VOU-ME EMBORA..., de Ivo Korytowski


Vou-me embora pra Pasárgada, lá sou amigo do Presidente, e do líder do partido do Presidente, e do tesoureiro do partido do Presidente... (fique entre nós: lá, tenho a verba que quero no paraíso fiscal que escolherei).

Vou-me embora Brasil afora (onde todo mundo é meu amigo): Bela Vista, Belo Horizonte, Bonito, Feliz, Formosa, Jardim, Nova Esperança, Porto Alegre, Maravilha — beleza pura!

Vou-me embora to Brazil, South America, capital city Buenos Aires, gastar o milhão que ganhei (suando a camisa no assalto ao trem-pagador) com as "amiguinhas" — mulatas, morenas, louras, um harém! — que arranjarei.

Vou-me embora pra Terra de Marlboro, lá sou amigo dos caubóis, e posso fumar fumar fumar — que o câncer não vai me matar.

Vou-me embora pra Maracangalha, lá sou amigo do Dorival, uniforme branco, chapéu de palha, e desta vez há de vir Amália.

Vou-me embora pra Terra do Nunca, lá sou amigo do Peter Pan, de lá estico pra Terra Encantada, dou uma passada no País das Maravilhas e — brincar brincar brincar — venho parar no Sítio do Picapau Amarelo.

Vou-me embora pra Terra do Sol Nascente, lá sou amigo das gueixas frementes, ver o arrebol da manhã enquanto ainda dorme o Ocidente.

Vou-me embora pra terra de Oz, lá sou amigo do mago dotado de superpoderes (efeitos especiais, dizem os desmancha-prazeres).

Vou-me embora pra Casa da Mãe Joana, zorra total, liberou geral, oba oba, a vida eterno carnaval/bacanal/saturnal... legal!

Vou-me embora mundo afora: Kristinestad, Smyrna, Kadmandu, La Tur du Pint, Malabar, Honolulu (quem sabe ainda vá parar, pleno Pacífico, na ilha de Vaitupu?)

Vou-me embora pro ultramar, pros antípodas, pro fim do mundo, lá onde o Judas perdeu as botas, pra lá de Marrakesh, pra lá de Bagdá.

Vou-me embora pra Amsterdam, passear de barquinho nos canais, fumando haxixe no narguilê — que lá a polícia não vem prender.

GRANDES E PEQUENAS MARAVILHAS, de Ivo Korytowski


Existem grandes maravilhas: comer mancheias de caviar ao som de balalaicas às margens do Mar Cáspio. Mas existem pequenas maravilhas também: entrar na primeira padaria que surgir pela frente e escolher a dedo aquele pão doce cheio de creme pra sair comendo pela rua, ou o croissant (ou pão de provolone) pra saborear em casa, camada de manteiga com sal e geléia de morango — ou prefere damasco?

Existem grandes maravilhas: excursão de degustação pelos vinhedos de Borgonha. Mas existem pequenas maravilhas também: entrar em botequim qualquer e saborear aquela latinha de Bohêmia, ouvindo todo o papo furado daquele pessoal que parece não ter horário nem compromisso como você.

Existem grandes maravilhas: assistir à peça de Shakespeare em Stratford-upon-Avon. Mas existem pequenas maravilhas também: ver capítulo de novela qualquer na televisão. Não acompanhar compulsivamente toda e qualquer novela, dia após dia, mas ver um capítulo aleatoriamente, sem saber muito bem a história. Na novela, é como se as revoluções estéticas do século XX jamais tivessem ocorrido. Sua lógica, totalmente romântica, folhetinesca, rocambolesca: incríveis coincidências, amores impossíveis, expectativas dilacerantes — culminando no final feliz! E os diálogos? Os diálogos, de tão naturais, até parecem reais — a gente não se dá conta de que um autor, um escritor, um roteirista escreveu aqueles diálogos.

Existem grandes maravilhas: ouvir a Filarmônica de Berlim, com toda a pompa e circunstância, em seu país natal. Mas existem pequenas maravilhas também: ouvir o CD favorito no momento — que pode ser aquele trio de Schubert, o álbum do ERA ou o velho disco de boleros remasterizado — à meia-luz, balançando na rede, incenso indiano queimando.

Existem grandes maravilhas: ganhar pendentif de ouro do namorado. Mas existem pequenas maravilhas também: beijoca estalada na orelhinha! Existe coisa melhor?

Existem grandes maravilhas: ir a Roma e ver o papa. Mas existem pequenas maravilhas também: subir a Santa Teresa, Rio de Janeiro, e ver o puja no templo budista.

Existem grandes e pequenas maravilhas. E dado que os extremos se tocam, as pequenas acabam se revelando tão prazerosas quanto as grandes. Pensando bem, as pequenas saem ganhando: afinal, poupam-nos de estafantes deslocamentos, do aperto de lata de sardinhas e turbulências dos aviões, das intermináveis prestações pós-viagem...

Afinal, não é a toa que reza o ditado: boa romaria faz quem em casa fica em paz.


