FELIZ 2014, de PAULO GUEDES



CRÔNICA PUBLICADA ORIGINALMENTE EM O GLOBO DE 30/12/2013

A espécie humana insiste na extraordinária ousadia de rejeitar suas despretensiosas origens. O homem criou narrativas de fuga de sua modesta natureza. Demos fôlego a nossas precárias existências elaborando as primeiras crenças e religiões. Era preciso dar sentido a vidas biologicamente acidentais, fragilíssimas e sobretudo curtas. O encantamento do mundo foi uma exigência de mentes primitivas assombradas pela grandiosidade de um incompreensível universo. Filósofos e teólogos deram significado a vidas efêmeras construindo pontes para mundos transcendentes, habitados por almas eternas. Sopros de esperança e magia alimentando nossa vontade de viver. 

"O homem, um curioso acidente ocorrido num canto do universo, é inteligível: sua mistura de virtudes e vícios é aquela que se pode esperar do resultado de uma origem fortuita. Se me fosse concedida a onipotência e milhões de anos para experimentá-la, não me gabaria de ser o homem o resultado de todos os meus esforços", observa o resoluto ateísta Bertrand Russell. "É curiosa a ideia de que uma proposta cósmica superior esteja especialmente voltada ao nosso pequeno planeta, pois seremos destruídos quando o Sol explodir e se tornar uma estrela anã fria e branca daqui a 1 bilhão de anos", prossegue Russell em suas dúvidas quanto às boas intenções do universo em relação aos humanos. O matemático e filósofo inglês tinha especial afeição por Baruch Spinoza, o farol holandês do iluminismo radical, cuja negação dos milagres e do sobrenatural, anúncio da morte do diabo e denúncia da credulidade das massas deram início ao desencantamento do mundo. 

Compreender é um milagre ainda maior que existir. A consciência da transitoriedade de nossas vidas e de sua improvável transcendência torna imperativo realizar nossas possibilidades com ainda maior intensidade. Criamos significados para nossas vidas aperfeiçoando nossos talentos e cooperando com os demais em busca de sonhos comuns. Para Rousseau, a diferença entre o homem e o animal está na faculdade de aperfeiçoamento, de fuga de seus instintos naturais. "A vontade ainda fala quando já se calou a natureza." Que possamos dar mais significados a nossas vidas, aperfeiçoando-nos a cada dia de 2014. Afinal, temos ainda 1 bilhão de anos pela frente.

NATAL DAS CRIANÇAS NEGRAS, de Cyro de Mattos

"Árvore das Naçôes" de José Henrique Breda (Pintores com a Boca e os Pés)

Eles moravam no morro, a irmã era chamada de Bel, o irmão de Nel. Bel não recebia da vida a doçura feita com mel. E Nel não vivia a vida, lá no alto morro, como se estivesse no céu. A mãe deles chamava-se Maria. Vestia trajes simples, gastos pelo uso diário. Nunca vestiu um manto azul feito de seda para brilhar no dia, como se via na igreja com a imagem da Virgem Maria.

A mãe de Bel e Nel era lavadeira. Tinha as mãos grossas de calo de tanto bater roupa na correnteza de águas límpidas. Durante a semana descia o caminho pelo barranco com a bacia de roupas sujas na cabeça. Quando chegava à beira do rio, colocava a bacia de roupas em uma pedra grande, junto ao areal. Não demorava e começava a tirar as roupas da trouxa. Molhava, ensaboava, esfregava, lavava e torcia. Estendia as roupas nas pedras pretas para secar ao sol. As pedras pretas, cobertas de roupas estendidas, de repente apareciam coloridas naquele trecho do rio.

O pai de Bel e Nel chamava-se José, era carpinteiro. Sabia usar com habilidade os instrumentos de trabalho: martelo, serrote, enxó, plaina e formão. Suas mãos pequenas faziam cadeira, mesa e banco. Consertavam porta, janela e portão. No mês que Bel completou seis anos de idade, o carpinteiro José começou a sentir dores na espinha. Os ossos inflamados, as mãos trêmulas, o corpo todo doía. À noite no quarto gemia. O coração dele foi diminuindo o amor que tinha por São José, o padroeiro da cidade, por causa da doença que o afligia. Até que um dia o pai de Bel e Nel perdeu para sempre sua constante fé em São José, o santo protetor dos carpinteiros.

