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MARINHAS: "Tudo vale a pena / Se a alma não é pequena"



MAR PORTUGUEZ
Fernando Pessoa

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quere passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abysmo deu,
Mas nelle é que espelhou o céu.



MARINHA 2
Isabel Corsetti

Espuma nas pedras da praia,
nós na toalha de xadrez.
Crianças e um cesto de santos,
gaivotas e fitas.
Vento de chuva, revirando telhas.
Nadar e amar na areia.

Tesouros, segredos, perdidos medos,
fogueiras e balões
sanfonas e cantos de viola
aguardente com limão
água de cheiro, roupas de algodão
peixe na pedra, farinha e pirão.

Agora hordas na orla, antes só nossa.
Tristes quiosques e pastéis,
tratores, conchas e estrelas do mar.
Construções, calçamento e cones,
gritos e o silêncio das ondas,
picolés e pizzas.

E o arrastão das tardes?
Ambulantes, camarão e coco?
Cores, cabanas e canoas?

Foram-se jangadas e pipas.
E nós na praia, mãos dadas,
pisando em algas
e siris.

Só maresia e saudade.



ÀS MARINHAS
Maria Thereza Noronha

Onda brincando na praia
em anágua de cambraia

dizei-me o que vistes lá
nos altos verdes do mar

se o vistes do branco barco
à proa, de algas ferido

se o vistes em vítreos olhos
de encapeladas espumas

Onda dançando na areia
véspera de lua cheia

dizei-me o que vistes lá
nas escarpas de alto mar

se em sonho transido o vistes
por encanto de sereia

mas ai, que o vistes luzido
e de regresso, dizei-me.

Do livro O verso implume (Rio de Janeiro, Oficina do Livro, 2005) 



MARINHA
Lucia Aizim

No mar o coração entre vagas
No mar esperança entre vagalhões
No mar o amor emerge entre destroços
No mar dia e noite dão-se as mãos.

No mar os anjos trocam as asas
Duendes invadem os poços
e se desvanecem.

Afastado o sonho
ao alcançar a dura
superfície.

O amanhã resplandece.

Do livro Cânticos (Rio de Janeiro, Sette Letras, 2000)



MAR DO NORTE
Wanda Lins

sinto-me hoje como uma praia
do Mar do Norte
sob o chumbo algodoado
do céu invernal

gris a mais não poder

deserta

tão somente algumas gaivotas
mergulhando e bicando
a tristeza encrespada do mar



Do livro 50 tempestades



O REI DO MAR
Cecília Meireles

Muitas velas. Muitos remos.
Âncora é outro falar...
Tempo que navegaremos
não se pode calcular.

Vimos as Plêiades. Vemos
agora a Estrela Polar.
Muitas velas. Muitos remos.
Curta vida. Longo mar.

Por água brava ou serena
deixamos nosso cantar,
vendo a voz como é pequena
sobre o comprimento do ar.
Se alguém ouvir, temos pena:
só cantamos para o mar...

Nem tormenta, nem tormento
nos poderia parar.
(Muitas velas. Muitos remos.
Âncora é outro falar...)
Andamos entre água e vento
procurando o Rei do Mar.


Do livro Flor de poemas



MAR
Paulo da Mata-Machado Júnior

Mar de poesia, mar de mármore, mar de Minas,
mar de amplas possibilidades telúricas
mar que tem um ar assim, de quem já viu tudo
e é sempre cúmplice. Forja, bigorna e martelo.

Plasma líquido, verde vaga, voga incontido
abismo, vórtice por si mesmo escalavrado.
Mar medicinal, mar curativo mar remédio,
onda, tempestuosa língua
lambida áspera que golpeia a pedra
e com sal pensa os ferimentos decorrentes.

Mar de amar, maré, amarração
mar muro, maravilha, mel, marmelo
entre azuis, ouropel, verde-amarelo
seda, âmbar, mate, limonada;
e agora também em sabor caramelo.


Do livro Ossos do ofício



BEIRA-MAR
Prosa poética de Ivo Korytowski

Deitado na praia deserta sob a lua cheia, duas visões se me apresentavam: à esquerda, visão da cidade, horrendo amontoado de blocos cavernosos formando intrincados labirintos. À direita, a bonita visão das águas verde-azuladas, cruel sorvedouro de seres humanos (os salva-vidas que o digam!).

Dor de cotovelo. Puta
deprê. Meu amor brigou comigo, me deixou na solidão — a canção do tempo da Jovem Guarda reverbera na minha cabeça. Tempo que cabeça se chamava cuca. Cuca fundida. Tempo que eu era feliz e não sabia.

É doce morrer no mar. Fascínio imemorial pelo mar. Suas profundezas, habitavam-nas entidades: Iemanjá, rainha do mar, Netuno, deus dos mares... O advento da exploração submarina expulsou-os de sua morada, como a exploração espacial despejou São Jorge e o Dragão da lua (a os marcianos de Marte!) Será que ainda resistem em algum plano espiritual (ou outra dimensão física) inacessível aos assédios da técnica?

Àquela mesma hora da madrugada, quantas mulheres, na frieza do leito, curtem saudades do marido velho marinheiro que partiu na escuna pro arrastão em alto mar...

Em tempos idos, quantas lágrimas portuguesas com certeza derramadas, à beira-mar, pelo bem-amado que se partiu por mares nunca dantes navegados — que navegar é preciso.

Sol nascente. Pescadores chegam à praia. As redes repletas de peixes pululantes: chernes, enchovas, sardinhas, uma arraia — saltam, bailam, rodopiam qual trapezista no circo, ou bailarina no teatro. Macabro contorcionismo: vã tentativa de escapar à morte!

É doce viver no mar. Por um instante (qual Pessoa invejoso de um mendigo da rua só por não ser ele, Pessoa), queria ser um desses homens rudes, curtidos de sol e cachaça, que partem, inda madrugada, barra afora, atirar a rede e encher o barco dos frutos do mar. Doce mar de águas tão salgadas.



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE: POESIA DA VIDA


RELOGINHO, RELOGINHO
Carlos Drummond de Andrade

Reloginho, reloginho
embora apenas suplente,
bate bate direitinho,
bate bem rapidamente
a hora de meu bem chegar.
Mas se é hora de partir,
atrasa o mais que puderes
e não deixes nunca ir
a mais doce das mulheres.

Reloginho, compreendido?
Sempre teu, agradecido.

Do livro Poesia errante


DEZOITO ANOS SEM DRUMMOND

Edmílson Caminha
Texto escrito em 2005

Faz 18 anos que se foi Drummond, em 17 de agosto de 1987, exatamente doze dias depois que morrera a filha amada, Maria Julieta. A propósito da data, vem-me à memória não o poeta, o cronista, mas o brasileiro Carlos, o cidadão comum, igual a tantos outros homens e mulheres do seu tempo. Servidor público, foi Drummond, de 1934 a 1945, chefe de gabinete do Ministro da Educação, seu amigo e conterrâneo Gustavo Capanema. Não nos esqueçamos de que o Presidente da República se chamava Getúlio Vargas, que mantinha o governo sob rédea curta e administrava o Brasil com mão de ferro.

Como vemos, Drummond esteve, por onze anos, muito perto do poder e a poucos passos dos poderosos, e disso não se aproveitou para usufruir privilégios nem para fazer fortuna: viveu honrada e parcimoniosamente, com os ganhos de funcionário público e de escritor que colaborava na imprensa. Deixou para a viúva, Dona Dolores, a pensão devida e um bom mas nada luxuoso apartamento, na Rua Conselheiro Lafaiete, entre Copacabana e Ipanema, em que hoje mora o neto Pedro Augusto e onde já estive muitas vezes.