Do livro Édipo. O meu livro - ótimo presente de fim de ano para quem curte uma boa leitura - foi lançado em 2004 e não está mais nas livrarias, mas está à venda em várias livrarias virtuais - pesquise no Buscapé (clique) onde está mais barato. Garanto que vai gostar. Sobre o livro, disse Antonio Carlos Villaça: "Édipo nos revela um grande contista. Um dos melhores contistas do Brasil de hoje. O livro nos mostra a perfeição de um estilo, argúcia da observação, análise implacável, minuciosa, leve. É um contista fluente, ágil, malicioso. Tão humano! O irmão de Marques Rebelo."
PS. Embora eu quase não saia do Rio e deteste voar, decorridos alguns anos sinto uma vontade irresistível de visitar a Europa - veja neste blog minhas postagens sobre algumas viagens.

UM CARIOCA EM SÃO PAULO

MASP

O editor deste blog morre de amores pelo Rio de Janeiro, mas sente uma admiração profunda por Sampa. Tão perto (uma hora de avião, seis horas pela Dutra) mas tão diferente (como são diferentes Munique e Frankfurt, Roma e Milão, etc.) De Sampa a mídia mostra só as enchentes periódicas e megaengarrafamentos diários (assim como do Rio só mostra guerras do tráfico e balas perdidas), mas existe muito mais tanto lá quanto cá. 


Estação da Luz

Em dois dias de visita a Sampa (por ocasião do casamento do meu irmão paulistano) vi (usando tão somente o metrô e as pernas, que é como gosto de conhecer uma cidade): a , uma verdadeira catedral gótica "medieval", o Centro em geral ainda com vários prédios do início do séc. XX, o Pátio do Colégio onde a cidade começou, o Mercado Municipal onde se come o famoso sanduíche de mortadela e o pastel de bacalhau, a 25 de Março, espécie de Saara paulistano, Museu da Língua Portuguesa (de onde a gente sai orgulhoso de nossa língua), Pinacoteca, MASP (inacreditável, nível de museu europeu, não existe nada que se lhe assemelhe ao sul do Equador), Avenida Paulista, Livraria Cultura (a maior do país, quiçá do mundo), Bixiga, Liberdade...... Vale a pena fazer a viagem de ônibus até lá. Depois que você entra no estado de São Paulo, é como se tivesse adentrado um primeiro mundo brasileiro: tudo é pujança, progresso, riqueza (com uma ou outra mazela, que o primeiro mundo também tem).


Pinacoteca do Estado

Edifício Montreal de Oscar Niemeyer inaugurado no ano do quarto centenário da cidade

Viaduto Santa Ifigênia

Rua 25 de Março

Galeria Pajé

Mercado Municipal

Sanduíche de mortadela no Mercado Municipal

Casario atrás do Mercado Municipal

Pateo do Collegio

Solar da Marquesa de Santos

Casa da Imagem

Edifício do antigo Banespa visto da Rua 15 de Novembro

Edifício José Fakhoury

Busto de Adoniram Barbosa na Praça Dom Orione, no Bixiga

São José e escadaria (Bixiga)

Igreja de Nossa Senhora Achiropita

Bar no Bixiga

Palmeira solitária (Rua Itapeva)

Crônica escrita em abril de 2012. Leia mais sobre Sampa clicando no label "São Paulo " abaixo.

A BARATA SAI CARO, de Ivo Korytowski


Que o cão é o maior amigo do homem, todos hão de concordar. E o maior inimigo? O próprio homem. Homo homini lupus — O homem é um lobo para o homem. Mas em segundo lugar, ao menos nos meios urbanos, vêm as baratas. Acham que exagero?

Vez ou outra deparamos, num desses programas de TV sobre o mundo natural, com denodado cientista coletando, examinando, catalogando alguma ordem de inseto: borboletas, besouros, essas coisas. Mas nenhum cientista é maluco de estudar as baratas (só se for um cientista masoquista). Se elas já parecem medonhas, hediondas a olho nu, em tamanho natural, quão mais assustadoras serão — você consegue imaginar? — sob a lente do microscópio?

O dia (bendito dia!) em que a barata for uma espécie em extinção, quero ver se algum ambientalista virá em sua defesa. Mundo sem baratas, maior barato!

Dizem os expertos que a barata existe desde as priscas eras em que os dinossauros reinavam sobre a Terra. Cá entre nós, os dinossauros, tão fofinhos, não mereciam...

O primeiro preceito budista proíbe matar animais. Por isso, o bom budista não come carne. Mas como fazem os bons budistas pra conviver com as baratas? Acho que vou fazer uma viagem ao Sri Lanka pra pesquisar in loco esta questão!

A barata, de tão repelente, não é citada em nenhum livro da Bíblia, seja do Novo ou Antigo Testamento. E olha que até a pulga tem seu momento de fama na sagrada escritura: “Após quem saiu o rei de Israel? A quem persegues tu? A um cão morto, a uma pulga!”

