LÉA MADUREIRA


Na orelha de seu livro Por não haver navegado, Lea revela: "Nasci à rua Arthur Menezes, 26, Maracanã. Casa grande de avós e tios, quintal, jardins, muita gente. [...] Fui professora primária entre os anos dourados e os anos de chumbo. Querendo ser jornalista fui impelida ao curso de História, na UEG. Tentava entender o que se passava nas cabeças das lideranças políticas do país. Acabei exercendo o magistério no município, por trinta e cinco anos. A música, silêncio e movimento, desde a infância, transferi para as letras."

New Orleans eterno

Singrando o blues, a resistência, o jazz,
do bebop a libertar aplausos afogados.
Lamentos jorram entre cordas e martelos,
e ao sopro de um solo estarrecido
desaguam Armstrong e Jimmie Noone.

Agarro o corrimão da escada,
passam ídolos mitos cancioneiros.
Varandas espanholas e francesas passam,
música e vudu, no exorcismo da opressão
em cada porto. No destelhado das casas vazias,
o louvor do templo e o alegre Mardi-grass.

Segue a barca do Mississipi...
a sorte de mulheres e crianças.
Principalmente o homem
— vorazmente entregue à fome
de estilhaçar cativeiros —
segue a estrada que não cala
ao encontro do delta. Não resiste
à força da nascente. E n'alma
a oração, a sinergia, o canto.

Segue o rastro das chalanas paraguaias,
das carrancas do S. Francisco
e das chatas no Amazonas.
Onde a esperança redesenha o improviso
que salva, ao recuo e ao avanço,
e vive à proporção do tranco,
no criar e recriar a liberdade

Caçada sem fim

Hora do chá, presença da avó à mesa.
Jarro de flores, copo, fruteira, a louça.
No repente, o cavalo e o caçador,
da fina porcelana pulam
pro quadro na parede.

Antes, a madrinha declinava os nomes.
E os toques, bem marcados pela pauta,
corriam nos detalhes da toalha.
Esmero no bordado das irmãs,
em ponto de cruz.

Inda as ouço, as lições ao piano interrompidas,
sempre que apuro a marcha na corrida.
Em busca da Cavalgada,
no rastro do cavaleiro,
pela caçada sem fim.

Imaginário

Espaço e ponto e linha
no canto do muro
roucas cigarras
nas folhas e galhos
Inertes ao chão

Entre teares e teias
sementes e gravetos
matéria dos passos
em teto de vidro

Pássaros e pipas
alinham poemas
na ponta dos bicos

Crisálidas escondidas na seda

LÊDO IVO


Lêdo Ivo nasceu em Maceió em 1924. Em 1943 transferiu-se para o Rio, onde continuou a atividade jornalística iniciada na província. Estreou em 1944 com o livro de poemas As imaginações. Lêdo Ivo pratica também a ficção e o ensaio. Pertence à Academia Brasileira de Letras. Ivan Junqueira, na Introdução à Poesia completa de Lêdo Ivo, considera-o o "arauto — ou mesmo principal fundador e mais legítimo representante — da Geração de 45, que reagiu contra os desmandos e os equívocos do movimento modernista de 1922 e que não constitui, necessariamente, como a caracterizaram certos setores da crítica, uma espécie de terceiro tempo do Modernismo, e sim uma oposição a este."

A CORUJA BRANCA

Em minha casa entre as árvores ouço o rumor da noite.
O vento escorraça os astros crepitantes.
As montanhas descem em direção ao mar como rebanhos
que não tivessem esperado a licença da aurora para a
          migração necessária.
E a erva cresce. E a água corre. E o mundo recomeça
como uma palavra interrompida. E as nuvens caem do céu
e rastejam pelo caminho danificado pelas chuvas de janeiro.
A coruja branca, minha irmã sedentária,
vigia na escuridão o mundo abandonado
por tantas pálpebras fechadas.