Se há quem hoje diga, em meio ao escândalo de mensalões, que participou de falcatruas apenas para receber dívidas, Drummond poderia ter prevaricado sob a desculpa de que, para os mortais, é duro resistir quando se está tão perto do tesouro... Não o fez, pelos princípios morais e pelos valores éticos que lhe nortearam a existência. Já dissera Machado de Assis: "A ocasião não faz o ladrão: faz o furto. O ladrão já nasce feito."

Assim, tanto quanto uma admirável obra, Carlos Drummond de Andrade nos deixou uma lição e um exemplo: uma lição de vida e um exemplo de dignidade, com que honrou o Brasil e fez melhor o tempo que lhe foi dado viver.

Escritor e jornalista, Edmílson Caminha é o autor de Drummond: a lição do poeta (Brasília, Thesaurus, 2002).




VIOLA DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Cyro de Mattos

Dos humanos desacordes
compuseste a tua viola
afinada atrás do tempo.
De tudo um pouco ensinas
na arte de ver a vida
além de tudo vinagre.
Esta pedra no meio
do caminho estrepa.
No que segue claro
me sinto menino, maior,
montanha, tamanho de José,
no que não se desvenda
oh, razão, mistério
ninguém acha escape.
E vozes mais das vezes
uma esperança perdida,
a morte do leiteiro,
um quadro na parede,
são alçapões do amor.
Ó da rosa radiante,
a que chamamos solitude,
palavra no ar, tuas mãos,
espantos, tantos espantos.

Do livro Os Enganos cativantes


Grafite de Drummond na entrada do Túnel Velho, Copacabana

PORQUE MEU BEM FAZ ANINHOS
Carlos Drummond de Andrade


Porque meu bem faz aninhos
um raio de sol dourado
entrelaçou mil carinhos
pelo céu, de lado a lado.

Um ramo de beijos ternos
balançava sobre os ninhos
entre miosótis eternos
porque meu bem faz aninhos.

Porque meu bem faz aninhos
o rei, o valete, a sota
mais a fada e os anõezinhos
dançaram samba e gavota.

A nuvem mais cor-de-rosa
enfeitiçou-se de gatinhos
de bigode à Rui Barbosa
porque meu bem faz aninhos.

Porque meu bem faz aninhos
eu ganhei um chocolate
que tinha sete gostinhos
todos do melhor quilate.

Hoje eu brinco, pulo, canto,
assim como os passarinhos,
e mais eu canto me encanto
porque meu bem faz aninhos.

Do livro Poesia errante (1988)


E AGORA, POESIA? (trecho de matéria da revista Veja de 26 de agosto de 1987)

Em apenas doze dias, o poeta Carlos Drummond de Andrade esteve duas vezes no Cemitério São João Batista, em Botafogo, no Rio de Janeiro. Na primeira, o poeta mineiro, de 84 anos, enterrou a pessoa que mais amava, a filha Maria Julieta, de 57, vítima de um câncer generalizado. Cabeça baixa, olhos secos e atônitos, Drummond (...) disse: “Não tenho mais futuro, acabou tudo para mim.”

Doze dias depois, o poeta morto [às 20h45 de 17 de agosto de 1987] percorreu a alameda, conduzido no caixão pelos seus três netos e amigos.

A PALAVRA, NO MEIO DO CAMINHO (trecho de um dos raros depoimentos do poeta, concedido em janeiro de 1984 a Edmílson Caminha e publicado no suplemento literário do Diário do Nordeste).

Edmílson: Seus versos já viraram letra de música, enredo de escola de samba e tema de campanha eleitoral. Partindo-se do debate em torno do que é nacional e do que é popular na cultura brasileira, você se considera um poeta popular?

Drummond: Não, eu não me considero um poeta popular, não tenho essa pretensão. Claro que eu gostaria de ser, mas o conceito de poeta popular é muito ligado aos meios de comunicação de massa. Eu não tenho acesso a eles, a televisão jamais me contrataria para fazer um programa semanal. (...) 0 escritor de papel perde longe para os compositores e para os poetas chamados populares. Acho até que o poeta popular de cordel tem mais divulgação do que o poeta brasileiro dito de elite.


Drummond e a Cow Parade (2011)

VISITA A DRUMMOND (do livro de Antonio Carlos Villaça, Os saltimbancos de Porciúncula).

Drummond não gostava de receber ninguém na sua casa. Muitas vezes, conversei com ele, no gabinete do MEC, uma espécie de furna com armários de aço, a isolá-lo do resto da sala.

Fui uma única vez ao seu apartamento, já no fim, dia 18 de setembro de 1985. E por motivos especiais. Maria Julieta, a filha única, fora eleita para o Pen Clube. E morava num minúsculo apartamento, na rua Barão da Torre. Seria impossível receber lá a diretoria do Pen Clube, para a comunicação oficial.

Drummond, solícito, resolveu que a reunião seria em sua casa, um sétimo andar na rua Conselheiro Lafaiete. (...)

Pois nos recebeu au grand complet, em grande estilo, um senhor coquetel, vários garçons, uísque, vinho, salgadinhos variados e até doces. Foi uma festa. O poeta caprichou. Amava tanto aquela filha, que morou longos anos em Buenos Aires.

O poeta estava feliz. Elegantíssimo, de camisa azul, paletó claro. Ia e vinha. como um perfeito anfitrião. Não propriamente à vontade, cerimonioso (como era seu feitio). Mas tão amável. (...)

Mais de meia-noite, Drummond acompanhou os visitantes até a calçada.

TRECHO SOBRE DRUMMOND na década de 1930 do 4o volume das memórias de Pedro Nava, Beira-mar

Era muito magro, mas extremamente desempenado, tinha o gauche que tornar-se-ia folclórico, um ar de orgulhosa modéstia (não sei se posso colocar juntas as duas palavras, entretanto não acho outras), aparência, à primeira vista, tímida, escondendo o homem dono de uma das maiores bravuras físicas e morais que já tenho visto juntas na mesma pessoa. Engana-se quem o julgar pela magreza e pelo franzino. Na realidade esse ser delgado é todo feito de tiras de aço, de couro, de juntas de ferro que servem o homem forte que ele é.


CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Poema de Manuel Bandeira em homenagem aos 60 anos de Drummond

Louvo o Padre, louvo o Filho,
O Espírito Santo louvo.
Isto feito, louvo aquele
Que ora chega aos sessent'anos
E no meio de seus pares
Prima pela qualidade:
O poeta lúcido e límpido
Que é Carlos Drummond de Andrade.

Prima em Alguma Poesia,
Prima no Brejo das Almas.
Prima na Rosa do Povo,
No Sentimento do Mundo.
(Lírico ou participante,
Sempre é poeta de verdade
Esse homem lépido e limpo
Que é Carlos Drummond de Andrade.)

Como é fazendeiro do ar,
O obscuro enigma dos astros
Intui, capta em claro enigma.
Claro, alto e raro. De resto
Ponteia em viola de bolso
Inteiramente à vontade
O poeta diverso e múltiplo
Que é Carlos Drummond de Andrade.

Louvo o Padre, o Filho, o Espírito.
Santo, e após outra Trindade
Louvo: o homem, o poeta, o amigo
Que é Carlos Drummond de Andrade.


VINTE ANOS SEM MARIA JULIETA E DRUMMOND
Texto de 2007 de Edmílson Caminha

Os vinte anos da morte de Maria Julieta — em 5 de agosto [de 1987] — e de Carlos Drummond de Andrade, apenas doze dias depois, são marcados pelo nascimento de um herdeiro e pela edição de um livro. A criança é Miguel, filho de Josiane e de Pedro Augusto, que vem ao mundo com a honra de ser neto de Maria Julieta e de Manuel Graña Etcheverry (grande intelectual argentino) e bisneto de Dolores e do poeta Carlos. O livro é Querida Favita, com mais de cem cartas (inéditas!) do itabirano famoso para a sobrinha Flávia — ou Favita, como carinhosamente a chamava. A edição, bem cuidada e elegante, é da Universidade Federal de Uberlândia, e já tem dois lançamentos confirmados: em Belo Horizonte, no dia 18, e em Brasília, no dia 23.