Não se pode servir a dois senhores simultaneamente: ou você se dedica à família, ou à literatura. Depois de vários casamentos (formais e “pirata”) malsucedidos, resolvi me casar com a literatura (as freiras não se casam com Cristo?). Mas como me dedicar à nobre arte num apartamento que (sem o toque feminil) aos poucos vinha sendo invadido por legiões de formigas e baratas?

Combater as formigas foi mais fácil. Sempre que elas farejam (lá da rua, suponho) uma pitada — ainda que infinitesimal, no sentido matemático do termo — de açúcar ou qualquer alimento doce, escalam (suponho) os três andares até a minha toca e, em perfeita fila indiana, qual soldadinhos de desenho animado, vêm atacar o petisco. A solução: bombardear a fila de formiguinhas. Bombardeio de inseticida, claro, que não sobra uma pra contar a história.

Ou por outra, sobra sim. Porque, depois de alguns meses de bombardeios sistemáticos e impiedosos, imagine que as formiguinhas desistiram de vir me incomodar! Tenho pra mim que as formigas não são nada imbecis e se comunicam entre si: sabe o apartamento lá no terceiro andar onde mora aquele escritor aloprado cercado de livros? Pois é, tomem cuidado, que ele é meio nazista...

Já as baratas são mais burras. A cada barata que você extermina (morrendo de nojo, às vezes chegando ao cúmulo de se arrepender de ter se separado — pelo menos pra matar baratas a patroa servia), logo aparecem mais duas. Não há nada que espante esses repelentes ortópteros onívoros (obrigado, Aurélio!) — nem mesmo a Cavalgada das Valquírias ou música funk.

Munido de tubo após tubo de inseticida, declarei guerra santa, cruzada contra as baratas que teimavam em vir dar as caras onde não eram chamadas. Se, no Juízo Final, eu vier a ser acusado de assassino de pobres baratas, replicarei ao bom Deus, pobres uma ova, eu bem que avisei, alto e bom som, que não ousassem invadir meu sagrado domicílio, que a pena não era nada branda — pena de morte, sumária, sem apelação. Quem mandou serem abusadas?

Pois: um dia estava tranqüilamente preparando o almoço quando flagro uma barata passeando, maior cara-de-pau (não tomem esta expressão literalmente), bem em cima do meu fogão. Numa reação que já se tornara automática, peguei do tubo de inseticida e... pfff... quase provoquei um desastre. Ninguém nunca me havia dito que o inseticida é inflamável, e a chama do fogão veio subindo spray acima quase até o tubo em minha mão. A pobre da barata, baratinada, mergulhou de encontro à chama do fogão, que lhe queimou as pernas, deixando-a desmembrada e morta. Dantesco!

Aquela foi a gota d’água. Parei tudo que estava fazendo, peguei as Páginas Amarelas e liguei pras dedetizadoras. Escolhi a empresa de maior preço (a barata sai caro) e com maior garantia: um ano sem estas pestes! É bom demais pra ser verdade.

É bom demais pra ser verdade, disse eu? Pois é, meu primo advogado veio logo cortar meu barato. Ele é desse tipo chato-de-galochas-que-gosta-de-contar-fim-de-filme. (O Burton faz um papel perfeito de mordomo, nem dá pra desconfiar que ele é o assassino... ih, foi mal, sem querer contei o fim do filme.) Segundo ele, o Procom está assim de gente reclamando de dedetizações que não surtiram o menor resultado.

Deus, ó Deus, não quero me meter em Vossa criação, mas em Vosso lugar, no Dilúvio Universal, teria feito uma única exceção às baratas. Deixando-as sucumbir. (Escrito em junho de 2004, quando eu morava sozinho e legiões de insetos invadiam meu apartamento)

BLECAUTE, de Ivo Korytowski

Depois do blecaute (apagão) de 1999 escrevi o texto seguinte. Mudou alguma coisa?

Noite de quinta-feira, 11 de março de 1999. Após um dia de trabalho ao computador, o lazer, também ao computador: leio e escrevo e-mails. De repente, apaga a luz. Um fusível queimado? Pior. Olho pela janela: Copacabana mergulhada nas trevas. Somente no dia seguinte viria a saber que o blecaute – ou apagão, como se diz agora – atingiu grande parte do país.

Às apalpadelas, eu e outros milhões de brasileiros vamos à procura da vela. Tenho uma, remanescente da árvore de Natal, na estante de livros. A penumbra em que viveram nossos ancestrais traz mal-estar ao homem moderno. Sem o som da TV, atordoa-nos o barulho de nossos pensamentos. Sem o rádio de fundo, instala-se a solidão. Sem o ar-condicionado, o calor é saariano. Foi-se a época dos “Serões de Dona Benta”: perdemos o hábito da boa prosa, a não ser o papo-furado inconseqüente regado a cerveja, cana.