Do livro 50 poemas escolhidos pelo autor, vol. 10, Edições Galo Branco, 2004.

LUCIA AIZIM







Lucia Aizim nasceu na Ucrânia em 1915. Em 1919, sua mãe emigrou para o Brasil acompanhada das duas filhas, Lucia e Luba. Veio para a cidade do Rio de Janeiro, onde já viviam seus pais.
Aqui Lucia estudou, formou-se na Academia de Comércio Cândido Mendes, trabalhou alguns anos, casou-se e depois dedicou-se à família por décadas. Seu livro Cânticos foi dedicado às filhas: Isabela, Diva, Eliana, Elisabeth, Margareth (minha amiga de adolescência quando sua mãe nem sonhava que viria a publicar livros e eu nem sonhava que iria ao lançamento de um deles) e Evelyn. Publicou seu primeiro livro de poesia em 1974. Faleceu em 2006.

Ivan Cavalcanti Proença chama a atenção para o ritmo singular e pessoal de Lucia Aizim: “Um ritmo (o grande e único segredo, afinal, da poesia moderna) dela, só dela, poeta Lucia Aizim: ritmo de uma sintaxe própria, inclusive nos encadeamentos de verso para verso, de estrofe para estrofe.”

Marinha

No mar o coração entre vagas
No mar esperança entre vagalhões
No mar o amor emerge entre destroços
No mar dia e noite dão-se as mãos.

No mar os anjos trocam as asas
Duendes invadem os poços
e se desvanecem.

Afastado o sonho
ao alcançar a dura
superfície.

O amanhã resplandece.

Trama

Eu sou uma aranha
teço reteço transteço
o abismo sem parar.

Vivo a tecer e a retecer
e outra vez e outra.
Que tecer é destino.

Depois amanheço e vem
o sol e lambe de novo a teia,
as cores se escondem no avesso.

Mais tarde anoiteço
e vem a lua e ilumina
todo aquele feitiço.

Eu que entre o desconhecido
e as estrelas navego.
Quanto susto ao recordar:

a infância, o perigo, o infortúnio
enquanto aqui a salvo
com meus dedos ágeis

continuo a tecer os fios,
a trama um universo
no tecido do tempo.
Infindável desafio.

Metalinguagem II

Não posso dormir
Minha cabeça gira gira.
Pego uma, duas palavras.
Descasco-as.
Espremo-as.
Extraio sua essência.

Mas voltam-me tal e qual
antes de transformá-las
em seres inanimados.

Estiro-me e procuro
contemplá-las. Então o enxame
de mosquitos vem se juntar.
Pousam nas fibras secas,
esbranquiçadas medulas.

Já não se podem pronunciar
as palavras sagradas.
Recusam-se. Nem forma nem cor
tampouco a sonoridade se revela.

Restam apenas, fragmentos,
libélulas, gota suspensa,
sob a asa de um devaneio.
E fios, tênues, de pensamento
voam.

LUCILA NOGUEIRA


Lucila Nogueira Rodrigues
possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (1972), mestrado em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (1988) e doutorado em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (2002). Atualmente é professora da Pós- graduação e da graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Teoria Literária, literatura brasileira, literatura portuguesa, literatura hispanoamericana, atuando principalmente nos seguintes temas: poesia, literatura, crítica literária , literatura comparada, sociocrítica, mitocrítica, crítica de gênero, estudos interculturais, criação literária, medievalismo, classicismo, romantismo, simbolismo, modernismo, vanguardas, pós-modernimo.

E SE INDA HOUVER AMOR

E se inda houver amor eu me apresento,
E me entrego ao princípio do oceano,
E se me atinge a onda, úmida eu tremo
esquecida de insones desenganos.

E se inda houver amor eu me arrebento
feliz, atravessada de esperança
e mesmo lacerada inda assim tento
quebrar com meu amor todas as lanças.