Que se homenageie Drummond, mas que não nos esqueçamos da grande escritora que foi Maria Julieta. Aí estão, para provar, Um buquê de alcachofras e Pombos & gatos. E, principalmente, A busca, admirável romance escrito por uma jovem de 17 anos, que impressiona pela força dos sentimentos e pela boa realização literária. É hora, já, de organizar em livro as centenas de crônicas escritas por Maria Julieta para O Globo, textos que a incluem, sem favor, entre os melhores nomes do gênero na literatura brasileira.

Certo dia, ao lhe dizer que algumas das suas crônicas, de tão primorosas, poderiam ser assinadas pelo pai, revelou-me ela um segredo: às vezes, por estar acamada, Drummond escrevia a crônica para O Globo; em troca, chegou a filha a mandar, para o Jornal do Brasil, crônicas suas como se fossem do pai. “E nunca ninguém reclamou, nem de um lado nem do outro...”, disse, ao confessar a jogada de cúmplices.

Desaparecidos há vinte anos, Maria Julieta e Carlos Drummond de Andrade continuam vivos, pela grandeza da obra com que fizeram o mundo melhor e a vida mais bela.


DRUMMOND PERMANENTE
Poema de Cyro de Mattos

Em meu ouvido um pássaro
Canta de tudo os instantes
Neste diálogo com o mundo
Como oferendas do amor.
Quantas vezes não mundo
Tão solidário enternece.
Por entre gestos de espanto
Nesta rosa dos eventos
Não sei o que mais comove,
Canto ao homem do povo,
Aquele quadro no deserto,
Sinais e expressões do tempo
Faminto de situações patéticas.
Apenas eu sei que tropeço
Nesta pedra no meio de tudo.
Ó de Itabira, se bem procuro,
Afinal termino encontrando
Não a explicação (relativa)
Da vida mas a beleza,
Sem explicação, da vida.



MÃOS DADAS
Carlos Drummond de Andrade

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,

não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente.




O POEMA MAIS GENIAL DE DRUMMOND

No meio da jornada da vida, entre a primeira fase modernista de uma poesia vigorosa, incisiva, antilírica (prosaica por vezes), em suma, de ruptura com o passado, E agora José, No meio do caminho tinha uma pedra, e a fase madura de intenso lirismo, “sentimentalismo ginasiano, lirismo kitsch” acusa/exagera o polêmico Diogo Mainardi, Porque meu bem faz aninhos, Quero ser namorado a vida inteira, época em que conquistou um grande público como cronista de jornal, em meio a essas duas fases, dizíamos, Drummond publica um livro surpreendente, de grande elaboração formal, uma poesia "erudita", no nível dos grandes clássicos do vernáculo: Claro Enigma (1951). Ali figura o poema mais genial de Drummond, o melhor poema brasileiro de todos os tempos segundo alguns escritores e críticos: “A máquina do mundo”.

A MÁQUINA DO MUNDO

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade;

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.


JARDIM

Negro jardim onde violas soam
e o mal da vida em ecos se dispersa:
à toa uma canção envolve os ramos,
como a estátua indecisa se reflete

no lago há longos anos habitado
por peixes, não, matéria putrescível,
mas por pálidas contas de colares
que alguém vai desatando, olhos vazados

e mãos oferecidas e mecânicas,
de um vegetal segredo enfeitiçadas,
enquanto outras visões se delineiam

e logo se enovelam: mascarada,
que sei de sua essência (ou não a tem),
jardim apenas, pétalas, presságio.


"as janelas olham"

CIDADEZINHA QUALQUER

Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.

Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.

Devagar... as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.


Manual do Poeta (ebook de Ivo Korytowski): Tudo sobre a arte poética – verso, estrofe, métrica, rima, ritmo, sonoridade, recursos de construção, recursos imagísticos, soneto, haicai, trova, balada, elegia, ode, cordel etc. Baratinho. Para mais informações clique aqui.

POEMAS SOBRE GATOS





O GATO
Aníbal Beça

O gato aparece à noite
com seu esquivo silêncio
de passos bem calculados
num jogo de paciência
as garras bem recolhidas
na concha de suas patas

O gato passeia a noite
com seu manto de togado
como se fosse um juiz
de presas resignadas
a sua sentença de sombras
seu apetite de gula

O gato varre essa noite
facho de suas vassouras
vermelhas de olhos ariscos
e alcança nessa limpeza
o movimento mais presto
o guincho mais desouvido

Mais que perfeito no bote
(tal qual Mistoffelees de Eliot)
do pulo que nunca ensina
tombam baratas besouros
peixes de aquário catitas
ao paladar sibarita

Nada à noite falta ao gato
nem a presteza no salto
nem a elegância completa
do seu traje de veludo
para o baile dos telhados
roçando as fêmeas no cio

O gato é ato em seu salto
e a noite luz do seu palco:
ribalta luciferina
lunária ária da lua
na réstia de seus dois gozos
é félix feliz felino

Guardei a sétima estrofe
para o canto do mistério
das sete vidas do gato
e seu tapete aziago
nas noites de sexta-feira
há provas do seu estrago.



SONETO DO GATO MORTO
Vinicius de Moraes

Um gato vivo é qualquer coisa linda
Nada existe com mais serenidade
Mesmo parado ele caminha ainda
As selvas sinuosas da saudade

De ter sido feroz. À sua vinda
Altas correntes de eletricidade
Rompem do ar as lâminas em cinza
Numa silenciosa tempestade

Por isso ele está sempre a rir de cada
Um de nós, e ao morrer perde o veludo
Fica torpe, ao avesso, opaco, torto

Acaba, é o antigato; porque nada
Nada parece mais com o fim de tudo
Que um gato morto.




OS GATOS DA TINTURARIA
Cecília Meireles

Os gatos brancos, descoloridos,
passeiam pela tinturaria,
miram policromos vestidos.

Com soberana melancolia,
brota nos seus olhos erguidos
o arco-íris, resumo do dia,

ressuscitando dos seus olvidos,
onde apagado cada um jazia,
abstratos lumes sucumbidos.

No vasto chão da tinturaria,
xadrez sem fim, por onde os ruídos
atropelam a geometria,

os grandes gatos abrem compridos
bocejos, na dispersão vazia
da voz feita para gemidos.

E assim proclamam a monarquia
da renúncia, e, tranquilos vencidos,
dormem seu tempo de agonia.

Olham ainda para os vestidos,
mas baixam a pálpebra fria.




ENIGMÁTICOS
Maria Thereza Noronha

Mil vezes sim à casa e velhos hábitos
observando gatos em seus códigos,
que atravessar a praça onde montículos
de medo trazem sombra aos olhos trágicos.

Cem vezes não à fonte com meus cântaros,
inda que rodeada de preâmbulos,
mas entreter-me com gatos e seu lânguido
espreguiçar, em tarde de desânimo.

Mil vezes sim à casa e velhos séquitos
olhando gatos – posto, às vezes vândalos –
rodopiem em sopro e pêlos sôfregos,
que percorrer cidades e seus ângulos

onde outros – esquálidos, telúricos
gatos – riscam em saltos acrobáticos
e sobre a humanidade sonambúlica
pousam olhos de luz, enigmáticos.




A GATA CHRISTIE
Frederico Gomes

a Cristina Costa César, também "gata"
        a Oscar F. Neto e seus gatos

Ela me apareceu na janela 
num salto-assalto repentino, 
como sói acontecer a um felino. 
Quem é ele, indagava-se. E eu: 
                                   - Quem é ela?

