas-Feiras Santas. Passavam silenciosamente pelas estações menores, fazendo estremecer as casas mais próximas e participando, com a sua mudez, da mudez geral, pois os rádios também não tocavam, nem os sinos das igrejas: era uma pausa no ruído do progresso e do mundo. Não chegava a ser triste, mas era diferente, doía em algum lugar, por menos que se pensasse na paixão e na morte de um Deus crucificado.

Joaquim Pinto Montenegro, que viveria toda a sua vida em torno dos trens da Central, tinha nas Sextas-Feiras Santas o seu grande dia. Era com orgulho que fiscalizava cada trem que passava por Rodeio, estaçãozinha perdida entre os dois maiores túneis do Brasil naquela época, o 11 e o 12. Não chegava a ser um homem religioso; na verdade, pouco ligava para o drama antigo do qual tinha uma noção vaga e descomprometida.

Achava que, como funcionário do Departamento de Dormentes e Trilhos, cumpria-lhe tomar conta da tradição que já encontrara quando, aos 20 anos, entrara como sinaleiro do entroncamento que desviava as locomotivas no pátio de manobras, pouco antes de os trens serem devorados pela bocarra escura do túnel 12, o maior do continente na sua opinião e na de seus iguais do quadro efetivo dos servidores da Central do Brasil.

Por isso, principalmente, a Sexta-Feira Santa era um dia especial, diferente de todos os outros, pois os trens não apitavam, e isso lhe exigia um esforço suplementar, embora nem trabalhasse nesse dia. As locomotivas ficavam apagadas e imóveis como bichos que dormiam um sono de ferro. O tráfego era menor em todo o percurso da serra do Mar.

Ele desfrutava o feriado tomando conta dos trens que inesperadamente surgiam do túnel 11, sem apitar, sem avisar que estavam chegando  e Joaquim Pinto Montenegro olhava com emoção a comprida Mallet, made in England, que parecia uma viúva enorme e sem grito, vencendo penosamente a garganta que a separava do comprido, do sinistro túnel 12.

Joaquim Pinto Montenegro não precisava dos apitos para saber quem chegava ou saía dos dois túneis, que formavam, na sua opinião e na de seus iguais, as jóias mais preciosas da coroa de glórias da engenharia ferrocarril nacional. Ele as pressentia milimetricamente. Pelo silêncio de cada locomotiva, sabia o nome do maquinista, do foguista, do chefe do trem que, naquele instante, deveria estar percorrendo vagões, avisando aos passageiros que a próxima estação era Rodeio.

Joaquim Pinto Montenegro não era religioso, mas respeitava a Sexta-Feira Santa como respeitava o código de sinais que sabia fazer com as duas bandeirinhas, uma verde, outra vermelha, orientando as pesadas locomotivas que obedeciam rigorosamente a seus movimentos, parando quando a bandeira era vermelha, indo à frente quando era verde. Nem a mão formidável de Deus, regulando o movimento dos astros no espaço infinito, era mais solene e poderosa do que a de Joaquim Pinto Montenegro.

O último trem passava em direção ao túnel 12. Era já noite fechada na serra do Mar, o barulho ritmado dos vagões iluminados acentuava o silêncio geral. Era hora de Joaquim Pinto Montenegro fazer uma coisa extraordinária na sua vida de guia e de protetor dos trens da Central do Brasil.

Como todo mundo naquela época, Joaquim não comia carne naquele dia santificado pelo silêncio das locomotivas que cheiravam a carvão civilizado. Como todo mundo, Joaquim  comera peixe no almoço. E, como todo mundo, sentia-se um pouco enfraquecido ao final do dia. Era necessário suplementar suas energias com um prato de canjica que todos tomavam nesse dia, como um sacramento, um alimento sagrado e permitido. Joaquim tomava sua canjica com solenidade, com a mesma autoridade com que manobrava suas bandeirinhas no pátio de manobras.

Tudo estava consumado, todas as leis e os costumes do mundo tinham sido cumpridos mais uma vez. E Joaquim Pinto Montenegro poderia dormir em paz, na paz do silêncio enorme que tombava sobre Rodeio, no silêncio e na majestade das Sextas-Feiras Santas do passado. 

(Publicado originalmente na Folha de São Paulo em 13/4/2001. Fotografia de Dana Merril obtida na Biblioteca Nacional Digital.)