O EMBUSTE IDEOLÓGICO, de DENIS LERRER ROSENFIELD

PUBLICADO ORIGINALMENTE EM O GLOBO DE 30/12/2013



O assassinato político de Jang Song-Thaek, tio e mentor político de Kim Jong-un, Líder Máximo da Coreia do Norte, apesar de grotesco, não deixa de ser algo, digamos, “normal”, dada a característica stalinista deste regime político. Nada muito diferente do que a esquerda totalitária fez na extinta União Soviética, nos hoje amplamente conhecidos Processos de Moscou, que eliminaram a velha guarda bolchevique.

Em outro célebre episódio, Trotsky primeiro foi apagado de uma foto junto a Lênin em uma comemoração revolucionária para, depois, ser “apagado” com uma machadinha na cabeça, no México. Quem perpetrou tal assassinato foi um agente de Stálin, Ramón Mercader, que acabou placidamente os seus dias, em Cuba, com todos os privilégios da nomenclatura castrista.

Nada tampouco distinto do que Mao fez na China. Os camaradas, amigos de ontem, tornavam-se os inimigos de hoje, taxados de contrarrevolucionários a serviço do capitalismo.

No Brasil, ainda atualmente, há os que admiram Marighella e a guerrilha do Araguaia, que compartilhavam das mesmas concepções marxistas. Há, em todos esses casos, uma patológica perversão das ideias.

O assassinato político tornou-se uma forma “corriqueira” de a esquerda resolver os seus conflitos intestinos. Processos jurídicos de fachada, tortura, acusações infundadas e mortes eram características próprias da esquerda no Poder. Não há sequer uma experiência histórica de compatibilização entre socialismo/comunismo e democracia. Lá onde o socialismo vingou, a democracia jamais germinou. Cuba e Coreia do Norte são rebentos deste período.

Se tomarmos a Coreia do Norte e a Coreia do Sul, teremos uma oportunidade rara de comparação entre socialismo e capitalismo. O capitalismo sul-coreano produziu uma sociedade próspera, com alto grau de desenvolvimento industrial, científico e tecnológico. Empresas e universidades lá se retroalimentam. Sua educação tornou-se referência mundial. A democracia é o seu regime político.

A Coreia do Norte, por sua vez, é um regime tirânico, liberticida, que reduz a sua população a uma vida miserável. A fome grassa e os servos deste país sucumbem à falta de alimentos. Nada funciona, a não ser o Exército dotado de armamento nuclear, usado como ameaça constante à Coreia do Sul. Os seus processos políticos são uma caricatura, tendo sido neste país instaurada uma monarquia comunista, com direito de hereditariedade!

O século XX também apresentou outra experiência altamente significativa. Só os tolos hesitam em extrair dela o seu ensinamento. Havia duas Alemanhas, a Ocidental, capitalista, e a Oriental, socialista.

A primeira se caracterizava pela pujança, pelo respeito às liberdades, por uma vida sindical forte, por um crescimento econômico notável e por condições sociais invejáveis. Sua indústria tornou-se um exemplo mundial. Veio a ser uma das maiores economias do Planeta.

A segunda tinha como característica central a dominação violenta de sua população, com uso do partido e de sua polícia política. As suas condições sociais eram precárias e a liberdade era sistematicamente pisoteada. Tais eram seus problemas que o socialismo sucumbiu às suas próprias contradições. Nem os prussianos resistiram ao socialismo. A queda do Muro de Berlim foi um símbolo da derrocada socialista/comunista. A ideia socialista esborrachou-se no chão.

A esquerda tupiniquim, porém, teima em nada aprender. Parafraseando Talleyrand, discorrendo sobre a aristocracia emigrada, que se obstinava em não reconhecer os eventos revolucionários: “Eles nada aprenderam e nada esqueceram.”

Para essa esquerda, o socialismo continua plenamente vigente, sendo superior ao capitalismo, compreendido como fonte de todos os males. Trata-se de uma visão religiosa: o capitalismo é o pecado, o mal sobre a Terra, a origem do egoísmo e do lucro, enquanto o socialismo seria a redenção da humanidade, a solidariedade enfim conquistada entre os homens.

O embuste consiste no seguinte. O capitalismo não é comparado ao socialismo. Se isto fosse feito, a comparação, por exemplo, deveria ser entre a Alemanha capitalista e a socialista, ou ainda, entre a Coreia capitalista e a socialista. Os termos da comparação teriam parâmetros que serviriam de critério para qualquer avaliação.