O tempo de Natal era chegado. Nel queria um avião grande, Bel uma boneca que chora. Viram o velho gordo com o rosto rosado pela primeira vez na televisão da loja. Carregava um saco de brinquedos nas costas. Tinha a barba branca e os cabelos sedosos. Vestia uma roupa vermelha. Calçava botas pretas. Numa das cenas em que aparecia na telinha, deixava escapar do rosto rosado um sorriso que transmitia uma sensação de alegria e paz a cada criança que ia falar com ele e receber o seu carinho. Os meninos no passeio da loja não tiravam os olhos da televisão. Comentavam que o velho dava brinquedos à criançada sem querer nada de volta. Eles sorriam quando o velho aparecia com as roupas folgadas na telinha. Olhinhos deles todos no querer, como que encantados cintilavam.

Com olhinhos espertos e risinhos que enchiam os dentinhos, Bel e Nel foram olhar a árvore enfeitada com bolinhas e luzinhas, armada em um dos cantos da loja. À noite as luzinhas acendiam e apagavam. A estrela no alto comovia. Descobriram depois o presépio em outro canto da loja, com os camponeses, pastores e bichos. Ficaram admirando o pequeno estábulo do presépio, que tinha o teto coberto de folha de palmeira. Um galo de crista vermelha estava no telhado. Uma estrela brilhava na cumeeira, toda acesa de Deus. Nossa Senhora e São José mostravam os semblantes felizes, ao lado de Jesuscristinho, que dormia o sono bom no berço puro e quente, feito de palha. E os três reis magos, ali no presépio, davam a entender que não eram dignos de tocar na palha onde Jesuscristinho dormia o sono sereno.

Sentados no meio-fio do passeio da loja, Bel e Nel escutavam agora a musiquinha que saía alegre pelo alto-falante no poste. De vez em quando o alto-falante baixava o som. Então a musiquinha fazia um fundo musical no mesmo instante em que entrava a voz pausada do locutor. A voz dele informava que vinha de Belém a estrela mais bela. Fora trazida pelas mãos da maior madrugada. Seu brilho imenso descaía do céu e vinha iluminar a relva onde os bichos anunciavam e cantavam o nascimento do menino Jesus. A voz do locutor ficava emocionada quando comunicava que naquele dia o menino pobre nascia no estábulo. Esse menino Deus vinha para afugentar o mal de toda a terra. A voz doce do locutor terminava a mensagem de paz eterna com mais emoção no final quando então revelava que os sinos do mundo inteiro nessa hora tocavam: É Natal! É Natal!

O alto-falante voltava a tocar a musiquinha alegre, acompanhada dessa vez de uma cantiga cativante. Bel e Nel continuavam sentados no meio-fio do passeio. Recebiam o sopro da brisa que circulava na rua, ao final do dia. A brisa suavizava os rostos deles dois em silêncio, enquanto seus pequenos corações eram tocados pela cantiga que se repetia e começava assim:

Botei meu sapatinho
Na janela do quintal.
Papai Noel deixou
Meu presente de Natal...

Dizia a cantiga ainda mais, que o velhinho sempre visitava o quarto de cada menino onde deixava, ali, um brinquedo como presente naquela noite especial. Seja rico, seja pobre, seja branco, seja preto, como Bel e Nel, o velhinho sorridente e bondoso não esquece de ninguém.

Bel e Nel colocaram os chinelos na janela do quarto. Nada acharam no outro dia. Do ponto mais alto do morro ficaram olhando as nuvens alvas, trafegando no céu como grandes almofadas. Umas nuvens menores desenhavam brinquedos enquanto iam passando mansas diante dos olhos tristes deles dois.

Eles viam nesse instante a cidade lá embaixo, aos seus pés. Imaginavam a algazarra da manhã festiva. No passeio, no jardim, em qualquer canto da casa. Cada menino o brinquedo exibia. Saltava, dançava, corria, sonhava, voava, sorria.

Então souberam como o mundo dava as costas a Jesus. Não queria ver Maria. Escondia-se de José. O Natal era a lágrima que pelo rosto deles dois descia.

E uma canção desfazia.