GALILEU, UMA VIDA, de JAMES RESTON, Jr

EM 1995 A EDITORA JOSÉ OLYMPIO ENCOMENDOU-ME UMA RESENHA DO ENTÃO RECÉM-LANÇADO GALILEO, A LIFE, DO ESCRITOR JAMES RESTON, JR. E, COM BASE NO MEU PARECER, DECIDIU PUBLICAR O LIVRO E ENCOMENDOU-ME A TRADUÇÃO. A BIOGRAFIA GANHOU MATÉRIA DE PÁGINA INTEIRA DE CELINA CÔRTES, QUE ME ENTREVISTOU PELO TELEFONE, INTITULADA “GALILEU / NOVA BIOGRAFIA DO GÊNIO DERRUBA MITOS COMO O DA IGREJA OBSCURANTISTA”, NO CADERNO B DO JORNAL DO BRASIL. EIS A RESENHA:


No preludio, o autor menciona sua visita à NASA, em dezembro de 1992, preocupada na época com os problemas em torno da mais ambiciosa missão interplanetária da era dos ônibus espaciais: a viagem da nave Galileu em direção a Júpiter e suas luas. Como Galileu, o homem, a máquina Galileu estava incapacitada. Vítima, na era moderna, da maldição de Galileu. A outra importante missão espacial da NASA, o telescópio espacial Hubble, o equivalente moderno ao primeiro telescópio de Galileu, sofria de catarata ótica. A exemplo do velho Galileu em seus derradeiros dias! 

No Posfacio (Apology), o autor narra a entrevista, em abril de 1993, com o cardeal Poupard, que presidiu a comissão, nomeada pelo papa João Paulo II, para reconsiderar o caso Galileu (a qual admitiu que os teólogos que atacaram Galileu erraram ao considerar literalmente as Escrituras no que tange à descrição do mundo físico). Comenta o autor: Escutar o cardeal Poupard era concluir que a Igreja não experimentara nenhuma angústia na reconsideração de Galileu. O conflito entre ciência e fé era um mito, disse desdenhoso. Sem titubear ou perceber sua contradição, repetiu novamente a versão padrão da Igreja sobre Galileu que eu ouvira com frequência nos três anos de redação deste livro: Galileu fora condenado porque insistira em tratar a teoria copernicana como verdadeira, e não como hipótese, sem poder prová la. Essa posição desviava a atenção de um fato simples: A teoria copernicana era verdadeira e a Igreja usara métodos extremados e rigorosos para esmagar essa verdade e proteger sua falsidade. Ao final da entrevista, indaga maldosamente: Quem será o próximo? Giordano Bruno? Poupard sorri indulgentemente. Cita John Huss, Joana D'Arc. Vitimas da intolerância religiosa. 

James Reston, Jr. realiza um trabalho de jornalismo investigador e compõe uma biografia vibrante, num estilo que vem conquistando o leitor atual e que está bem representado no Brasil por Ruy Castro, José Castello, Fernando Morais. Nos agradecimentos, o autor se refere à curiosidade dos italianos sobre um escritor norte-americano que ousou estudar a vida de um italiano de tamanha estatura, embora reconheçam que Galileu pertence ao mundo. E se um italiano ousasse escrever a biografia de George Washington? costumavam pilheriar. Foram três anos de pesquisa: Florença, Roma, Vaticano, Pisa, Pádua, Veneza. O cenário onde se desenrolou a vida de Galileu, cujas pegadas Reston resolveu seguir.

Reston não é um autor acadêmico, que escreve um livro de vulgarização cientifica exclusivamente para os apreciadores da Filosofia da Ciência (se bem que estes também gostarão do livro). O titulo é claro: Galileu, uma vida. Reston é romancista e teatrólogo, o que confere a esta biografia uma qualidade toda especial. O leitor imaginativo (ou o cinéfilo leitor) chega a se sentir na sala de cinema, tamanha a vivacidade com que o autor expõe seu tema. No fundo, todo autor norte-americano tem em mira uma possivel adaptação cinematográfica. Bom para a literatura, bom para a sétima arte. 
 
