ANA, SÃO JORGE DERRETEU!, de Marcia Frazão


Ontem, quando acordei e vi São Jorge derretido no chão da sala, afogado em um mar de açúcar, desconfiei que podia ser algum sinal. Bem verdade que quando o ganhei de presente de Ana Durães, ela me aconselhou a comê-lo ao invés de guardá-lo. "Vai derreter, " ela disse.

Mas quem, em sã consciência, comeria um santo? Por mais que os músculos dele saltassem da armadura de ferro, por mais que aqueles olhos azuis provocassem terremotos e arrepios na carne, santo é santo! Comer São Jorge? Nem morta!

Face à minha determinação, Ana, formada e diplomada nas artes dos santos, sugeriu uma camada de verniz. "De repente, impermeabiliza", ela disse.

A princípio, a solução pareceu acertada. Mas quantas camadas seriam necessárias? Certamente muitas, se ele não fosse santo e fosse homem, mas santo, sem nenhuma nódoa para esconder e nenhuma vaidade para exibir, é uma outra história. Não havia pincel no mundo que deslizasse um quase tico de verniz desnecessário.

Não sei se pelos muitos copos de vinho ou pela euforia de estarmos reunidos - eu, Ronaldo, Ana, André Mux, Adriana Reis e Allison - a degustação do santo foi esquecida. De cima da mesa São Jorge nos espiava com olhar pidão, e Adriana jurou ter visto umas gotas vermelhas escorrerem do canto da boca dele. Se fosse em outro contexto, numa ocasião mais sóbria, todos nós admitiríamos o milagre, mas já estávamos na sexta (ou seria oitava?) garrafa de vinho, com os pés enfiados na região onde milagre é ficar sóbrio, e deixamos Jorge quieto no seu canto.

Melado, caramelado, desengonçado na sela do seu cavalo branco, o santo brandia a lança sem o mesmo ímpeto de antes. "São Jorge está bêbado. É melhor comê-lo", disse Adriana sem um mínimo pudor.

Receosos de recairmos em pecado mortal, não nos aproveitamos da santíssima embriaguez e Jorge ficou na mesa, chapado. Depois que todos foram embora o carreguei para o altar. E lá ele dormiu por alguns meses, até que Gilda Brasileiro, minha amiga química, filha de Iroko e Oxum, me aconselhou a servir cerveja para ele. "Mas só serve em copo de prata", ela recomendou.

Durante um ano ele se entupiu de cerveja, até que ontem, por coma alcoólica ou mistério que só os santos conhecem, São Jorge derreteu. Escafedeu-se sem deixar nenhum bilhete, deixando no ar uma sinistra pergunta: teria sido melhor comê-lo?

MENINA NA JANELA, de Renata Valle


A menina na janela gosta de ver o céu. Céu da manhã, azul clarinho, aceso pela luz do sol, esfumaçado por dispersas nuvens brancas. E as nuvens brancas que ficam esverdeadas, invadidas por ariscas maritacas que, fugitivas, voam em bandos, convidando-nos à liberdade: sobrevoam o pátio da escola, exibem-se para as crianças, fazem algazarra, animam a hora do recreio, arrancam sorrisos, bagunça contagiante. Bagunça que vem do céu.

A menina na janela gosta de ver quando o dia esperneia, mas acaba por ceder, vencido, pintando a tarde de cereja e entregando o céu à escuridão da noite. A escuridão da noite trará luzes coloridas, brilhando em toda parte, acendendo a cidade. Acenderão também os carros e seus corre-corres: subindo calçadas, galantes, amantes, derramando-se sobre as pontes preguiçosamente esticadas, entediadas, pontes ansiando tornar-se felizes maritacas.

A menina na janela gosta de ver as outras janelas abertas, fechadas, as luzes vermelhas lambendo a avenida, o morro pretinho pintado de uma infinidade de pontos brancos e destacando-se à frente do céu azul que o agasalha. E o céu azul que agasalha está cravejado de estrelas, damas elegantes, brincando de acender e apagar. E no céu a menina vê a gorda lua cheia: toda dona de si, toda cheia de si. Vaidosa, brilha cintilante, derrama-se, lânguida, fatal.

A menina gosta de ver os telhados das casas, a cúpula da igreja, a grande cruz mirando o céu, apontando para o alto, as muitas árvores escondendo ninhos de pássaros plebeus, arredios, que insistem em procriar em reino de asfalto e cimento. E no reino de asfalto e cimento a menina vê postes magrelos, caules compridos, terminando em belas flores de luz. E vê asfalto e cimento que não acabam mais, espalhando-se mais e mais todos os dias.

A menina gosta de ficar nas pontas dos pés e se esticar para olhar ao longe. E ao longe vê o relógio gigante guardião das horas. O gigante conta o tempo, aproveita para cochilar enquanto dormem os olhares curiosos, enquanto não volta o dia, enquanto repousa a menina, mantendo a janela aberta.

(Ilustração: Quadro "Mädchen am Fenster" - "Menina na Janela" - de Klara Filipowna Wlasowa, 1958.)