Em meio à paralisia geral, uma única pessoa funciona: o guarda de trânsito da esquina da Copacabana com a Figueiredo. Observo-o da janela. O apito, normalmente irritante, agora reconforta, adquire dimensões metafísicas, é o único sinal de ordem em meio ao caos. Os motoristas estão inquietos, na escuridão há risco de assalto, ninguém quer parar nos sinais. O guarda, iluminado tão-somente pelos faróis dos automóveis, coordena os dois caudais de veículos que ali se entrecruzam. Quando tudo está funcionando às maravilhas, uma ambulância, sirene estridente, vem atrapalhar, procurando abrir caminho exatamente pela rua cujo tráfego o guarda acabara de reter. Mas este não se atrapalha, detém de novo o tráfego da Copacabana, liberando o da Figueiredo, tudo tão difícil em meio às trevas do blecaute.

Lembra-me um episódio do tempo em que eu trabalhava na Rede Ferroviária. Certa vez, já encerrado o expediente (fazíamos hora extra), acabou a luz. Não restava outra alternativa senão ir embora. Mas era noite já, estava escuro. À luz de um ou outro isqueiro, fomos desvendando o caminho rumo à saída. Naquele apuro, parecíamos todos ceguinhos. Todos, menos um. Tínhamos um colega cego, programador. Eis que ele passa pelos corredores desenvoltamente com sua bengala, deixando todos nós para trás. Naquele momento, nós éramos os deficientes e o cego “enxergava”. Se eu fosse um desses autores de parábolas edificantes, tiraria bela lição de vida desse episódio. Mas sou um pessimista empedernido!

Em meio ao atordoamento geral, uma única pessoa funcionou, escrevi eu? Minto, duas! Recebi dias depois e-mail da minha amiga poetisa Eliana Mora. Ela me contou que, em meio à escuridão, lembrou-se de que sabe tocar um instrumento: a caneta. E à luz de vela, escreveu um poema, belo poema, que um dia vocês hão de ler numa página literária da Internet. Será que nem disso consigo tirar lição edificante de vida? Arre! Pessimismo tem limite!

PASSEIOS PELO RIO ANTIGO, de Ivo Korytowski


No Capítulo XXI de Quincas Borba, na viagem de trem de Barbacena ao Rio de Janeiro, Rubião observa que, “para quem estava acostumado a costa de burro, a estrada de ferro cansava e não tinha graça; não se podia negar, porém, que era um progresso...”

De progresso em progresso, descartamos o zepelim, o transatlântico, a maria-fumaça, o bonde (com a honrosa exceção do bondinho de Santa Teresa, o último dos moicanos). Viajamos espremidos na classe turística de monstruosos aviões. As atrações turísticas se sucedem qual programas de televisão sob a batuta do controle remoto: chegada em Paris, translado ao hotel, à tarde, city tour pelos principais monumentos, à noite, espetáculo no Lido, manhã seguinte, Museu do Louvre (correria pelos quadros mais “famosos”)...

Tudo muito vertiginoso. Um progresso, não se pode negar. Mas cá entre nós: pra conhecer uma cidade, você tem de caminhar por ela, sentir-lhe o burburinho, os odores, os sabores, o colorido, a paisagem humana.

Com o advento do assalto à mão armada, do poder paralelo dos traficantes, dos arrastões e tiroteios, passamos a temer nossa própria cidade maravilhosa e perdemos o costume de “andar por aí”, “sem lenço, sem documento”. Algumas páginas da literatura talvez nos inspirem a retomarmos esse hábito.
No conto machadiano "O Erradio", o personagem principal é um andarilho urbano. “Ia a toda parte; era comum achá-lo nos lugares mais distantes uns dos outros, Botafogo, São Cristóvão, Andaraí. Quando lhe dava na veneta, metia-se na barca e ia a Niterói. Chamava-se a si mesmo erradio.” Uma noite, após sair no meio de uma peça de teatro e tomar chá (!) no botequim próximo até o fechar das portas, Elisário (assim se chamava o Erradio) vai a pé do centro a São Cristóvão, percorrendo um Rio antigo em grande parte destruído pela abertura da Avenida Presidente Vargas e pelo aterro do Cais do Porto:

Ainda o apanhei na Rua dos Ciganos [atual rua da Constituição]. Ia devagar, com a bengala debaixo do braço, e as mãos ora atrás, ora nas algibeiras das calças. Atravessou o Campo da Aclamação [atual Praça da República], enfiou pela Rua de S. Pedro [Avenida Presidente Vargas] e meteu-se pelo Aterrado acima [nome genérico de boa parte do trajeto do Campo de Santana, Av. Presidente Vargas e Av. Francisco Bicalho]. Chegamos assim à ponte do Aterrado, enfiamos por ela, desembocamos na Rua de S. Cristóvão. Ele algumas vezes parava, ou para acender um charuto, ou para nada. Tudo deserto, uma ou outra patrulha, algum tílburi, raro, a passo cochilado, tudo deserto e longo. Assim chegamos ao cais da Igrejinha [a Igreja de São Cristóvão, que ficava à beira mar]. Após alguns minutos, quando me pareceu que ia voltar pelo mesmo caminho, acordou os remadores de um bote, que de acaso ali dormiam, e propôs-lhes levá-lo à cidade.