Mas que bichana mais misteriosa, 
pensei comigo, enquanto a fitava. 
Também ela, por certo, me achava, 
no mínimo, a coisa mais sem prosa

(ante minha mudez) que já vira. 
E vira para lá, para cá, 
seja no parapeito ou sofá, 
e dorme, e sonha... às vezes delira.

Se seu olhar brilha como cascatas, 
ela é cheia de suspense, mistério;
mas nem sempre leva a vida a sério, 
e rola no chão com flos, baratas;

 que artimanha, que estratagema! 
Com seu caminhar arredondado, 
bem depois do brincar saciado, 
adormece, enrolada em si mesma.

Como boêmia, tem vida noturna: 
se há luar, sem um só pingo de chuva, 
enfeita-se toda, até com luva, 
e volta ao raiar do dia, taciturna,

Que há na noite que tanto a fascina? 
Gato de Botas e Gato Preto, 
gato honesto e gato suspeito? 
E o Cão Feroz, que tanto abomina?

Na rua, parece, há muita aventura: 
corre riscos, vive por um triz, 
mas seu santo é Francisco de Assis, 
pois volta imune da noite escura.

Mas como será o mundo dos gatos? 
Mas o mundo dos gatos é vário: 
Míster Mistofelino e Macário*, 
ambos exercem estelionatos,

seja com mágicas ou com crimes. 
Songamonga e Mambojambo, dois 
felinos arruaceiros... depois 
ainda há outros: mais... ou menos... 
                                                    [sublimes.

E o gato de Schrödinger, o abstrato 
Gato Quântico? Estar-se-á vivo 
ou morto, ninguém sabe... (Esquivo 
à morte em sete "caixas" de gato?)

Contudo, Christie é uma gata à parte,
fazendo dos subterfúgios sua Arte: 
 Ela logo aparece, se triste. 
 Se alegre, desaparece a Christie.

*Mister Mistofelino, Macário, Songamonga e Mambojambo são os nomes dos gatos que, entre outros, encontramos no Livro do Velho Gambá sobre gatos travessos, de T.S. Eliot, em tradução de Ivan Junqueira. Veja mais sobre o poeta Frederico Gomes clicando aqui.




GATO PENSA?
Ferreira Gullar

Dizem que gato não pensa 
mas é difícil de crer. 
Já que ele também não fala 
como é que se vai saber? 

A verdade é que o Gatinho 
quando mija na almofada 
vai depressa se esconder: 
sabe que fez coisa errada. 

E se a comida está quente, 
ele, antes de comer, 
muito calculadamente 
toca com a pata pra ver. 

Só quando a temperatura 
da comida está normal 
vem ele e come afinal. 

E você pode explicar 
como é que ele sabia 
que ela ia esfriar?







Fotos do editor do blog. A foto superior mostra um quadro de Gerson Machado.

RECEITA DE POETA, de IVO KORYTOWSKI


Compilação da poesia bissexta e alguma prosa poética que andei cometendo desde a remota adolescência.


I

POEMAS DE AMOR


Eis, com efeito, em que consiste o proceder corretamente nos caminhos do amor ou por outro se deixar conduzir: em começar do que aqui é belo e, em vista daquele belo, subir sempre como que servindo-se de degraus, de um só para dois e de dois para todos os belos corpos, e dos belos corpos para os belos ofícios, e dos ofícios para as belas ciências até que das ciências acabe naquela ciência que de nada mais é senão daquele próprio belo.
PLATÃO, O Banquete


AMOR VIRTUAL


Serás meu absinto, meu ópio, meu nirvana,
A minha bússola, meu norte, meu caminho,
Minha fofinha, gostosinha, amorzinho.
De belas flores farás belas ikebanas!

Meu prelúdio, minha valsa, meu minueto,
Minha Vênus, meu afresco renascentista,
Meu trevo de quatro folhas, minha ametista,
Musa minha inspiradora de meus sonetos.

O seu sorriso me elevará ao alto astral.
Como serão sua voz, postura, olhar,
Seu perfume, fantasia de Carnaval?

São longos quilômetros a nos separar,
Porém, isso não tem importância. Afinal,
A Internet já fez de nós romântico par!


A CAROLINA


"A Carolina" - assim se denomina
Comovente soneto de Machado.
Estarei sendo por demais ousado
Com este soneto a ti, Carolina?

Lampiões as ruas não mais iluminam.
Morro do Castelo foi arrasado.
O tílburi é coisa do passado.
Fitar o Cruzeiro não mais fascina.

Se mudam os cenários que trilhamos,
Sentimentos quedam inalterados:
Hoje como ontem, sofremos, amamos.

Mundo cibernético sem pecados:
Nenhuma fotografia trocamos,
Entanto já estamos apaixonados!


À NAMORADA


Gosto de seus abismos, segredos, odores, perfumes,
De seus chiliques, estresses, surtos de choro, ciúmes.
Da miríade de expressões: de ninfeta, mulher fatal,
De cada dedinho das mãos e pés: vinte no total!

Gosto do choro fácil, do riso de criança em festa,
Dos cabelos castanho-escuros com franja sobre a testa,
Das unhas quando pintadas da cor da pele morena,
Batom vermelho nos lábios qual estrela do cinema.

Gosto das lições de beijo, orelhinha apetitosa,
Pezinhos de sola áspera, mas mãozinha tão mimosa,
Pintinha no rosto e em outro lugar mui bem escondido,
Pele macia, pernocas idem, abissal umbigo.

Também pudera: após milhões de anos de evolução,
A natureza teria de chegar à perfeição.
E para terminar o poema como manda o figurino:
Sorriso nota dez, voz de menina, empenho taurino.


PRIMEIRO AMOR


São dias do passado, mas jamais esqueço
Do amor que — tão mocinha — a ela dediquei.
Alvorada amorosa, um simples começo...
Não fui correspondido. Quase me matei!

Seus lábios desejava, beijá-los não pude.
A ausência do afago fazia-me sofrer.
Musa, mãe das artes, no descrever me ajude
Da jovem que de mim o afeto não quis ter.

Na cama com Cristina então me imaginava
A praticar o sexo. Tão bela e tão nua!
Mera fantasia! Triste me masturbava.

Dias do passado, perdidos no negror.
Hoje quando a vejo, passando pela rua
Olho indiferente... Não sinto mais amor!


♥ DEZ ANOS DE MI & LI ♥


O primeiro hambúrguer tiveste vergonha.
Agora os devoramos no mundo inteiro.
Nossas fofas barriguinhas cresceram junto.
Agora só falta a barriga do herdeiro.

Nos primeiros meses por aqui tu choravas
com saudades da São Paulo do Adoniram.
Hoje conheces os quatro cantos do Rio
inda melhor do que a palma da própria mão.

A diferença de idade era enorme:
um placar de cinquenta e três a vinte e seis.
Agora já nem sentimos a diferença:
são apenas sessenta e três a trinta e seis.

Amor à primeira vista? Sabe-se lá,
mas simpatia à primeira vista eu garanto.
Veja: depois de conquistar meu coração
Do armário foi conquistando cada canto

No início comemoramos bodas de folha
E mais outras pequenas bodas semanais
Hoje eis que chegamos à boda de zinco!
E pela frente decerto vem muito mais.

Pra encerrar com uma declaração de amor
A quem chegou do nada, assim de repente:
Sem a tua nobre e celestial presença
Eu seria só um tiozinho decadente...


II

POEMAS EM PROSA (& DIVAGAÇÕES)



AMOR LUNÁTICO[1](as notas estão ao final da postagem)


Desgostoso com as pessoas, enamorara-se da lua.