Reston é um autor dotado de grandes recursos, capaz de descrever minuciosamente a igreja florentina de Santa Maria Novella; de descrever vivazmente o ambiente familiar de Galileu; dotado de incrível poder de síntese, como ao se referir à invenção, pelo ainda estudante de medicina Galileu, de um pêndulo para a medição do pulso; capaz de descrever com um colorido incrivel experiências científicas sobre as quais, até então, só lemos frios relatos, a exemplo das bolas de diferentes pesos e tamanhos jogadas do alto da torre de Pisa (Emergindo expansivamente no topo, entre as pilastras e precárias arcadas abertas, ele representou para sua multidão. Ele foi aclamado clamorosamente. Estranhas vaias despontaram entre as aclamações, pois a maioria da turba sem dúvida esperava testemunhar um fiasco. Havia algo na torre que parecia atrair os excêntricos e os exibicionistas. Quem era aquele jovem gênio, aquele radical, para desafiar não apenas as autoridades no campo, mas o próprio Aristóteles?); capaz de descrever como ninguém as terríveis consequências do choque entre ciência e fé (Ciência e a fé se chocaram e, em seu terrível conflito, as duas foram separadas, tomando direções divergentes e perdendo seu terreno comum. Em sua insistência na vitória total da teologia, a Igreja católica ficou até hoje estigmatizada como anticientífica e obscurantista. Ela continua lutando para superar a maldição de 1616. E a ciência, temendo o espiritual, se tornou cada vez mais árida e sem coração, a ponto de mesmo as mais fantásticas descobertas no firmamento atual terem perdido o poder de tocar a alma e o espírito dos mortais); de comover o leitor ao descrever o processo kafkiano a que é submetido um Galileu idoso e doente. 

O Galileu que emerge não é o Galileu brechtiano, o herói super-humano na luta contra as forças do mal. O painel traçado por Reston apresenta nuanças, entretons. Galileu, um cérebro privilegiado, é o homem do mundo, bem-sucedido, regiamente remunerado, matemático da corte do grão-duque de Toscana, que enriqueceu graças a suas invenções práticas, com aplicações militares. A Igreja da época contava com seus reacionários, seus Gustavos Corções (que usavam, é claro, métodos bem mais violentos), mas eram contrabalançados por prelados esclarecidos, intelectuais, cientistas, amigos de Galileu. Pertencer à Igreja, na época, era como trabalhar em uma estatal no Brasil do regime militar: um emprego seguro. Nem todo funcionário público é um patife. O grande suspense do livro de Reston: como um cientista bem-relacionado como Galileu, com duas filhas (ilegitimas) como monjas a serviço da Igreja, em cuja homenagem o futuro papa Urbano VIII compusera uma ode, que publicava suas obras em italiano com o imprimatur da Igreja... como, inopinadamente, se envolveu em um processo infamante que envenenou sua velhice? A condenação de Galileu foi, muito mais, resultado de uma conjunção de circunstâncias do que a consequência previsível de uma política obscurantista. Um jesuíta com quem Galileu tivera uma velha rixa consegue convencer o supersticioso e paranoico pontífice de que o ridículo personagem Simplicio dos Discursos sobre as Duas Novas Ciências não passava de uma caricatura de Sua Santidade. Como pano de fundo, a Guerra dos Trinta Anos e a Peste Bubônica; eis o cenário ideal para uma tragédia. O que seria o periodo de consagração do maior gênio italiano da época se transforma em uma página negra da história, comparável à condenação de Sócrates ou à Paixão de Cristo. A lição: toda e qualquer censura à criação artística ou intelectual é condenável. A que extremos chegam os fundamentalistas de qualquer vertente (cristãos, muçulmanos, marxistas...) quando ditam as regras do jogo!

O PEQUENO PRÍNCIPE, de SAINT-EXUPÉRY: UM CONTO FILOSÓFICO?

ARTIGO DE IVO KORYTOWSKI PUBLICADO NO JORNAL O TREM ITABIRANO DE MAIO DE 2022 SOB O TÍTULO "Com vocês, o livro das... De quem quiser boa leitura". Para acessar uma versão PDF do jornal, clique aqui.


