REVISITANDO A OBRA DE HERBERTO SALES, de CARLOS HEITOR CONY

ARTIGO PUBLICADO ORIGINALMENTE NA FOLHA DE SÃO PAULO DE 28 DE OUTUBRO DE 2005


Publicado em 1944, quando Herberto Sales tinha 27 anos, "Cascalho" é o imenso romance que logo se colocou ao lado das grandes obras do nosso ciclo nordestino, iniciado com José Américo de Almeida e prolongado por Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado e Rachel de Queiroz.


Morando em Andaraí, na região da Chapada Diamantina, Herberto correspondia-se com Marques Rebelo, mas nunca comunicou-lhe que estava escrevendo um romance. Com mais de 650 páginas, enviou o livro a um concurso coordenado pela "Revista do Brasil", da qual Aurélio Buarque de Holanda era secretário. Na obsessão de catar regionalismos, Aurélio examinou o original e surpreendeu-se com a qualidade do texto. Sendo vizinho de Marques Rebelo, com ele comentou a obra que estava lendo. Ficou admirado ao saber que o autor de "Marafa" correspondia-se com o autor.

Herberto decidira encerrar a carreira literária que sequer começara. Juntara gravetos no quintal da casa de sua família, rasgara em quatro partes as 650 páginas da cópia que lhe restara. Queimara tudo. Aurélio sabia que o original enviado ao concurso seria jogado fora e decidiu ficar com ele, a fim de catar os vocábulos regionais que mais tarde enriqueceriam seu dicionário.

Quando Herberto escreveu a Rebelo, comunicando-lhe que queimara a cópia única do livro, foi surpreendido com a revelação de que o original continuava com Aurélio. Não foi difícil encontrar uma brecha no mercado editorial da época.

A consagração seria imediata. O ciclo do romance regional ganhava novo espaço em nossa geografia literária. O cenário não era mais a Várzea do Paraíba, os engenhos e as bagaceiras de José Lins do Rego e José Américo de Almeida. Tampouco era o litoral baiano, águas encantadas por sereias, o chão coberto pelos frutos cor de ouro do cacau, os territórios mágicos -mar e terra- que ganhariam o mundo na obra de Jorge Amado.

Nem era a seca que afugentava homens e animais pelas caatingas, o flagelo que daria a Graciliano Ramos e Rachel de Queiroz o ponto de partida para suas carreiras. Em "Cascalho", a fortuna e a maldição estão no ventre da terra. A lenda dos diamantes, fartos e encontrados até nas moelas das galinhas, na prodigalidade dos aluviões ribeirinhos, atraíam homens e mulheres, velhos e crianças. Véspera da fortuna imprevista, a miséria permanente acampava no decadente burgo excluído da civilização, povoado de fantasmas sacrificados na dura moenda dos diamantes e carbonados. A releitura do primeiro livro de Herberto Sales dá a sensação de um anúncio de Guimarães Rosa com seu universo vocabular e sua técnica inovadora.

Em "Além dos Marimbus", o livro seguinte, o cenário é o mesmo, mesma a região já exaurida pelas bateias dos faiscadores. A causa da miséria não é mais o diamante. É a madeira que, nos anos 20 e 30, já atraía a cobiça que devastava florestas e matas. Inovando o gênero com a técnica e a linguagem de seu primeiro livro, Herberto surpreende o leitor de hoje com a visão pioneira da ecologia que, naquele tempo, não entrara ainda no vocabulário e na preocupação do homem contemporâneo.

Até então, a abordagem crítica via nele mais um regionalista, do porte dos grandes nomes da safra nordestina que emergira na década de 30. O livro seguinte, "Dados Biográficos do Finado Marcelino", é um romance urbano numa Bahia que iniciava seu período de metrópole nordestina.

Poderia ter sido este o primeiro romance de Herberto, pois trata dos anos de formação em que o jovem provinciano chega à cidade grande. Ele mergulha na sociedade do incipiente capitalismo nacional, criando uma galeria de tipos que, mais tarde, se tornariam comuns na novelística brasileira.

Surge, então, na vida e na carreira de Herberto Sales, a figura magra e saborosa de José Cândido de Carvalho. Na virada dos anos 40 e 50, deram dimensão nova à formidável geração nascida nos anos 30. Dataria deste período o aparecimento do contista. Um de seus livros, "O Lobisomem e Outros Contos Folclóricos", foi a homenagem de Herberto a seu companheiro José Cândido de Carvalho, que estourara no cenário nacional com o antológico "O Coronel e o Lobisomem".