Quem leva à perfeição a arte de flanar pelo Rio antigo é Pedro Nava, que em sua obra autobiográfica descreve longos passeios pela Glória, Santa Teresa, Centro, São Cristóvão, Rio Comprido na primeira metade do século XX. E Helio Brasil, em seu primoroso livrinho São Cristóvão, sugere ao leitor “demorar sua observação em alguns cantos do bairro. Quem sabe, até realizar caminhadas para descobertas de encantos imprevisíveis...”

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TIROTEIOS CARIOCAS, de Ivo Korytowski


A “tradição” carioca da bala perdida é mais antiga do que imaginamos. Há meses, amigo me contou que tinha vaga lembrança de conto de Machado de Assis em que o personagem morre vítima de bala perdida. Se eu conseguisse localizar o conto, ele me pagaria um almoço. Obstinado que sou, ganhei o almoço! E o leitor, sabe a que conto me refiro? No final desta crônica, revelarei.

O Rio de Janeiro deve ser a única cidade do mundo (tirante regiões em guerra civil ou convencional) onde, do recôndito de nosso lar, se consegue ouvir às altas horas da noite o matraquear de metralhadoras das “guerras” entre quadrilhas de traficantes. Isso é tido como tão normal que ninguém protesta, ninguém reclama: nenhuma ONG, nenhum defensor dos direitos humanos, nenhum senador ou deputado eleito pelo Rio, nenhuma autoridade eclesiástica, Fernando Henrique Cardoso, Lula, OAB, ABI... ninguém! [NOTA: Crônica escrita em 1999, quando FHC estava no governo e Lula, fazendo barulho na oposição.]

Eu pessoalmente tenho duas histórias de tiroteio para contar aos netinhos quando envelhecer. Na primeira, subia de táxi a Almirante Alexandrino, Santa Teresa, para deixar em casa um amiguinho do meu filho. A certa altura, este indagou:

– Por que tem uma pessoa com metralhadora na rua?

Claro que não lhe demos ouvidos. Crianças são cheias de imaginação! Até que, após dobrarmos uma esquina, deparamos com uma fileira de policiais militares, metralhadoras em punho, agachados junto à mureta, dando tiros em direção à favelinha em baixo. Da favela vinham tiros de metralhadora também, que espoucavam no ar como fogos de artifício no Revéillon. Bonitos! Instei o motorista: “Mete o pé no acelerador!” Saímos ilesos!

Dias depois, também num táxi na praia de Botafogo, de repente o chofer abre a porta e some, deixando-me apatetado, perplexo no banco de trás. Levei alguns segundos até dar conta da situação: tiros de revólver, pessoas correndo em todas a direções. Abandonei o veículo e, agachado rente ao meio-fio, afastei-me do local. Felizmente, o tiroteio não veio em nossa direção, tomou outro rumo. Minutos depois, reaparecem táxi e chofer na maior cara de pau: embora me abandonasse na hora do perigo, voltou para não perder a corrida.

Antes que me esqueça, o conto de Machado de Assis é "Pílades e Orestes", em Relíquias de casa velha. A bala perdida é da Revolta da Armada. Leiam o conto.

Foto: "Bala perdida" do encouraçado Aquidabã que atingiu a torre sineira da Igreja de N.S. da Lapa dos Mercadores durante a Revolta da Armada em 1893.

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AMOR VIRTUAL, de Ivo Korytowski



ELE

Foi tudo tão de repente, inesperado. Normalmente esperava a esposa dormir para ligar o computador. Às vezes, já estava ligado – atualizava minhas planilhas financeiras, trocava e-mails, acessava sites ligados à minha atividade profissional. Mas depois que ela adormecia, Dr. Jekyll dava lugar a Mr. Hyde: eu chafurdava nas páginas pornôs da Internet. Quanto mais obsceno, melhor: garotas, lésbicas, gays, homens, sado, hermafroditas, travestis, hardcore, orientais, amadoras, raciais, grupal, anal, animais, loiras, morenas, ruivas, velhas, animadas, cabeludas, ninfetas, gatinhas, grávidas, shaving, orgias, era essa a minha praia. A mulher não desconfiava de nada, sabia que eu sofria de insônia, que não conseguia dormir cedo. Era habitué das salas virtuais de imagens eróticas. Meu nick (pseudônimo) era priapismo, que significa "excitação sexual excessiva", o Aurélio não me deixa mentir. Mas naquela noite, não sei o que me deu na cabeça que entrei numa sala diferente: encontros românticos! Efeito do uísque? Adotei um nick sugestivo: casado 35 rj. Ninguém precisava saber que eu tinha dez anos mais e a vantagem das salas virtuais da Internet sobre os recintos da vida real é que ninguém vê sua calvície, sua barriga de chope...

ELA

Toda noite, fico horas batendo papo nas salas do UOL, ZAZ, até de Portugal. Papai anda brabo comigo, reclama que a conta telefônica está astronômica, que eu devia estudar mais, aqueles papos de pai, mas eu desarmo ele, digo que pelo menos estou em casa quietinha em vez de me arriscar à noite pelas ruas dessa cidade violenta. As salas são legais, rolam altos papos, já arrumei até uns namorados de carne e osso por lá. Namoros fugazes: um cara era saxofonista, gente fina, mas muito sem dinheiro; o outro...