A “comparação” é de outro tipo. Compara-se o capitalismo real, existente, com a ideia do socialismo, forjada por aqueles que lhe atribuem todas as perfeições. Ou seja, atribui-se ao socialismo todas as perfeições e, de posse destes atributos, passa-se a verificar se eles “existem” no capitalismo.

Isto é equivalente a comparar uma sociedade perfeita a uma imperfeita, ou ainda, a comparar o homem a Deus. É claro que o homem, com suas imperfeições, sairá sempre perdendo quando comparado a Deus. O mesmo destino teria a comparação entre uma sociedade perfeita (ideal) e uma imperfeita (real).

Mais curiosa ainda é a afirmação de alguns segundo os quais haveria plena compatibilidade entre socialismo e democracia, quando isto não se verificou historicamente em nenhum lugar. O socialismo no Poder se caracterizou pela tirania totalitária. O “pensamento” esquerdista, se é que se pode utilizar essa palavra, é totalmente capturado pelo dogma, esse repouso dos que se recusam a pensar. É o mundo das ideias descontroladas, que não podem ser verificadas empiricamente. Ora, só onde o capitalismo prosperou é que a democracia representativa foi consolidada e os cidadãos puderam usufruir da liberdade.

Há uma mentalidade religiosa, teológico-política, que guia a esquerda tupiniquim. Vive de “preconceitos” contra a economia de mercado e o direito de propriedade, postulando, como se fosse uma coisa teoricamente séria, a “utopia” ou o “socialismo” enquanto ideias “superiores” ao capitalismo. Na ausência de conceitos, contenta-se com diatribes contra o “neoliberalismo” e outras patranhas do mesmo tipo, como se fazer política residisse somente em enganar o próximo, em abusar da inteligência alheia.

FORÇA CHAPE, de CYRO DE MATTOS


Tanta dor, tristeza. A vida ceifada com golpe imenso e impiedoso. O que dizer sobre o absurdo que destrói a inocência na traição da madrugada? É muito difícil escrever alguma coisa para diminuir a dor provocada com a tragédia aérea que envolveu os jogadores da Chapecoense, dirigentes, jornalistas e a tripulação, na última terça-feira de 29 de novembro. A queda do avião, nas proximidades do aeroporto de Medellín, deixou um trauma terrível no qual das 76 pessoas 71 morreram, 19 eram jogadores da Chapecoense; apenas 5 sobreviventes foram resgatados dos escombros.

Na segunda-feira à noite, depois de assistir ao Jornal Nacional, da TV Globo, dirigi-me ao computador para atualizar a correspondência e, a seguir, dar andamento à escrita de meus textos literários. Nesse hábito que a literatura me impõe há anos, costumo viajar com as palavras pelas pastagens silenciosas da noite. Dessa vez, ao terminar mais uma tarefa do fazer literário, pela madrugada de terça-feira, estava extenuado, sem sono. Liguei a televisão em busca de algum programa que amenizasse o cansaço, trazendo daí a pouco o sono.

Logo fiquei de frente a um impactante momento trazido pela notícia que me deixou perplexo. O repórter anunciava na televisão que o avião com a delegação da Chapecoense, sem combustível, havia caído em terras colombianas, a cinco minutos do aeroporto. Bateu no morro, descera se rasgando entre as árvores até ficar destroçado no fundo enlameado de grande cratera. Com o tempo chuvoso, a televisão mostrava os homens do salvamento em extremo esforço, buscando localizar os corpos. Havia na agonia deles a esperança de encontrar sobreviventes.
          
         A tragédia era por demais absurda, atingia aquele ponto insensato em que forças cegas na avidez da morte convergem para o horror e a estupefação do acontecimento. Haveria de ter uma saída naquele quadro desesperador para transformar o trauma em algo menos doloroso, pensei. Haveria mais sobreviventes. Era inacreditável, injusto, que o sonho de jogadores vitoriosos, heróis que estenderam para milhares de torcedores a alegria como forma de vida, fosse interrompido pela mão pesada do inconcebível. Meu Deus, não era possível, não era possível.