A despeito de sua obra, vasta e consagrada, traduzida em inglês, japonês, francês, polonês, italiano, tcheco e chinês, tendo o seu romance de estréia adaptado para o cinema e para a história em quadrinhos, Herberto isolou-se da vida literária.

Retirou-se para São Pedro da Aldeia, no litoral fluminense, onde reencontraria nas mangueiras que plantou e nas flores que semeou uma espécie de retorno ao seu Andaraí natal. Escreveria ainda uma série de confissões e memórias a que daria o estranho nome de "Subsidiário". Temos aí o homem Herberto Sales diante de si mesmo, atravessando a escura noite da alma. Suas anotações revelam o desencanto do escritor penetrado pela inexorabilidade do fim.

Olhando em volta, da altura humana e intelectual a que atingira, lamentando seus mortos, evocando seus fantasmas, o memorialista adota uma visão amarga, mas de vigorosa dignidade perante o mundo que viu e a vida que viveu.

PEDRO NAVA E OS MEANDROS DA MEMÓRIA


O TEXTO ABAIXO É O MESMO DO VÍDEO ACIMA

Não sei até que ponto você está familiarizado com a vida e obra do escritor Pedro Nava. Não é dos escritores mais badalados, nem daqueles que “caem” no ENEM, mas é (uso o tempo presente porque os escritores se eternizam com suas obras) um escritor extraordinário que, na época em que publicou seus livros (anos 1970 e início dos anos 1980), fez grande sucesso de crítica e público, inclusive chegando às listas de best-sellers, devido à originalidade de sua obra, diferente de tudo que já se escrevera antes no Brasil



Naquela época, embora eu fosse leitor contumaz, o Nava passou despercebido para mim. Só travei conhecimento com ele ao ler no jornal a notícia de seu suicídio, por motivos então misteriosos, com um tiro na cabeça, em maio de 1984, próximo a uma das árvores da calçada da Rua da Glória, onde morava. As informações no obituário sobre sua obra despertaram minha curiosidade, e a partir de então me tornei leitor de seus livros de memórias. Originalmente publicados pela José Olympio, com capas bem coloridas usando colagens do autor, depois seus direitos passaram para a Nova Fronteira, com capas mais clean mostrando o famoso relógio da Glória. O problema era que a Nova Fronteira “esqueceu” de publicar o volume 3, Chão de Ferro, e com isso a edição original pela José Olympio tornou-se rara, eu não achava nos sebos de jeito nenhum. Na época não tinha a Estante Virtual onde você acha tudo. Acabei tendo que implorar numa biblioteca que me xerocassem a obra. Pois é, leitor inveterado como eu faz qualquer sacrifício para ler seus autores favoritos. Hoje os direitos de publicação da obra de Nava, depois de passarem pela Ateliê Editorial, estão com a Companhia das Letras.




Outra coisa: com a morte de Nava, brotaram rumores de que ele estaria sofrendo chantagem de um garoto de programa. No final do vídeo falarei sobre isso.

A obra de Nava é monumental em vários aspectos. Primeiro, no escopo temporal, no intervalo de tempo abrangido. Começa contando a história de seus antepassados, o mais antigo, o tataravô por parte do pai, oriundo da Itália, que “teria aportado no Brasil no fim do séc. XVIII ou princípios do XIX. A crônica da família de Nava, tanto por parte do pai como da mãe, desenrola-se século XIX adentro, até o nascimento do escritor em 1903. Os anos da infância, adolescência e início da vida adulta, na Faculdade de Medicina , são contados em primeira pessoa, como é normal em livros de memórias. Mas no primeiro capítulo do Volume V, Galo das trevas, Nava dá um salto temporal e traz a narrativa para o tempo presente, em que ele, com 75 anos de idade (1978), à semelhança de Xavier De Maistre em sua “Viagem à Volta do Meu Quarto”, resolve fazer uma volta pelo seu apartamento, com todas as reminiscências associadas aos seus objetos. Depois desse “jorro de emoções”, Nava retorna ao passado, à época em que iniciou sua carreira médica, mas agora projetando-se em um primo fictício, o Egon, cuja vida (que no fundo é a vida do próprio Nava) conta em terceira pessoa.