– Bela é a lua, sobretudo quando cheia! E tem um rosto tão sereno...
– Um rosto sereno, porém distante...
– O amor não conhece distâncias. À noite, quando a tristeza me invade o coração, sua etérea beleza me conforta. Então, converso com ela!
– Mas ela não te responde...
– Não, minha amada não é tagarela; sua resposta, não a capta o ouvido, mas o coração!
– Dormes com tua lua?
– Não me fales de amor vulgar!
– Amas a quem não compreendes...
– Seu enigma é meu amor!
– Quimeras...
– O amor é uma quimera!

Não, minhas palavras não o convenceram da impossibilidade de seu amor.
Na noite seguinte, subiu uma montanha para se aproximar mais da Eleita. Chegando ao topo, amanhecera. Desesperado, atirou-se de altura de dois mil metros rumo ao Infinito!


DIVAGAÇÕES[2]


Masturbação
Na calada da noite eu me masturbo. De repente, vieram à tona todas as frustrações; quebraram-se as lentes cor-de-rosa que me interditavam a visão da realidade; vislumbrei a vida em toda sua crueza. De um mero jogo entre dois seres, aqui estou eu, estranho animal ora alegre, ora infeliz. Amanhã meus óculos ganharão novas lentes cor-de-rosa e só verei a praia, as ondas, a brisa... Mas hoje me masturbo para não repetir o erro de meu pai.

Duas visões
Deitado na praia deserta sob a lua cheia, duas visões se me apresentavam: à esquerda, visão da cidade, horrendo amontoado de blocos cavernosos formando intrincados labirintos. À direita, a bonita visão das águas verde-azuladas, cruel sorvedouro de seres humanos. E uma escolha se me apresentou: a cidade. Curvei-me à vontade do destino.

Alma
Há dias em que acordo feliz. Feliz de ver um dia bonito, ensolarado. Feliz por algo que não sei bem o que é. E nesses dias, quão tola e incompreensível se me afigura minha gama de emoções, anseios, obsessões! Hoje acordei satisfeito, estou satisfeito. Quero ser o rapaz mais bonito, adorado por todas as moças e adorado, qual o grego Narciso, também por mim. Quero amar o mundo na certeza de que meu sentimento não é fruto de meras reações químicas, mas de algo superior ao mundo dos átomos: uma alma.

Ventura
Não termos de implorar, não termos de mendigar, as portas se nos abrindo, gentis recepcionistas sorridentes — não sermos párias no mundo.

Esplendor
Por que não conseguimos enxergar o mundo, a cada dia, como o cego que tivesse recém-recobrado a visão? Encantarmo-nos com o esplendor — maravilha de cores e formas — da realidade, em vez de ruminarmos essa ou aquela obsessão.

Clarividência
Nenhuma vidente (ou pítia, pitonisa...) em viagem astral (ou que tal) vislumbrou que, por milhões de anos, foi a Terra dominada por dinossauros!

Politicamente incorreto
Intelectuais acreditavam que encontrariam, em meio ao povo, a verdadeira pureza (autenticidade).
Encontraram, isso sim, altos índices de alcoolismo, padrastos violando enteadas e outras tais mazelas.

Latitude
Você, que tem a mente aberta e gostaria (em princípio) de passar por todas as experiências possíveis: decerto não quereria passar pela câmara de tortura!

Poesia mecânica
Ah! Pudesse apertar um botão em mim e expelir uma genial poesia, aclamada pelos críticos! Por que tudo tem que ser tão difícil?

Tolerância
Maravilha poder flanar pelas ruas sem que me cerquem pedindo autógrafos, sem que me invectivem por ser judeu, sem que se riam de mim por ser magro ou torto, ou por qualquer outro motivo, sem medo de que a polícia venha me pedir os documentos que esqueci em casa.

Fora de mim, dentro de mim[3]
Marcinho, meu filho: pedaço de mim fora de mim. E há pedaços de mim dentro de mim como se estivessem fora de mim: meus rins, minhas mitocôndrias, coisas do gênero.
E coisas fora de mim como se estivessem dentro de mim: meus livros, minhas músicas prediletas, o aconchego do lar.
Antes de eu nascer, tudo era fora de mim; após minha morte, tudo retornará para fora de mim.
Para quem me vê na rua, de passagem, é como se nada existisse dentro de mim.
Para mim, nos momentos de exacerbação do ego, é como se nada fizesse sentido fora de mim.

Efêmera
Sendo efêmera a vida, por que se perde tanto tempo em filas bancárias, oficinas mecânicas e estradas atulhadas para regiões dos lagos?

Resolução
Hoje é o primeiro dia do resto de minha vida.
Nada de provas, nem de almoços comerciais, nem comprar ações ou aplicar no fundo, ou pôr combustível correndo porque à meia-noite vai aumentar.
Pressa, jamais!
Limitar as viagens e compromissos sociais, comprar livros e livros e livros.
Nada de mestrado ou doutorado: títulos, pra que os quero?
Quero distância de cursos técnicos.
Não preciso de cartão de crédito nem de cheque especial.
E o carro sempre bem reguladinho. Pra não enguiçar.


VIRADA DE MILÊNIO[4]


O mundo mudou e mal nos apercebemos.

Posto as cidades já não tenham muralhas, os bárbaros não invadem mais nosso império romano nem os turcos chegam às portas de nossas vienas (os ataques agora vêm do alto, teleguiados).

Ninguém mais tem experiências místicas, salvo um ou outro momento de entusiasmo quimicamente induzido.

Tirante uma rara turbulência no avião ou um tiroteio imprevisto, já não levamos grandes sustos cotidianos como nossos antepassados das cavernas.

Não mais tememos as almas do outro mundo, porquanto a luz elétrica expulsou o outro mundo.

Acabaram-se os prisioneiros políticos (nas democracias), e não há mais heroísmo em exprimir as próprias idéias — por mais desvairadas, já não chocam ninguém.

Bater punheta não enfraquece nem enlouquece nem faz crescer pêlos nas mãos. Perigoso mesmo, foder. (A natureza criando seus próprios antídotos à explosão demográfica.)

As instituições tradicionais — Igreja, família, Capital — convivem lado a lado com a pornografia e o crime organizado.

Bruxas e hereges não são mais queimados na fogueira — mas os traficantes queimam seus desafetos nos “fornos-de-microondas” (e poucos protestam).

O ano 2000 chegou e (contrariando Nostradamus) o mundo não acabou.

Convivemos com a depressão, angústia e ansiedade — quase não nos suicidamos mais. (Covardes!)

Sofremos crises nervosas e trememos que nem varas verdes ante o perigo — cena patética se tivéssemos que entregar as cabeças à guilhotina da Revolução.

Conhecemos a estrutura íntima da matéria e não nos assombramos!
Não vamos à missa aos domingos, e nos dias santos peregrinamos à região dos lagos.

Deus assiste a tudo impassível — como assistiu ao Holocausto — e ainda acreditamos nele.


MINHOCAS NA CABEÇA


☻ Quem está de cabeça para baixo: os japoneses ou nós?

☺ De onde vem tanta água? (Por exemplo, as águas do Amazonas!)

☻ Por que o orgasmo não dura uma hora, ou os camarões não proliferam como a sardinha - ou seja, por que Deus foi tão avaro com as coisas boas?

☺ Será que Deus se importa com os risos e as lágrimas dos homens tanto quanto os homens se preocupam com as alegrias e tristezas das formigas?

☻ Se o dinheiro traz a felicidade, por que não se fabrica em maior quantidade?

☺ Por que os videntes não ficam milionários jogando na Bolsa (ou na Megassena)?

☻ Se, por um acesso de insanidade, todos os passageiros de um avião deixarem de acreditar ser ele capaz de voar, o aparelho cairá?

☺ É possível contemplar o pôr-do-sol sem olhos? (Os espíritas afirmarão que sim.) Deslocar-se sem pernas? (Os espíritas não têm dúvidas de que sim.) Sentir o perfume da flor do campo sem nariz? (Os espíritas talvez achem que sim.) Apreciar o sabor das iguarias sem língua? (O que dirão os espíritas?) Ter orgasmo sem órgão genital? (Claro que não!)