Na Arena Condá, no oeste de Santa Catarina, havia assistido pela televisão a proeza de um time de porte médio, de uma cidade de pouco mais de duzentos mil habitantes, eliminar da Copa Sul-Americana o poderoso time copeiro argentino do Independente, tantas vezes campeão mundial de clubes. Vi eliminar o São Lorenzo, outro time famoso argentino, campeão da Libertadores. Vi deixar para trás também a respeitável equipe do Junior Barranquilla, da Colômbia. No desastre aéreo, como num pesadelo, o futebol agora pendia na dor, somente na dor. Foi então que a esperança, de dentro dos pesares, dos rostos em lágrima, fez brotar sua luz verde com o facho da solidariedade. No estádio Atanásio Girardot onde seria realizada a partida final da Copa Sul-Americana, entre a Chapecoense e o Atlético Nacional, a esperança inventou o carinho para amenizar o sofrimento de milhares. O povo colombiano, de branco, com velas acesas, rezava, chorava. Aplaudia, dizendo, a uma só voz, que o campeão daquela temporada na América do Sul era o time brasileiro. “Força Chape!” Um grito solidário ecoava pelos campos de futebol do mundo, propagava-se com os ventos do amor pelas vastidões do eterno, molhando-nos, nessa hora da pureza, de humano entendimento.

      Imagino que, ante o sentimento de coragem e nobreza do povo colombiano, a morte naquele instante teve vergonha de ser a conhecida mulher indesejada de nossos caminhos, a soberba detentora dos nossos ossos.

  • Cyro de Mattos é escritor e poeta. Primeiro Doutor Honoris Causa da UESC. Membro efetivo do Pen Clube do Brasil, das Academias de Letras da Bahia, Ilhéus e Itabuna. 

MILAGRE, de RUBEM ALVES


Não tenho problemas com Deus. mas tenho muitos problemas com aquilo que os homens pensam sobre Deus.

— Tudo bem? — assim saudei a moça que me atendeu na papelaria.
— Tudo bem, graças a Deus —, ela me respondeu sorridente. Aí eu, chato, querendo testar a sua argúcia teológica, fiz uma outra pergunta:
— E se você não estivesse bem seria graças a quem? 
Ela ficou atrapalhada. Essa possibilidade nunca lhe havia passado pela cabeça. Eu nunca ouvi ninguém dizer: “Vou mal, graças a Deus! Pois deveria, para ser coerente.

A brasileira que se salvou da catástrofe do World Trade Center teologou diante da televisão:
— Foi Deus que me salvou...
Aí fiquei pensando: Para Deus, não faz diferença salvar um ao salvar cem mil. Para Deus nada é difícil. Tudo é fácil. Salvar uma mulher ou salvar o mundo inteiro requer o mesmo esforço. Se aquela mulher está certa, se foi Deus quem a salvou, porque não salvou os outros?

Dostoiévski: “O que os homens desejam não é Deus, mas o milagre“. Os deuses são invocados, não por serem amados, mas por serem poderosos. Santo que demora a fazer milagre é abandonado... A afirmação de que 99% dos brasileiros acreditam em Deus pode assim ser traduzida: 99% dos brasileiros acreditam ser possível manipular Deus, a fim de realizar os seus desejos. Cada religião é um livro de receitas sobre “como manipular Deus“.

Do livro Quarto de badulaques.

PS. POR FALAR EM DOSTOIÉVSKI, VEJAM MEUS VÍDEOS SOBRE A LITERATURA DO GRANDE AUTOR RUSSO:


REFLEXÕES EM TORNO DE UMA TRAGÉDIA de ALEXEI BUENO

Alexei Bueno (direita) no lançamento de seu livro de poesia Anamnese, com o editor deste blog 

TEXTO PUBLICADO ORIGINALMENTE EM O GLOBO DE 30/11/2016 E REPRODUZIDO AQUI COM AUTORIZAÇÃO DO AUTOR

As grandes tragédias, e ainda mais as coletivas e completamente inesperadas, como foi o caso da que se abateu sobre o Chapecoense - titulares e reservas, comissão técnica e auxiliares, na companhia natural de jornalistas e tripulantes – aguçam em todos nós a percepção amarga daquilo que muitos chamam o “escândalo da morte”, esse fenômeno natural que para o homem nada tem de natural, já que foi contra a natureza, por oposição a ela, rompendo a sua conformação perfeita ao momento e ao espaço, que como homens nos firmamos. A humanidade é contra natura em sua essência, e se alguém sintetizou num verso tudo o que venho dizendo, foi o poeta português Jorge de Sena, ao abrir o maior de seus poemas, “A morte, o espaço, a eternidade”, com este alexandrino do qual lamento não ser o autor: “De morte natural nunca ninguém morreu”.