E se inda houver amor terei alento
para agüentar o inútil destes anos.
E não me matarei, sonhando o tempo
em que me afogarei no seu encanto

e se inda houver amor, ah, me consente
ser pasto de tua chama, astro medonho.
E se inda houver amor, eu simplesmente
apago esta ferida do meu sono.

LUÍS GUIMARÃES JÚNIOR


Na página 86 do volume 3 de Vida e obra de Machado de Assis, de R. Magalhães Júnior, lemos: Em janeiro de 1886, chegava ao Rio de Janeiro o poeta e diplomata Luís Guimarães Junior, um dos mais velhos amigos de Machado de Assis. [...] O viúvo recente chegara ao Rio de Janeiro trazendo um retrato da esposa, a fim de que seu busto fosse modelado em bronze pelo estatuário Rodolfo Bernardelli, que convivera com o casal em Roma,. quando bolsista do governo imperial. Trazia também a segunda edição dos Sonetos e rimas [...] e de vários sonetos inéditos dedicados à esposa. Logo depois, a Revista Ilustrada transcreveria um deles, “A Morta”.
Uma curiosidade: a expressão "depois de um longo e tenebroso inverno" é de um verso do poema "Visita à casa paterna" desse importante poeta romântico.

A MORTA

Meu amor! meu amor! hirta, gelada,
Dormes o sono que amedronta e aterra:
Ó meu franzino bogari da serra!
Ó minha rosa pálida e magoada!

A alma gentil, a essência imaculada
Que teu corpo encerrou, meu corpo encerra,
Pois quando foste para a imensa terra
Num beijo eu te sorvi a alma adorada.

Pastam os vermes no teu colo airoso,
E sobre os lábios teus, Anjo saudoso,
As negras larvas funerais se agitam...

Mas, ó milagre! dentro do meu peito
Convulso, aflito, exânime, desfeito,
Sinto dois corações e ambos palpitam!

LUIZ CLAUDIO DE FARIA


Luiz Claudio Vianna de Faria nasceu no Rio de Janeiro em 1956. Graduou-se em Psicologia. Há 20 anos trabalha como psicólogo clínico e psicanalista. Autor de dois livros de poesia, Antes que madrugada e Corpos em deserção.

AI QUEM ME DERA


Ai quem me dera compor canções à luz da lua
Sentado, Carlitos, à beira deserta duma rua
De bem co'a vida, o sorriso fácil n'alma lis
Farrapo de luz, terno de linho, chapéu de gris

Ai quem me dera filosofar em bom francês
Burilar, Sartre, pensamentos à beira do Sena
Trazer a alma leve, serena e lisa a tez
O riso cheio de vin rouge, de lirismo a fiel pena

Ai quem me dera Woody Allen, ter sonhos
De um sedutor, tomar todas em Manhattan
À meia-noite pegar o último bonde para Santa Teresa
Deleitando-me sob os olhares ébrios da lua têsa

Ai mas que não passo de um reles tecedor de loas
O espírito travesso gastando-me a vida assim à toa
Gosto assim. E hei de gastá-la em boa companhia
Chapéu de gris, vin rouge, amor de lua, poesia.


Do livro Corpos em deserção (Oficina do Livro, 2002)

LUIZ OTÁVIO OLIANI


Luiz Otávio Oliani é natural do Rio de Janeiro, graduado em Letras e Direito. Participou de diversas antologias e tem poemas publicados em jornais do país e do exterior. Com incursões no teatro e no jornalismo, freqüentou oficinas e atua no movimento literário da cidade carioca desde 1990. Publicou o livro de poesia Fora de órbita (Editora da Palavra, 2007).

LABUTA
A João de Abreu Borges

em sua própria vida
o homem finca raízes

atravessa árvores
mata fungos

sem olhar para trás
e perceber: os frutos

não mera conseqüência

PARTILHA

a mão estendida
abençoa o trigo

à procura do ponto
ágeis dedos
manipulam a massa
do mundo

mas a vida só faz sentido
quando se reparte o pão