☻ Existem outras pessoas? (Em outras palavras, quem garante que não sou louco?)

☺ Por que os intelectuais de minha geração se fascinaram com as experiências trágicas da Rússia, China, Albânia etc. e ignoraram por completo a aparentemente bem-sucedida experiência holandesa?

☻ Na maré alta, o mar se dilata ou fica um vazio no fundo?

☺ Por que, antes de 1933, ninguém jamais afirmou que Nostradamus previu a ascensão de Hitler? (Por que só se descobre que os videntes previram um fato depois que aconteceu?)

☻ Deus criou também os micróbios e o cocô?

☺ Freud chegou a ter algum paciente semivitalício como (praticamente) o são os pacientes da psicanálise moderna? (Meus amigos psicanalistas que me perdoem esta brincadeira!)

☻ Se os dez maiores engenheiros do mundo forem confinados em uma ilha deserta, farão brotar um Empire State Building? (Em outras palavras, daqui a mil anos, surgirá um livro sobre o século XX intitulado Eram os Engenheiros Astronautas?)

☺ Estará a morte para a vida como a vigília para o sonho? (Ou seja, ao morrer, acordaremos para outra realidade?)

☻ Se os sacerdotes são tão íntimos de Deus, por que não O convencem a fazer mais milagres? (Ou, inversamente, se são tão ineficazes, por que os sustentamos?)

☺ Existem anjos? Números irracionais? Princípios morais? A mesa ou cadeira platônica, em si? A dignidade? O mal? Iemanjá? O inferno? O outro lado da lua? O nirvana?

☻ Se não passamos de um átimo na infinidade do espaçotempo, por que nos percebemos como o centro do Universo?

☺ Cai um avião lotado e se salvam alguns passageiros. Rezam agradecidos. Se Deus pôde salvá-los, por que não se esforçou mais um pouquinho e evitou o acidente?

☻ Por que os homens deixam de acreditar em Papai Noel e continuam acreditando no Papai do Céu?

☺ Por que chatos de galocha, ecologistas e naturalistas de plantão não atribuem às ondas de rádio e televisão que cruzam a atmosfera o aumento da incidência do câncer? (Talvez agora que dei a idéia, passem a atribuir – mas quero os “direitos autorais”!)

☻ Por que o microfone não acabou com o canto lírico, o cinema não acabou com o teatro e o helicóptero não acabou com o alpinismo?

☺ Por que temos medo do nada após a morte e não temos medo exatamente do mesmo nada antes de termos nascido?

☻ Onde estavam os anjos da guarda quando os nazistas mataram centenas de milhares de crianças?

☺ Por que nenhum místico ou vidente, em viagem astral, jamais vislumbrou que (por exemplo) durante milhões de anos a Terra foi habitada por dinossauros?

☻ Por que não existem Cláudias, Márcias e Danieles feias? (Ou seja, o nome de batismo determina as características físicas?)

☺ Por que os fantasmas das milhões de vítimas dos nazistas não vieram puxar os pés de seus algozes enquanto estes dormiam? (Ou seja, para que existem fantasmas se são ineficazes?)

☻ Não passa pela cabeça dos naturalistas que cicuta e veneno de cobra são cem por cento naturais? (Aceita uma dose?)

☺ Não passa pela cabeça dos naturalistas que usar óculos é totalmente antinatural?

☻ Por que na Literatura as prostitutas são “santas”, os policiais vivem “crises existenciais”, os bêbados são iluminados e os ricos são desalmados quando todo mundo sabe que as putas são frias negociantes do próprio corpo, os policiais costumam ser truculentos, o alcoolismo é um flagelo e há quem fique rico pelo próprio esforço?

☺ Se o século XXI começou no ano 2000, como apregoou a mídia, o século I começou no ano zero? (Existiu o ano zero?)

☻ Os sentimentos também se compõem de átomos?

☺ Por que esse alvoroço todo em torno do fim do milênio, se a divisão do tempo em mil anos é arbitrária, convencional (como as fronteiras entre os países)?

☻ Por que quem nunca se interessou por arte, quando vai a Paris, faz questão de visitar o Louvre; quem nunca se interessou por arqueologia, quando vai a Londres, sente vontade de visitar o British Museum; e quem nunca se interessou por religião, em Roma, acha que tem de ver o papa?


III

RECEITA DE POETA



RECEITA DE POETA[5]


O poeta não precisa ser boa-pinta
Mas tem de escrever coisa supimpa.

Não precisa ser um Humphrey Bogard
Contanto que componha uma bela obra.

Pode se chamar João, José, Almir
Sob a condição de que saiba escandir.

Não importa se branco, índio, preto
Mas tem de compor um belo soneto.

Não importa se pardo, moreno ou louro
Se o soneto culminar em chave de ouro.

O poeta pode até ser meio franzino
Mas tem de compor em alexandrino.

O poeta pode ser coxo ou manco
Mas que se esmere no verso branco.

Ao falar, quem sabe seja gago?
Mas ao escrever tem de ser um Machado.

Na vida real pode até ser vulgar
Mas na poesia tem de saber rimar.

O poeta pode até ser casmurro
Mas tem de escrever com apuro.

O poeta pode até ser ferino
Se compuser como manda o figurino.

O poeta pode ser um pecador
Mas tem de escrever com vigor.

Pode esquecer de fechar a braguilha
Contanto que componha redondilha.

O poeta pode até ser bonachão
Se escrever do fundo do coração.

O poeta pode até ser malandro
Contanto que componha um ditirambo.

O poeta pode até ser um paxá
Mas não pode escrever rima má.

Não é preciso ser trovador
Mas não vá rimar "amor" e "dor".

O poeta pode até ser palhaço
Contanto que nos eleve ao Parnaso.

Não precisa ser de origem nobre
Contanto que evite a rima pobre.

Ele pode se meter num entrevero
Contanto que escreva com esmero.

O poeta pode até ser "filha da puta"
Mas tem que escrever coisa batuta.

O poeta pode ser meio cavalar
Contanto que evite a rima vulgar.

O poeta pode ser de direita
Contanto que a rima seja perfeita.

No dia-a-dia pode até ser trapalhão
Mas na métrica tem de ser campeão.


IV

POEMAS TRADUZIDOS



RELÓGIOS, PARAR!

W. H. Auden[6]

Relógios, parar! Telefone, desligar!
Um osso suculento pro cão não ladrar.
Pianos, silêncio! Com dobres de finados
Tragam o caixão, venham os enlutados.

Aviões circulem chorosos pelo céu
Escrevendo uma mensagem: ele morreu.
Os pombos da rua laços de crepe ostentarão
Os guardas de trânsito, luvas pretas de algodão.

Ele era meu sul, norte, oriente, ocidente
Domingo de lazer, meus dias de batente
Meio-dia, meia-noite, papo, canção
Pensei que o amor fosse eterno: triste ilusão!

Sejam expulsos os astros, já não fazem sentido,
A lua empacotada, o sol destruído!
Os oceanos, secados, a mata, ceifada,
Já que tudo isso não serve mais para nada!


VITA NUOVA

Oscar Wilde

Erguia-me diante do infrutífero mar
Face e cabelos pelas ondas encharcados,
As longas rubras chamas do dia finado
Ardiam a oeste; que vento de arrepiar!
Rumo à terra gaivotas ruidosas a voar:
“Ai!” gritei, “que vida cheia de decepção
E quem há de colher fruto ou dourado grão
Nesses campos desolados a labutar?”
Redes furadas e falhadas escancaro
Tentando a sorte no meu último arremesso
Mar a dentro, e então quedo-me à espera do fim.
Eis que com uma inesperada glória deparo
Surgir o esplendor de membros cor de marfim
E em júbilo meu triste passado esqueço.


