Pedro Nava estaria fazendo, breve, 90 anos. Inesquecível Pedro Nava. Um dos maiores memorialistas do Brasil, ao lado de Helena Morley, Afonso Arinos, Gilberto Amado ou Thiers Martins Moreira com o seu O menino e o palacete.
Nava estreou tarde, quase no limiar da velhice lépida. Dividiu a vida entre o consultório, a cátedra, o hospital, a policlínica. E a leitura. Porque foi sempre um grande leitor literário. Em Belo Horizonte, por volta de 1925, foi ele o primeiro do grupo modernista a ler a obra de Marcel Proust, que chegava às montanhas de Minas, pouco depois da morte do romancista.
Esse encontro com Proust foi decisivo. Os dois autores que mais o impressionaram foram Euclides da Cunha e Proust. Pois Pedro Nava pertence decididamente e declaradamente à categoria dos escritores ricos, frondosos, farfalhantes. A sobriedade de Machado não era o seu caminho, ao contrário de Graciliano e Drummond, seu companheiro de juventude.
Nava morou a maior parte da vida aqui no Rio. Morou nesta cidade definitivamente desde 10 de março de 1933. Ele próprio nos confessa com aquela sua precisão deliciosa e perfeita que residiu 20 anos em Minas, dois no Oeste Paulista, numa aventura da mocidade, e o resto no Rio. Morou em Visconde de Figueiredo, Aristides Lobo, Haddock Lobo, São Cristóvão, Copacabana, Urca, Ipanema, Laranjeiras, Glória.
Viveu na Glória, no mesmo apartamento [no prédio da foto abaixo], desde o dia 28 de junho de 1943. E na Glória, em plena rua, morreu.
É impressionante o número de escritores nascidos em Juiz de Fora, como Pedro Nava, Murilo Mendes e Silva Melo, Rubem Fonseca e Raquel Jardim, Cleonice Rainho e Gilberto de Alencar, Fernando Gabeira e Belmiro Braga. E mais Rute Bueno, Cosette de Alencar, Rangel Coelho, Henrique José Hargreaves, o filósofo tomista, discípulo de Maritain, de Kierkegaard, Wilson de Lima Bastos e Regina Hargreaves, autora de O diário do sol, que tanto entusiasmo provocou em Sobral Pinto.
O memorialismo brasileiro tinha duas vertentes nítidas. A de Nabuco e de Afonso Arinos, claramente romântica, que se inspira em Chateaubriand, com as Memórias de além-túmulo. E a de Graça Aranha e de Gilberto Amado, o impressionismo dionisíaco. Pedro Nava não pertence a nenhuma dessas vertentes.
O seu memorialismo é ostensivamente proustiano. Proustiano pelo estilo, pelo ritmo interior, pela identificação total entre ele e o autor de A procura do tempo perdido. Proust marcou Pedro Nava para sempre.
Prédio na Glória onde residiu Pedro Nava |
Sobretudo, um retratista. Descreve o físico das pessoas e passa agilmente para o retrato psicológico, em que é mestre. E sabe descrever as cidades. No Galo das trevas, seu quinto volume, há um passeio maravilhoso pelas ruas da Glória, verdadeira obra-prima. O quarto volume é um retrato de Belo Horizonte (onde estudou a sua medicina). Concretude saborosa. Vemos a rua da Bahia do tempo de Pedro Nava mocinho.
A verdade é que Nava rapaz era excelente desenhista. E se tornou mestre na arte de retratar, quando se fez memorialista, na curva dos 70 anos. A sua obra não tem igual. Vai da genealogia minuciosa do Baú de ossos, primeiro volume das Memórias, à incrível liberdade criadora do Galo das trevas, quando Nava, maduro, solta-se inteiramente à vontade, sem nenhuma cerimônia, com uma franqueza desabusada de espeleólogo audaz.
Pois não tem medo de nada. Nenhuma palavra assusta. Nenhuma realidade o inibe. Capta o movimento da vida. Desce fundo na mina humana. Como um perscrutador insaciável. Que analista meticuloso. Que inventariante preciso. Tudo nele é abissal e trágico.
Vejo em Nava pessimismo e cepticismo. Um pessimismo filosófico, à maneira de La Rochefoucauld, certa melancolia diante do humano, como em La Bruyère, com toda a sua paixão dos caracteres. Um fundo jansenista.
Há em Pedro Nava o cepticismo filosófico, o experimentalismo científico e a volúpia da palavra, o senso da exatidão. E, sempre, um espírito boêmio, que o leva a confessar (numa página soberba) que “flanar nas ruas do Rio era prazer refinado” [ver ARTE DE FLANAR PELO RIO].
A consciência da corrupção da natureza humana, que o acompanha, não o tornou seco. O memorialista surgiu quando ninguém o esperava, como uma espécie de torrente impetuosa. Ou de incêndio. Ou de vulcão. Os seus seis volumes de Memórias foram uma explosão de autenticidade perturbadora.
Nava passou de bissexto a contumaz. Era já conhecido e admirado como poeta bissexto, sobretudo pelo grande poema O Defunto [sobre o qual fiz um vídeo que você pode ver aqui], que, junto com A cachorra, de Pedro Dantas, é uma obra-prima de nossa poesia bissexta. Manuel Bandeira o incluiu na sua Antologia famosa dos poetas brasileiros bissextos, isto é, não-contumazes. Nava navegante.
Placa no prédio da Glória onde morou Pedro Nava |
Um comentário:
Preciso e precioso comentário.
A obra de NAVA é definitiva na literatura brasileira e - a monolágrima camoniana se faz minha! - perdem os que não leem português.
HB
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