Texto gentilmente fornecido por Sidnei Vieira, do Museu Casa Guilherme de Almeida. Para ler sobre minha viagem a Sampa e visita à casa, clique em São Paulo no menu do cabeçalho ou da barra lateral direita. Fotos do editor do blog.
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Museu Casa Guilherme de Almeida - Rua Macapá, 187 - Perdizes - a 1,2 km da estação de metrô Hospital das Clínicas |
– Que ideia a sua, ir morar naquele fim de mundo!
Era o que me diziam os amigos quando, há doze anos, construí
a minha casa nesta colina, a oeste do vale do Pacaembu.
Fim de mundo?... Podia mesmo parecer isso. Rua curva,
corcovada, de um só quarteirão e com três casas somente (a minha foi a quarta)
separadas por terrenos sem muro nem cerca e eriçados de mato hirsuto e anônimo
— era apenas uma estrada rústica. A nota agreste: ponto alto e deserto, exposto
a descabeladas ventanias que assobiavam noite e dia; e, numa árida escarpa, a
uns quarenta metros dos meus muros, o ninho de todos os gaviões que erguiam voo
— pinhé! pinhé! — e iam, lá longe, fisgar os pardais da Praça da República. A
nota fúnebre: no jardim da casa fronteira, uma lâmpada triste, única iluminação
da rua, pendia de um “L” invertido feito de fortes vigas de peroba que formavam
exatamente uma forca; e atrás, em pano-de-fundo, parte pobre de um cemitério,
uma encosta semeada de túmulos e cruzes. A nota gloriosa: no horizonte, ao
norte, fechando a perspectiva da rua, o recorte pontudo do Jaraguá, o “Senhor
do Plaino”, primeira numeração de ouro no Brasil; e, sobrelevando o apinhado
central, a sudeste, o Banco do Estado, ascensional, alvo obus de louça, com a
sua ogiva de luz fluorescente nas noites caladas. A nota simbólica: com o
Estádio Municipal, que é toda a alegria da Vida, de um lado, e, de outro, a
necrópole do Araçá, que é toda a tristeza da Morte, assim, entre os dois
extremos da contingência humana, a minha rua ia indo filosófica, indiferentemente.
A nota pessoal: aí assentei a minha casa, porque o lugar era tão alto e tão
sozinho, que eu nem precisava erguer os olhos para olhar o céu, nem baixar o
pensamento para pensar em mim.
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Vista da casa |
E a minha casa me fez fazer, entre os meus “Dez Versos para
Casa da Colina”, este verso:
“A estrada sobe, para, olha um instante, e desce”...
Ora, eu subi, parei, olhei um instante, e fiquei. Fiquei
vivendo a vida daquele suposto fim de mundo, que era de fato um começo. Começo
de um pequeno mundo que eu vi, dia a dia, ir-se fazendo em torno de mim. Todo
aquele caos primitivo foi-me, pouco a pouco, encantando. Quando das grandes
chuvas, o lamaçal, escorrendo pela rampa, fazia atolar-se ali embaixo, nas
valetas de confluência, automóveis e guinchos. Os “chauffeurs” de praça
deixavam a gente na esquina, recusando-se a subir, com medo da derrapagem. O
muro do cemitério ruiu, certa noite, minado pela enxurrada a gorgolejar,
levando ladeira abaixo ossadas humanas...
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Dentro da casa |
Assim mesmo, mais duas ou três casas ergueram-se, bonitas e
corajosas, na minha estrada. E, por uma bela manhã do ano de 1950, surgiram
autoniveladoras, rolos compressores, caminhões despejando pedra britada e
tambores de piche; aplainou-se o leito carroçável; assentaram-se os meios-fios;
e, de ponta a ponta, desdobrou-se pela estrada uma grossa, negra e lisa
passadeira de borracha.
Asfaltada a rua, multiplicaram-se logo, nos terrenos
baldios, as tabuletas com uma designação de metragem e um número de telefone. E
foram desaparecendo as tabuletas e aparecendo uns homens que abatiam o mato e
deitavam-lhe fogo. Outros, com caminhões descarregando enormes tábuas
servidas... Mais outros, construindo com tijolos usados uma espécie de maloca,
que tinha um fogareiro dentro, fumegando. Outros mais, que nivelavam o terreno,
esticavam barbantes presos a pequenas estacas, desenhando no chão um problema
geométrico. E ainda outros, trazendo pedras, tijolos, telhas, cal, cimento,
areia e cerâmica, e abrindo fossas retilíneas das quais subiam, verticais, ao
mando de um fio de prumo, puras, viçosas, claras, as casas novas. Não tardou
muito, a Light plantava, ao longo dos passeios cimentados e gramados, oito
postes de concreto: e na ponta dos seus braços de cano de ferro, acenderam-se,
numa só noite, as oito lâmpadas. Foi a festa da rua.
Começou a haver, então, criançada batendo bola, empinando
papagaios, pedalando bicicletas, riscando a giz no asfalto a “amarelinha”.
Carros estacionados a frente das casas. Gente conversando nos portões. A buzina
do tripeiro e o pregão do fruteiro. Domingos de “short”. Corretores e
interessados, que chegam de automóvel, param junto aos poucos lotes restantes à
venda, farejam, tomam nota e...
Que idéia, a minha, vir morar tão perto do centro!
Ela está ali mesmo, a Cidade Desumana, a seis minutos de auto
e quinze de ônibus. Ali mesmo, onde a joalheria dos cartazes-luminosos enfeita
as noites turbulentas. Ali mesmo... Que ideia a minha!
Mas, não. Eis o noturno da minha mansarda encarapitada nesta
colina, isolada na altura. Corro os caixilhos da janela. E ouço São Paulo. O
bojo acústico do Pacaembu está aí embaixo. Ausculto-o. Nele reboa e chega-me
aos ouvidos — como se escuta nas conchas um oco marulho de distante oceano — o
surdo murmúrio da urbs absurda. E ela me parece tão longe, tão longe, que isto
aqui, graças a Deus, é mesmo um fim de mundo.
De Guilherme de Almeida leia também neste blog ESCADA DE MINHA MANSARDA.