A MALDIÇÃO DE ADÃO

W. B. Yeats

O verão chegava ao fim; eu, você e ainda
Aquela moça amiga sua, meiga e linda,
Juntos sentados comentávamos poesia.
Observei: “Um verso talvez nos tome um dia.
Mas se não parecer pensamento fugaz
O nosso esforço terá sido ineficaz.
Mil vezes preferível forçar nossa espinha
Trabalhando em pedreira, varrendo a cozinha
Tal qual pobretão, faça chuva, faça sol,
Porquanto harmonizar entre si doces sons
É pior que isso tudo, e ser, não obstante,
Tachado de inútil pelo grupo falante
De banqueiros, mestres-escolas e eclesiásticos
Que os mártires chamam de mundo.”

.... Ao que
Aquela mulher divina e maravilhosa,
Cuja voz doce, suave e melodiosa
Despedaçaria mil e um corações
Disse: “Quem nasce mulher tem obrigação
– Posto a escola não ensine essa desdita –
De viver se esforçando para ser bonita.

Respondi: “Decerto nada há nesta vida,
Desde a queda de Adão, sem grande esforço e lida.
Muitos amantes, corações apaixonados,
Fizeram do amor um sentimento elevado,
Suspirando e citando, semblante de sábio,
Precedentes de venerando alfarrábio,
Posto isto hoje se afigure sem valor.”

Sentados calamo-nos em nome do amor
E vimos a chama do dia se apagar
E, no trêmulo verde-azul do céu, brilhar
A lua, gasta como casco fustigado
Pelas águas do tempo, que, no seu bailado
Pelos astros, dias e anos vão formando.

Sussurrei-lhe ao ouvido o que vinha pensando:
Você era bonita, e eu havia tentado
Amá-la daquele velho modo elevado.
Parecêramos felizes, mas no final
Cansamo-nos, como aquela lua irreal.


A COSTA MEDIEVAL

Michael Ondaatje

Aldeia de escultores. Aldeia de adivinhos.
Homens escavam a terra à procura de gemas.

Parentes circenses compõem arbóreas pirâmides humanas.

Vida caseira. Medo da distância ao longo da costa sul.

Cada escultor tem sua marca secreta, aresta de seu cinzel.

Na aldeia de adivinhos
ossos de familiar animal
orientam as interpretações.


TRÊS QUADRAS DO RUBAIYAT[7]

Omar Khayyam

Temos que aproveitar o tempo pela frente,
Antes que nosso corpo em pó se fragmente;
Do pó vieste e para o pó retornarás,
Sem vinho, sem canção, sem festa — para sempre!

No Rio de Janeiro, Bagdá ou Xangai,
Contenha a taça doce ou amarga bebida,
O vinho da vida gota a gota se esvai,
E, uma a uma, caem as folhas da vida.

Entre o medo do inferno e a fé na salvação,
Só uma coisa é certa: a vida é um turbilhão.
Só uma coisa é certa, e o resto é ilusão:
As flores que murcham jamais retornarão.


EGO TRIP (pode haver uma razão de ser)

Nikki Giovanni

Eu nasci no congo
Andei até o crescente fértil e ergui
a esfinge
Projetei pirâmide tão resistente que uma estrela
que só brilha a cada cem anos projeta
bem no centro uma luz divina e perfeita
Sou mau
Sentei-me ao trono
bebendo néctar com alá
Senti calor e enviei uma era glacial à europa
pra mitigar-me a sede
Minha irmã mais velha, nefertiti
as lágrimas das dores de meu parto
geraram o nilo
Sou bela mulher
Meu ígneo olhar a floresta transformou
no deserto do saara
com um farnel de carne de cabra
e uma muda de roupa
Atravessei-o em duas horas
Sou gazela tão veloz
tão veloz que ninguém me alcança
No aniversário de três anos de meu filho
aníbal dei de presente um elefante
Ele retribuiu com roma no dia das mães
Minha força não pára de fluir
Meu filho noé construiu nova arca e
Postei-me com orgulho ao leme
Ao singrarmos em ameno dia estival
Transformei-me em mim mesmo e fui
jesus
os homens entoam meu amoroso nome
Louvado Louvado
Sou o esperado salvador
Semeei diamantes no quintal
Minhas entranhas expelem urânio
A limalha de minhas unhas da mão,
pedras semipreciosas
Em viagem ao norte
Resfriei-me e ao espirrar
Meu nariz dotou de petróleo o mundo árabe
Sou tão demais que até meus erros são legais
Singrei para oeste a fim de alcançar o leste e tive
de arredondar a terra no percurso
Minha queda de cabelos depositou
ouro por três continentes
Sou tão perfeito tão divino tão etéreo tão surreal
Que só posso ser compreendido com minha permissão
Além de tudo... Eu... sei voar
qual pássaro no céu...


V

OUTROS POEMAS



IDEALISMO


“É Proibido Proibir”
Palavra de ordem da rebelião dos estudantes de 1968

Quem destruirá nossas idéias?
De um mundo melhor os ideais?
Quem sabe, a ditadura opressora?
Não! São impotentes os cassetetes.
Quem destruirá nossas idéias?
Será a opressão de nossos pais?
Não! Pensamentos idealistas
Encontram à frente um só rival:

O tempo, corrosivo, é o inimigo terrível!
Um dia, burgueses, os nossos ideais mortos.
E, em protesto pelas ruas, os nossos filhos:

– Abaixo a ditadura dos pais!


RIO 450 ANOS


Nasceste três vezes, ó minha cidade natal:
Primeiro, por obra dos invasores lá da França;
Segundo, à entrada da barra, onde é a Urca atual;
Terceiro: Morro do Castelo pra mais segurança.

Contornando morros, enfrentando brejos, mangais
Foste te espraiando depois que pra várzea desceste,
Pois, ao contrário de outras cidades convencionais,
Em planície à margem de um grande rio não nasceste.

Sob a proteção do santo flechado, Sebastião,
A capital do vice-reino foste alçada em glória,
Recebeste Dom João fugido de Napoleão,
Testemunhaste grandíssimos eventos da História.

De dois imperadores assististe à coroação,
Aqui a Lei Áurea libertou a raça cativa,
Aqui da República deu-se a proclamação,
Foste a capital da nação até surgir Brasília.

Já são 450 anos de existência.
Que contrastes: mar, mata, metrópole — esplendor!
Favela, asfalto, tradições, samba, malemolência...
À cidade querida declaramos nosso amor!

POEMA ESPACIAL


De Zyps os telescópios nossa Terra
Enfocam. Dos Zypzanos se apodera
Gigantesca admiração. É geral
O espanto por astro tão colossal.

“Oceanos tão profundos jamais vi!
Matas tão viçosas desconheci.
Logramos – ninguém há de duvidar –
O paraíso perdido encontrar.”

Dotados de lunetas mais possantes,
Divisariam cenas bem chocantes:
Tortura, crime, guerra fratricida...

Toda a barbárie humana, inda acrescida
De terremotos, pestes... a crueza
Com que nos castiga a mãe natureza.


CHURRASCARIA


Eu passara algumas vezes pelo bazar de Yanash e vira os carniceiros matando galinhas, patos, gansos. Os açougueiros começavam a arrancar suas penas quando as criaturas ainda viviam, revolvendo-se no próprio sangue. Eu estudara no Livro do Levítico sobre sacrifícios que sacerdotes costumavam queimar no altar: os cordeiros, os bodes, as cabras e as pombas cujas cabeças decapitavam e cujo sangue esguichavam como um doce aroma até o Senhor. E, mais uma vez, e outra, eu me indagava a mim mesmo por que Deus, Criador de todos os homens e criaturas, gostaria desses horrores? 
ISAAC BASHEVIS SINGER, Amor e Exílio.