A obra de Nava também é monumental na riqueza temática, vocabular & estilística. Em seus livros de memórias Nava tem por característica mesclar fatos pessoais, perfis de terceiros, descrições de locais, acontecimentos históricos, narrações de episódios, reflexões, desabafos etc. numa espécie de fluxo de memória proustiano e num estilo que pode ir do factual à prosa poética. Não é uma leitura fácil como um Paulo Coelho, o que não significa que seja homogeneamente difícil, difícil do primeiro ao último parágrafo, como é, por exemplo, um Grande Sertão e Veredas do Guimarães Rosa que já começa “ilegível”. Não, a obra de Nava tem altos e baixos em termos de dificuldade. Tem desde divagações de uma poeticidade exacerbada (tipo: “O caminho por Bernardo Monteiro era repousante como banho de imersão nas sombras verdes aquários de seus fícus gigantescos. Tal impressão líquida é tão grande que se estranhava quando ave esvoaçava entre galhos raios de sol – entre molezas de algas. Não vê? se esperava é peixes deslizando...” Galo, 346) até causos e anedotas e historinhas que a gente lê com extremo prazer e deleite.

São interessantíssimas também as descrições do Nava da passagem do cometa Halley quando criança, os estragos provocados pela gripe espanhola em 1918, o bombardeio de São Paulo na Revolução Constitucionalista. E com suas descrições da vida escolar, cheias de detalhes sobre os colegas, as matérias, os professores, as provas, a cola, a indisciplina, os castigos, Nava nos proporciona um inventário precioso do sistema educacional brasileiro na segunda década do século XX, comparável apenas, guardadas as devidas proporções, ao clássico O Ateneu de Raul Pompéia.

Outro aspecto em que a obra de Nava é monumental é no tamanho. São seis volumes completos e um sétimo volume que, com sua morte, ficou inacabado, perfazendo 2651 páginas, mais do que Os Miseráveis, que é um romance de peso. É monumental ainda pela erudição: no decorrer da obra ostenta conhecimentos de artes plásticas, literatura, arquitetura, medicina, história, francês etc. Além disso tudo, Nava é conhecedor profundo do Rio de Janeiro e, à maneira de um João do Rio, em alguns trechos de sua obra, conduz o leitor pela alma encantadora de suas ruas. Diz ele: “Flanar nas ruas do Rio é prazer refinado. Exige amor e conhecimento. Não apenas o conhecimento local e o das conexões urbanas. É preciso um gênero de erudição.” (Galo)


Para quem nunca leu o Pedro Nava eu recomendaria começar pelo volume II, Balão Cativo, que narra a infância e adolescência do autor no Rio e Minas Gerais, depois passar para o III, Chão de Ferro, época em que ele cursou o internato do Pedro II no Rio e passava as férias em Minas, e só depois, tendo se tornado fã do Nava (espero), retroceder para o volume I, a história dos antepassados, e avançar para os volumes seguintes.

A relação entre o Nava e o escritor francês Proust é muito bem explicitada em crônica do Antônio Carlos Villaça cujo link está na descrição deste vídeo. Villaça conta que em Belo Horizonte em 1925 Nava foi um dos primeiros, de sua patota de estudantes e intelectuais, a lerem a obra de Proust, pouco depois da morte do romancista em 1922. Diz Villaça na crônica: “O seu memorialismo é ostensivamente proustiano. Proustiano pelo estilo, pelo ritmo interior, pela identificação total entre ele e o autor de A procura do tempo perdido. Proust marcou Pedro Nava para sempre.” O que não significa que quem goste de Proust vá necessariamente gostar do Nava, e vice-versa. Eu por exemplo adoro Nava mas, aos 68 anos, ainda não amadureci para conseguir apreciar a prosa divagante do Proust. 

Existem escritores que florescem na juventude (alguns para viverem vidas breves, como os poetas românticos brasileiros, Castro Alves, Álvares de Azevedo, etc.), enquanto outros escritores só despontam, ficam famosos, na maturidade – caso do lusitano Saramago e do nosso Pedro Nava, que começou a escrever seu primeiro livro de memórias em 1968, com 64 anos. Mas quando estudante de medicina em Belo Horizonte na década de 1920, Nava conviveu com a turma dos intelectuais modernistas (foi amigo de Drummond, por exemplo) e colaborou com revistas literárias, onde publicou poemas de elevada qualidade, a ponto de terem sido incluídos na antologia de poetas brasileiros bissextos organizada por Manuel Bandeira. Nava poderia perfeitamente ter seguido uma carreira nas letras ou artes plásticas, mas acabou se dedicando, durante quarenta anos, à profissão médica, tornando-se um destacado reumatologista. Mesmo assim, não parou totalmente de escrever, publicando artigos médicos e até um livro sobre a história da medicina no Brasil. E quando se aposentou e todos acharam que iria fazer o que fazem muitos aposentados – jogar dominó na pracinha, essas coisas  – surpreendeu a todos dando à luz, volume após volume, suas extraordinárias memórias. Segundo Josué Montello, Pedro Nava “era um grande romancista, talvez o maior de sua geração, mas disso só se deu conta, já perto dos 70 anos, quando se lembrou de escrever suas Memórias.” (JB, 22/5/84, p. 11) Segundo Drummond, “Não há notícia de outro escritor que haja esperado 50 anos de vida consciente para se lançar, nem tampouco de alguém que conquistasse logo a unanimidade das admirações.” (JB, 15/8/84)