Vou falar de um livro que já foi chamado depreciativamente de “o livro das misses”, que é O Pequeno Príncipe (Le Petit Prince em francês) de Antoine de Saint-Exupéry. Por que o livro das misses? Porque, nos velhos tempos em que concursos de beleza tinham a visibilidade que tem hoje, digamos, um julgamento no STF, várias das chamadas “misses”, aquelas moças bonitas que participavam daqueles concursos, citavam a obra como seu livro favorito.

Se bem que o livro contraste o universo ingênuo da criança com o mundo às vezes exageradamente sério dos adultos – e foi gestado numa época negra, em que essa “seriedade” causou grande destruição, a Segunda Guerra Mundial –, não foi escrito especificamente para o público infanto-juvenil (como foi, digamos, Reinações de Narizinho), embora seja lido com prazer por esse público. É mais do que isto. É uma literatura alegórica, simbólica, de sátira aos costumes, um tipo de literatura com longa tradição.

Antigamente não se podia sair criticando os reis, as classes dirigentes, a igreja, sob risco de ser queimado vivo ou encarcerado. A crítica social tinha de ser feita de modo sutil, velado, através da alegoria e da sátira. É o caso das Viagens de Gulliver, que podem ser lidas como uma aventura fantástica, mas que no fundo são uma sátira social com profunda carga crítica.

A gente pode fazer várias leituras de O Pequeno Príncipe. Primeiro, vejo este livro como uma crítica à limitação, ao espírito tacanho da maioria dos seres humanos. Vivemos num universo inconcebivelmente grande, complexo, cheio de possibilidades e, no entanto, ficamos (não digo todo mundo, mas a maioria) presos em nossos mundinhos cotidianos, como se vivêssemos nos pequenos planetas (ou asteroides) onde habitam o vaidoso, o ébrio, o acendedor de lampiões, o homem de negócios, o rei, os personagens da primeira parte de O Pequeno Príncipe. Esta é uma leitura que podemos fazer, de sátira à tacanhez, à limitação humana. Mas o livro é mais do que isto.

Eu situaria O Pequeno Príncipe dentro da tradição da novela filosófica francesa cujo grande mestre foi Voltaire. Novela não no sentido de novela da televisão, mas de uma obra literária mais longa que o conto, mas menos longa que o romance. Assim como no Cândido de Voltaire, temos o personagem que, com sua aparente ingenuidade, consegue enxergar mais fundo que as pessoas normais e acaba desconcertando-as. Quando o vendedor de pílulas contra a sede apregoa que, com seu produto, as pessoas terão mais tempo livre, o “ingênuo” principezinho responde que, se tivesse mais tempo livre, iria procurar um poço d’água. 

Especificamente, O Pequeno Príncipe guarda certa semelhança com o Micrômegas de Voltaire, que é a história de um gigante de Sirius que decidiu aventurar-se pelo Universo, visita o Sistema Solar e vem parar na Terra, dando a volta ao mundo e discutindo filosofia com os seres humanos. Também o principezinho visita vários asteroides/planetas e discute filosofia com os seres humanos. Quando ele diz que “o essencial é invisível aos olhos” está retomando a teoria de Platão do mundo das ideias. E quando diz que “não se vê bem a não ser com o coração” está refletindo o pensamento de Pascal de que “o coração tem razões que a própria razão desconhece”. E ainda tem gente que acha que é um livro bobinho ou um livro de autoajuda. Bobinho uma ova.

Claro que este é um livro que permite mil leituras diferentes. Há quem veja o principezinho como um anjinho que caiu na Terra. E tem outra coisa: o príncipe morre, supostamente picado pela cobra, para poder subir de volta ao seu planeta sem ser atrapalhado pelo peso do seu corpo. O autor o vê “tombando devagarinho como tomba uma árvore”. Mas tem certeza de que voltou ao seu planeta porque, ao raiar do dia, não encontrou seu corpo. É a história da paixão e ressurreição de Cristo! Só que o “planeta” de Cristo é o reino dos céus!

Em seus voos pelo correio francês entre Buenos Aires e a França, Saint-Exupéry pousava para reabastecer no bairro florianopolitano de Campeche, que seria corruptela de champ de pêche, campo de peixe, como o escritor (que chamavam de “seu Peri”) designava a área. Pelo menos é o que contam aos turistas que visitam a aprazível capital santa-catarinense. Se non è vero, è ben trovato.