ELE

De repente, encontrei-me na sala de encontros românticos. Nunca visitara uma sala dessas antes. Uma loucura, essas salas da Internet: entra gente, sai gente, qualquer um fala com qualquer um, admirável mundo novo; no meu tempo de rapaz, com exceção de um ou outro boa-pinta que ganhava todas as gurias, éramos tão tímidos, tão inseguros, convidar uma garota numa festa para dançar era uma operação de logística. Mas hoje em dia...

O QUE ROLA NA SALA VIRTUAL
(00:32:21) DINHO : entra na sala...

(00:32:31) **@njinho**® : entra na sala...

(00:32:57) DINHO: OOOOOOLLLLLLLLáááááá alguma gatinha ..afim de tc??????

(00:34:18) **@njinho**® sorri para TODOS: Bom dia galera!!!! :O)

(00:34:28) Dr. DOS DESEJOS:) : entra na sala...

(00:34:58) Dr. DOS DESEJOS:) : BOA NOITE MEUS PACIENTES!!

(00:35:31) Dr. DOS DESEJOS:) pergunta para TODOS: ALGUM DESEJO GATAS ?????

(00:36:26) **@njinho**® sorri para TODOS: Um beijo p/ as =^..^=, a proposito alguma disponivel a um papo legal???


ELE

No início, fiquei só sacando. De cara, uma tal de Bia me abordou.

O QUE ROLA NA SALA VIRTUAL

(01:08:09) Bia : entra na sala...

(01:08:20) Alan fala para Divin@: Eu quero saber como e que voce teve a ideia desse apelido!

(01:08:43) Bia : Olá, alguém disponível?

(01:08:52) Divin@ sorri para Alan: Promete não dizer a ninguem ?

(01:09:16) Alan fala para Divin@: Prometo!

(01:09:29) Bia fala reservadamente com casado 35 rj: O que um belo carioca e casado faz por aqui a estas horas?

(01:09:44) Carlos-RJ : entra na sala...

(01:09:58) Divin@ murmura para Alan: É que eu me acho divina e maravilhosa..... *risos*

ELE

Quedei-me fascinado com aquele mundo novo da comunicação ampla, geral, irrestrita, mas senti-me bloqueado: não correspondi ao aceno de Bia. Belo carioca, ela não sabia de nada! Até que ingressou na sala alguém de nick irresistível: Pandora. Cedi à tentação de interpelá-la. Valeu a pena, foi um papo memorável! Perguntei se sabia que Pandora foi a caixa mítica de onde advieram todos os males do mundo; respondeu que sim, claro. Citou certo bar virtual, Clube do Uísque, um chat bem interessante, às vezes o próprio Hemingway aparece por lá! Perguntei-lhe se gostava de uísque real, não virtual. Gostava, seu nick no clube era ballangirl, o meu seria chivasboy, retruquei. A mãe dela lecionava literatura, ela cursava o último ano de psicologia. "Caramba, então vai devassar-me a alma!", brinquei. Perguntei se pretendia exercer a profissão, hoje em dia as pessoas estudam uma coisa e acabam virando outra. Respondeu que adorava a profissão que escolhera. Brinquei que ela teria muito campo de trabalho, pois neuroses é que não faltam! Comentei sobre o filme Os Miseráveis, ela contou que assistira ao musical, estranhei pois não foi encenado no Brasil. Assistira em Londres.

ELA

Conheci um cara legal: casado, mas hoje em dia isso não quer dizer nada. Carioca, 35 anos, deve ser um gatão! Entrei com o nick Pandora, nem sabia direito que negócio é esse, achei que fosse alguma marca, devo ter lido numa revista, mas ele achou interessante, falou sobre mitologia, concordei. Inventei que curso psicologia, não vou revelar que estudo Ciências Contábeis na Universidade Castelo Branco, não tem graça. Contei que estive em Londres, quem esteve lá foram papai e mamãe para comemorar bodas de prata, falei sobre o musical Les Misérables que eles assistiram lá, e trouxeram até o programa. Marcamos encontro hoje às dez da noite na mesma sala ou na mais próxima, se estiver cheia. Combinei entrar com meu nome verdadeiro: Catarina.

ELE

Catarina é uma garota interessante. Conversamos sobre os mais variados assuntos: Machado de Assis, Orestes Barbosa... Pensei que essas garotas mais novas só conhecessem aquilo que passa na Globo. Parece uma garota sensível, gosta de orquídeas, ikebana... Não é como minha mulher, conversa se restringindo a contas, empregada, escola do filho... Ela me ensinou a entrar no reservado, sala que permite conversar a dois sem que ninguém nos "ouça". No final, trocamos beijinhos. Começo a sentir por ela algo mais do que mera amizade. É a idade do lobo!