Outro mistério de Nava é sua memória prodigiosa. Aos setenta anos descreve em mínimos detalhes, aposentos, parentes, professores, amigos, logradouros, um matadouro, que ele viu cinquenta, sessenta anos antes, como se tivesse visto no dia anterior. Pelos objetos que foi acumulando ao longo da vida – cartas, manuscritos, desenhos, lembranças escolares, papéis variados, retratos, vestuários etc. – que hoje fazem parte do acervo do Arquivo-Museu da Literatura Brasileira da Casa de Rui Barbosa (seu arquivo contém 6.110 documentos), tem-se a impressão de que Nava se preparou a vida inteira para um dia escrever suas memórias. Além desses objetos evocadores das lembranças, Nava, exímio desenhista, fez croquis, plantas, desenhos, caricaturas etc. que serviram de suporte visual ao seu trabalho literário.

Finalmente a questão do suicídio. O colunista José Carlos Oliveira assim descreveu a morte do escritor em crônica no JB de 25 de maio de 1984: “Aos oitenta anos, numa noite de sábado igual às outras, encostado numa árvore, Pedro Nava escreveu com silêncio e solidão, dentro do estampido de um tiro de revólver, o ponto final de sua trajetória aqui neste mundo das realidades concretas.” Correu a fofoca de que ele estaria sofrendo chantagem de um “garoto de programa”, mas os jornalistas aos quais chegou essa informação resolveram abafá-la, em respeito ao grande escritor e talvez para poupar a viúva desse constrangimento. Somente anos depois, em seu livro Minhas histórias dos outros, Zuenir Ventura reabre esse dossiê e revela o pacto de silêncio da imprensa em 1984 envolvendo a morte de Nava. Apesar desse episódio lamentável, em nenhum ponto de suas memórias Nava deixa transparecer qualquer inclinação homossexual. Ao contrário, suas paixões, algumas delas não correspondidas, sempre são por mulheres. No Galo das Trevas lemos sobre Egon (que é o Nava): “Ele que era um tarimbado na vida grossa dos estudantes de Belo Horizonte, que desde moço fora audacioso e chegador em matéria amorosa...”. Entre as várias paixões está a “amada bela Amabel”, filha de um senador, a quem Egon sequer tem coragem de se declarar. E Nava não tem o menor pudor em descrever suas idas, com os amigos, primeiro bem novinho à zona do meretrício no Rio de Janeiro e mais tarde, como estudante e médico recém-formado, aos puteiros do Desterro (que na verdade é Juiz de Fora) e Belo Horizonte. Em Galo das Trevas dedica páginas e páginas descrevendo bordéis nos mínimos detalhes, seus frequentadores, as putas, taras de que até Deus duvida... um homossexual não entraria nesses detalhes sobre a putaria. No máximo Nava foi bissexual, algo que muita gente é mas ninguém fica sabendo, porque o bissexual normalmente, podendo optar entre as duas vias, escolhe aquela socialmente mais aceita, e só eventualmente, num surto de luxúria, é que vai experimentar o outro lado, geralmente com um travesti.

PEDRO NAVA, crônica de ANTÔNIO CARLOS VILLAÇA

TEXTO PUBLICADO ORIGINALMENTE NA PÁG. 9 DO PRIMEIRO CADERNO DO JORNAL DO BRASIL DE 26 DE ABRIL DE 1993

Pedro Nava estaria fazendo, breve, 90 anos. Inesquecível Pedro Nava. Um dos maiores memorialistas do Brasil, ao lado de Helena Morley, Afonso Arinos, Gilberto Amado ou Thiers Martins Moreira com o seu O menino e o palacete.

Nava estreou tarde, quase no limiar da velhice lépida. Dividiu a vida entre o consultório, a cátedra, o hospital, a policlínica. E a leitura. Porque foi sempre um grande leitor literário. Em Belo Horizonte, por volta de 1925, foi ele o primeiro do grupo modernista a ler a obra de Marcel Proust, que chegava às montanhas de Minas, pouco depois da morte do romancista.

Esse encontro com Proust foi decisivo. Os dois autores que mais o impressionaram foram Euclides da Cunha e Proust. Pois Pedro Nava pertence decididamente e declaradamente à categoria dos escritores ricos, frondosos, farfalhantes. A sobriedade de Machado não era o seu caminho, ao contrário de Graciliano e Drummond, seu companheiro de juventude.