Na tragédia desta madrugada, contribuíram ainda para essa sensação a necessária juventude dos atletas, a estranheza da cessação do fenômeno vital em indivíduos que, por sua própria atividade, se notabilizavam exatamente pela excelência de sua constituição física e pela agudeza de seus reflexos, tudo isso unido a uma característica específica de nossos tempos, a pletora visual na qual vivemos, quando, entre celulares e smartphones, todos filmam tudo, permitindo, portanto, acompanhar os mortos, em suas falas e gestos, até a sua escala na Bolívia, pouquíssimo antes do acidente.

Essa falsa proximidade com os mortos que nos traz a preservação do registro visual e sonoro perdeu muito de sua eficácia com a total banalização de tal possibilidade. Nossos olhos, saturados desde a primeira infância pela imagem em movimento, prejudicam gravemente nosso entendimento do que significou tal revelação para aqueles que estiveram presentes à primeira sessão de cinema, a 28 de dezembro de 1895, no Grand Café do Boulevard des Capucines, em Paris. Nos jornais que logo em seguida divulgaram tal evento histórico é que podemos avaliar o impacto do primeiro encontro do olhar humano com o movimento eternizado – ainda sem o som concomitante - especialmente nesta resenha que ficaria célebre:

É a própria vida, é o movimento vivo que se vê no cinematógrafo. A fotografia deixou de fixar a imobilidade. Ela agora perpetua a imagem do movimento. Quando esses aparelhos estiverem ao alcance do público, quando todos puderem fotografar aqueles que lhes são caros não mais numa forma imóvel, mas em pleno movimento, em plena ação e nos seus gestos familiares, a morte deixará de ser absoluta.”

E é assim, com um pouco desse falso consolo que para nós já não o é, que revemos os atletas desaparecidos na sua explosão de júbilo com a classificação para a final da Sul-Americana, dando entrevistas ainda em Guarulhos, brincando a bordo da aeronave, até a fatal decolagem em direção a Medellín, cidade que nada teve a ver com as causas do desastre desta madrugada, mas que já ficara tristemente célebre, há 81 anos, com o estúpido desastre que matou Carlos Gardel.

A condição humana é trágica, gostem disso ou não os otimistas, e, fora de alguma hipótese de transcendência, só resta ao ser humano duas posturas radicalmente opostas, ou o incompleto raciocínio, ou seja, a recusa em olhar até o fundo o abismo de nossa fragilidade e nossa finitude, ou o desespero, e entre as duas a primeira posição é maciçamente a preferida.

Em certa época, ainda recente, esteve em plena moda – não sei se ainda está - os pais filmarem o parto dos próprios filhos, ato fisiológico cuja eternização sempre me pareceu do mais absoluto mau gosto, motivo pelo qual eu jamais assistiria, caso existisse, a um registro da minha incontornavelmente nojenta entrada no mundo. Certa vez perguntei a um grande amigo, que acabara de fazer tal registro, se ele não percebia que estava filmando – monstruosidade das monstruosidades - o nascimento de um morto, pois aquele rebento inaugural, mais ou menos sujo de sangue e de placenta, já nascera condenado à morte, e nada impossibilitava que tal filme sobrevivesse à sua própria desaparição. Só recebi em resposta o silêncio.

Para os nossos heróis do Chapecoense, felizmente, sobrou o registro visual e sonoro de seu apogeu vital e de sua alegria, aquele que realmente pode dar a suas famílias, seus amigos e seus descendentes diretos – ao menos duas das vítimas deixaram esposas grávidas – a sensação da presença, da persistência da memória e de que a morte deixou de ser absoluta.

29-11-2016

Nota do editor. O editor deste blog acredita que, além das duas posturas arroladas por Alexei em relação à morte  negação e desespero  existe uma terceira: indiferença (estoicismo). Afinal, antes de nascermos, já fomos mortos, de modo que voltaremos a um estado que já conhecemos e que em nada nos fez sofrer. E já que falamos na indesejada das gentes convido o leitor a ler minhas postagens de poemas & textos mórbidos. Procure no menu da barra vertical direita.