O QUE ROLA NA SALA VIRTUAL

(23:01:13) Taia : entra na sala...

(23:01:38) Catarina fala reservadamente com casado 35 rj: Boa Noite? Como foi o seu dia?

(23:02:04) Taia sorri para TODOS: Olá!

(23:02:32) Taia pergunta para TODOS: Alguém disponível?

(23:05:49) casado 35 rj fala reservadamente com Catarina: Ótimo, andei quilômetros na praia de manhã cedo antes de sair pra trabalhar.

(23:06:41) Catarina fala reservadamente com casado 35 rj: Que inveja adoro o mar.

(23:07:40) casado 35 rj fala reservadamente com Catarina: Eu também adoro, aqui nasci e desde criança curto o mar.

(23:07:50) Catarina fala reservadamente com casado 35 rj: O "mar" mais próximo da minha casa é o Lago Parnoá!

(23:08:09) Catarina fala reservadamente com casado 35 rj: Digo Paranoá.

(23:08:38) casado 35 rj fala reservadamente com Catarina: Já estive por aí! Será que não existe um mar virtual para você se banhar!?

(23:09:32) Catarina fala reservadamente com casado 35 rj: Infelizmente um banho de mar virtual é um pouquinho difícil para a minha linda cabecinha. Só aumentaria a vontade.

(23:10:48) casado 35 rj fala reservadamente com Catarina: Em compensação, você está próxima da sede do poder! Realmente, o Rio é uma cidade privilegiada, uma metrópole, das maiores cidades do mundo, e em trinta minutos vai-se do mar à montanha! Você conhece a Cidade Maravilhosa?

(23:12:03) Catarina fala reservadamente com casado 35 rj: Já fui quando criança,mas não me lembro de muita coisa. Faz uns quinze anos mais ou menos.

(23:22:49) casado 35 rj fala reservadamente com Catarina: A gente está de papo, mas até agora não sabemos o e-mail um do outro. E se de repente cair a luz aí ou aqui e não conseguirmos mais nos contactar? Em Quincas Borbas, Rubião combina com a bela Sofia que ambos contemplem o Cruzeiro do Sul toda noite a determinada hora e se lembrem um do outro. Na época, não havia telecomunicações. E se perdermos o contato, como fazemos?

(23:23:38) Catarina fala reservadamente com casado 35 rj: Contemplaremos o cruzeiro do sul, faremos à moda antiga.

(23:26:13) casado 35 rj fala para Catarina: Só que o método não funcionou. "Chora os dous recentes mortos, se tens lágrimas. Se só tens riso, ri-te! É a mesma cousa. O Cruzeiro, que a linda Sofia não quis fitar, como lhe pedia Rubião, está assaz alto para não discernir os risos e as lágrimas dos homens." Não funcionou, viu? (Esta passagem é tão bonita que resolvi enviar fora do reservado para todos lerem.)

(00:03:17) Lover pede licença, entra devagarinho, oferecendo flores às princesas da sala: Boa noite! Alguém livre para conversar?

(00:04:06) Catarina fala reservadamente com casado 35 rj: Qual a sua cor preferida?

(00:04:57) Catarina fala reservadamente com casado 35 rj: De que tipo de música gostas?

(00:06:34) casado 35 rj fala reservadamente com Catarina: Cor? Sei lá! Azul marinho serve? Música? Meu gosto é eclético: jazz, MPB, Mozart, Beatles, Beethoven... Chão de Estrelas!

(00:07:32) Catarina fala reservadamente com casado 35 rj: "...E tu pisavas nos astros distraída, sem saber que a ventura desta vida é a cabrocha, o luar o violão..."

(00:07:49) Catarina fala reservadamente com casado 35 rj: É esta?

(00:08:08) IGRAINE : entra na sala...

(00:09:35) IGRAINE : I give him all my love. That's all I do. And when you saw my love. You'd love me too.....

(00:10:08) IGRAINE : Alguém na sala querendo tcl ???

(00:10:17) casado 35 rj fala reservadamente com Catarina: Os astros eram o reflexo da lua que se projetava pelos furos do teto!

(00:11:10) Catarina fala reservadamente com casado 35 rj: Queria um barraco como aquele, sem trinco e a lua furando o zinco.

(00:11:12) casado 35 rj fala reservadamente com Catarina: Prefiro uma apartamento na Zona Sul do Rio. Barraco hoje em dia é perigoso com essas guerras de quadrilhas.

(01:22:20) casado 35 rj fala reservadamente com Catarina: Um beijinho platônico.

(01:22:41) Catarina fala reservadamente com casado 35 rj: Beijos!

(01:22:50) Catarina fala reservadamente com casado 35 rj: De verdade!

(01:23:03) Divin@ sorri para Alan: Gracinha......

(01:23:31) casado 35 rj sorri para Catarina: Obrigado!

(01:23:48) Catarina fala reservadamente com casado 35 rj: Hasta mañana!

(01:24:11) casado 35 rj sorri para Catarina: Hasta mañana!