Nava morou a maior parte da vida aqui no Rio. Morou nesta cidade definitivamente desde 10 de março de 1933. Ele próprio nos confessa com aquela sua precisão deliciosa e perfeita que residiu 20 anos em Minas, dois no Oeste Paulista, numa aventura da mocidade, e o resto no Rio. Morou em Visconde de Figueiredo, Aristides Lobo, Haddock Lobo, São Cristóvão, Copacabana, Urca, Ipanema, Laranjeiras, Glória.

Viveu na Glória, no mesmo apartamento [no prédio da foto abaixo], desde o dia 28 de junho de 1943. E na Glória, em plena rua, morreu.

É impressionante o número de escritores nascidos em Juiz de Fora, como Pedro Nava, Murilo Mendes e Silva Melo, Rubem Fonseca e Raquel Jardim, Cleonice Rainho e Gilberto de Alencar, Fernando Gabeira e Belmiro Braga. E mais Rute Bueno, Cosette de Alencar, Rangel Coelho, Henrique José Hargreaves, o filósofo tomista, discípulo de Maritain, de Kierkegaard, Wilson de Lima Bastos e Regina Hargreaves, autora de O diário do sol, que tanto entusiasmo provocou em Sobral Pinto.

O memorialismo brasileiro tinha duas vertentes nítidas. A de Nabuco e de Afonso Arinos, claramente romântica, que se inspira em Chateaubriand, com as Memórias de além-túmulo. E a de Graça Aranha e de Gilberto Amado, o impressionismo dionisíaco. Pedro Nava não pertence a nenhuma dessas vertentes.

O seu memorialismo é ostensivamente proustiano. Proustiano pelo estilo, pelo ritmo interior, pela identificação total entre ele e o autor de A procura do tempo perdido. Proust marcou Pedro Nava para sempre.

Prédio na Glória onde residiu Pedro Nava

Sobretudo, um retratista. Descreve o físico das pessoas e passa agilmente para o retrato psicológico, em que é mestre. E sabe descrever as cidades. No Galo das trevas, seu quinto volume, há um passeio maravilhoso pelas ruas da Glória, verdadeira obra-prima. O quarto volume é um retrato de Belo Horizonte (onde estudou a sua medicina). Concretude saborosa. Vemos a rua da Bahia do tempo de Pedro Nava mocinho.

A verdade é que Nava rapaz era excelente desenhista. E se tornou mestre na arte de retratar, quando se fez memorialista, na curva dos 70 anos. A sua obra não tem igual. Vai da genealogia minuciosa do Baú de ossos, primeiro volume das Memórias, à incrível liberdade criadora do Galo das trevas, quando Nava, maduro, solta-se inteiramente à vontade, sem nenhuma cerimônia, com uma franqueza desabusada de espeleólogo audaz.

Pois não tem medo de nada. Nenhuma palavra assusta. Nenhuma realidade o inibe. Capta o movimento da vida. Desce fundo na mina humana. Como um perscrutador insaciável. Que analista meticuloso. Que inventariante preciso. Tudo nele é abissal e trágico.

Vejo em Nava pessimismo e cepticismo. Um pessimismo filosófico, à maneira de La Rochefoucauld, certa melancolia diante do humano, como em La Bruyère, com toda a sua paixão dos caracteres. Um fundo jansenista.

Há em Pedro Nava o cepticismo filosófico, o experimentalismo científico e a volúpia da palavra, o senso da exatidão. E, sempre, um espírito boêmio, que o leva a confessar (numa página soberba) que “flanar nas ruas do Rio era prazer refinado” [ver ARTE DE FLANAR PELO RIO].

A consciência da corrupção da natureza humana, que o acompanha, não o tornou seco. O memorialista surgiu quando ninguém o esperava, como uma espécie de torrente impetuosa. Ou de incêndio. Ou de vulcão. Os seus seis volumes de Memórias foram uma explosão de autenticidade perturbadora.

Nava passou de bissexto a contumaz. Era já conhecido e admirado como poeta bissexto, sobretudo pelo grande poema O Defunto [sobre o qual fiz um vídeo que você pode ver aqui], que, junto com A cachorra, de Pedro Dantas, é uma obra-prima de nossa poesia bissexta. Manuel Bandeira o incluiu na sua Antologia famosa dos poetas brasileiros bissextos, isto é, não-contumazes. Nava navegante.

Placa no prédio da Glória onde morou Pedro Nava

VEJA TAMBÉM MEU VÍDEO "PEDRO NAVA E OS MEANDROS DA MEMÓRIA":