ELA

O cara é legal mesmo, papo cabeça. Chama-se Roberto. Falou sobre o Quincas Borba, ainda bem que li no colégio e ainda me lembro de alguns trechos. Falou de Chão de Estrelas, a música preferida de mamãe, de tanto ela tocar o disco, de vinil ainda por cima, decorei a letra. Não deve ser um pé-rapado qualquer, deve ter um carrão com um baita som. Só que ele está lá no Rio e eu aqui neste Planalto Central. É diferente dos outros caras que conheci na Internet, começo a sentir algo mais do que amizade. Vou mandar uma foto bem bonitinha pra ele por e-mail, aquela que o Ricardo tirou na margem do Paranoã três anos atrás. No fundo, deveria mandar uma foto mais recente, mas não estão tão boas como aquela: eu ainda não usava aparelho nos dentes, estava magrinha, fazendo regime, e a maneira como o sol bateu em mim, de lado, me fez parecer uma ninfeta. É essa foto que mandarei.

ELE (alguns dias depois)

Ela me mandou uma foto: é bonitinha! Caí na armadilha de Cupido, estou gamado. O amor é lindo. Será que meu casamento vai pra Cucuia? Ainda é cedo pra pensar nisso, nem conheço Catarina em pessoa. Pior que ela me pediu uma foto também: só se eu arrumar uma peruca! Brincadeira! Talvez um foto mais antiga! Mês que vem tenho um congresso lá em Brasília, vem a calhar, já estou contando as horas, vou conhecer Catarina em carne e osso!

ELE (no dia seguinte)

À uma da madrugada, no melhor da conversa no chat com Catarina, eis que a porta se abre e, para meu azar, não era fantasma: minha mulher entra no escritório! Mamma mia! Com a rapidez de um deputado "pianista", apertei Alt+Tab e pulei para uma planilha do Excel. Por medida cautelar, nas minhas incursões antes pornográficas e agora amorosas, sempre mantenho aberta uma planilha qualquer.

– Trabalhando a esta hora da noite? – indagou Teresa.

– É a insônia, meu bem – respondi automaticamente.

– Tive um pesadelo. Sonhei que você me abandonava. Premonição?

– Besteira, vai dormir senão amanhã você perde a hora – respondi, preocupado com Catarina lá no chat.

TRECHOS DE E-MAILS TROCADOS ENTRE CATARINA E ROBERTO

Qual o primeiro pensamento que me ocorre ao acordar? Qual o último pensamento que acalento antes de adormecer? Quem habita meu coração na vigília e no sono? (Adivinhe!) VOCÊ!

Amar à distância é viver tentando vislumbrar com os olhos da imaginação você preparando ikebanas, seu sorriso (real, não o do chat!), sua voz, seu perfume, nosso futuro primeiro encontro...

Amorzinho, eu estava tão tristonha com o telefone quebrado, a companhia telefônica avisou que o conserto poderia levar 48 horas, mas felizmente ele voltou a funcionar! Aguardo sua resposta. Beijinho.

Beijos... Beijos... Beijos... Beijos... Beijos... Beijos... Beijos... Beijos... Beijos... Beijos... Beijos... Beijos... Beijos... Beijos... Beijos... Beijos... (Milhões de beijos!)

AQUI O NARRADOR ASSUME O TIMÃO

Mês e meio após conhecer Catarina na sala de encontros românticos da Internet, Roberto teve de ir ao tal congresso em Brasília. Uma semana antes, parecia mulher de tão preocupado com a aparência: o hálito, os dentes amarelos demais, os óculos (chegou a visitar o oculista para trocá-los por lentes de contato, mas não se adaptou), as roupas caretas demais, a libido um tanto arrefecida... Comprou livro de sonetos de Vinícius de Moraes, chegou a decorar alguns versos ("Que não seja imortal, posto que é chama / Mas que seja infinito enquanto dure."). Na floricultura, escolheu a mais bela das orquídeas, em caixa transparente, comprou bombons de cereja da Kopenhagen... Tudo isso a caminho do aeroporto, pra mulher não desconfiar de nada.
Enfim, o encontro – na primeira noite do Congresso, no bar do hotel. Claro está que descobriram defeitos um no outro imperceptíveis no reino platônico da Internet. Mas após mês e meio de arroubos amorosos, os mecanismos de defesa da psique tinham por dever amortecer a queda: foram carinhosos um com o outro, andaram de mãos dadas como namoradinhos adolescentes, abraçaram-se, dançaram até o sol raiar na boate do hotel, Catarina levou-o ao lago Paranoã... mas – estranho – não se beijaram. À despedida, no aeroporto, juraram amor eterno. Dali pra frente, os e-mails, os encontros nas salas foram rareando. Roberto vivia ocupado, não tinha tempo. Catarina precisava estudar para as provas. Ela mudou de nick nas salas virtuais e conheceu outras pessoas interessantes. Roberto voltou aos sites de pornografia. Aquela premonição... Não foi dessa vez.

Conto escrito em 1999 e inédito em livro. Foto: Montagem de Maytê sobre foto de Brasília de Augusto Areal.