Sol nascente. Pescadores chegam à praia.
As redes repletas de peixes pululantes:
Chernes, enchovas, sardinhas, uma arraia,
Saltam, bailam, rodopiam
(Qual trapezista no circo,
Ou bailarina no teatro).
Macabro contorcionismo:
Vã tentativa de escapar à morte!

– Peixe à baiana ou peixe à brasileira?
– Não, hoje prefiro carne.
– Filé à francesa?
– Não, picanha ao alho e óleo
Bem passada... (O sangue me enoja.)

Também em nossas veias
(Sim, nossas: minhas, sentado à poltrona,
Versejando;
Tuas, sentado, sei lá onde, não sei por que motivos
Lendo minhas lucubrações!)
Circula o mesmo sangue da carne mal passada.

Dança macabra: o boi, pressentindo o cutelo,
Em vão tenta escapar ao magarefe:
Triste sina!
A estrutura do matadouro foi concebida pelo engenheiro
Para permitir o abate de cem cabeças de gado diárias.

Ora! Bois são bois, peixes são peixes...
Não têm alma,
Ou, se a têm, é de estrutura rudimentar.

Mas gente é gente!
E hoje, ao abrir de manhã o jornal,
Li que gente como eu
Habitando o mesmo planeta que habito,
Respirando o mesmo ar que respiro,
Muitos na flor da idade, em que já estive,
Com sangue nas veias, como eu,
Com alma, como eu, nada rudimentar,
Foi vítima de estuprador,
De guerrilheiro, de terremoto.
Tanta coisa ruim
Que prefiro desviar o pensamento para algo mais positivo:

– Gente, vamos à churrascaria!


A PROSTITUTA DA CENTRAL DO BRASIL[8]


Todos os dias,
Do trem para o metrô para o trabalho,
Do trabalho para o metrô para o trem para casa,
Passava defronte à prostituta da Central do Brasil.
Pernas à mostra, magras, marcadas:
Alguma moléstia tornada inofensiva pela penicilina,
Mas que, na era medieval,
Teria dizimado três quartas partes de uma população.

Por que é prostituta,
Amante potencial dos não sei quantos mil homens que transitam diariamente pela Central do Brasil?
Por que não é balconista, secretária, mãe-de-família?
Pergunta sem nexo: acaso
Serão balconistas, secretárias, mães-de-família
Intrinsecamente mais humanas do que as prostitutas?
Ademais, faria sentido indagar por que o mar não é praia.
E a praia não é colina?
Ninguém mandou cartões de Natal à prostituta da Central do Brasil!


ROMARIA DE CARNAVAL


“Ó lua, é de madrugada,
diga onde anda minha doce amada...”
De uma marchinha de Carnaval dos anos 60.

É Carnaval: todos presos na Niterói-Manilha,
Ou na rua comprando a máscara da Tiazinha,
Ou então dando os últimos retoques na fantasia,
Ou enchendo a moringa de cerveja noite e dia.

Eu não: o divino Amadeus toca pra mim um trio,
Machado me leva a passear pelo antigo Rio
E Vieira declama em alto e bom som um sermão;
Se eu quiser subir ao céu, Dante me dará a mão!

Terrível acidente na estrada. Mergulho interior.
Alalaô, ooô, ooô. Canção de amor.
A Região dos Lagos. Os recessos de minh’alma.
Desfile das Escolas. Total e irrestrita calma.

Birita, pó, lança-perfume. Poesia, incenso.
Bumbum, paticumbum, prugurundum. Total silêncio.
O império dos sentidos. A santa masturbação.
Mão na bunda abundante. Livro repousa na mão.

Navegar é preciso, boa romaria faz,
Porém, quem baixa a âncora e no porto se queda em paz!


EU


Por que se detém o Universo tão longamente em mim,
A ponto de parecer nada existir afora eu?

Profundos oceanos,
Sinfonias imortais,
Teoremas matemáticos,
Infinitos grãos de areia
De finitas praias e desertos,
Palavras dos idiomas mortos, existentes ou por nascer,
Moléculas de matéria e antimatéria:
VIBRAI!
Reconquistai, no universo, o lugar
Roubado por este espírito enfermo
A que chamo EU!


FINGIMENTO[9]


O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
FERNANDO PESSOA, Autopsicografia.

Radiante, bela, luminosa estava Marta.
Fingiu que não me via. Viu-me,
Mas fingiu que não me via.
Mas se me via, por que fingiu?

Fingi segurança; fingi ter amizades.
Fingi estar preocupado com os destinos do mundo.
Fingi seriedade.
Pasta sob o braço. Ian, o lógico.
Ian, o semanticista.
Fingi sociabilidade.
Tudo fingimento.
Fingiu ela. Fingi eu.
Fingimos.
Viu-me, de relance. E fingi que não a via.
Observei-a, disfarçadamente. E simulava não a ver.
Sofri. Dilacerou-se-me o coração.
Dilacerado. Sozinho. Fingindo.


COISAS E HORAS[10]


Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo propósito debaixo do céu:Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou.
ECLESIASTES, Capítulo 3

O tempo nada mais é que a forma do sentido interno, quer dizer, da intuição de nós mesmos, e de nosso estado interior. 
EMMANUEL KANT, Crítica da razão pura.

Já anteriormente vivera rotinas forte ou fracamente estruturadas,
Tendo que fazer determinadas coisas em determinadas horas,
E nem sempre convinham coisas e horas:
Já tive horas ociosas sem coisas: pura forma;
Já tive coisas abundantes sem horas: pura matéria;
Sempre a rotina dialética de coisas e horas.

Reinterpretei Aristóteles à luz de meu problema existencial:
Escrevi uma tese de doutoramento, e a apresentei à banca examinadora.
Tiveram-me como louco, e por pouco
Não me internaram num asilo para alienados.


VIVER

Ai de mim! da filosofia,
Medicina, jurisprudência,
E, mísero eu! da teologia,
O estudo fiz, com ardor e paciência.
Eis-me, pobre asno, entre os pedantes,
E sou tão sábio como dantes!
GOETHE, Fausto.

Afogados em exposições de arte,
Galerias, bienais,
Conferências, recitais,
Concertos, festivais.
Afogados em discussões sobre Marx,
Materialismo dialético e Monadologia,
Freud, Reich, Marcuse.
Totalmente afogados,
Vermelhos, sem respiração:
Tão afogados, que nos esquecemos de viver!


QUATRO PAREDES[11]

Deixara para trás, pendurados em invisíveis cabides, os meus títulos exteriores. Que me importava a mim, nessa expedição decisiva, ser professor da faculdade de filosofia [...]? Que me importava toda a série de pequenas conquistas e de grandes malogros que fazem a fisionomia exterior de minha vida? 
GUSTAVO CORÇÃO, Lições de abismo

Tentei sonhar...
Mas as quatro paredes do quarto sufocaram-me o sonho!
No sonho, namoraria,
À beira do mar, tão profundo...
O sol nascente; tudo tão bonito,
Tão fantástico e irreal!
Mas acordei,
E uma rotina inodora e insípida sufocou os anseios do coração de minha alma.
Um cronograma, uma tábua de obrigações, preencheram-me o tempo,
Transformando-me numa máquina desumana.
Tão eficiente, eficaz,
Tão inteligente, tão digno de louvor,
Que terminei meus dias como técnico,
Em um centro tecnológico.
Mas cada vez que me embriagava,
Minha’alma ascendia às alturas
E voltava a se emocionar com o nascer do sol!
Em vão: a carreira técnica se me impunha.
E a solidão, a falta de amor,
Faziam de mim um pseudo-auto-suficiente tecnocrata...
Nos fins de semana, um alcoólatra!


FUGA A KATMANDU[12]

Todos os caminhos levam a Katmandu. Geralmente quem pega a estrada acaba sempre pintando por lá. É uma espécie de ponto final da moçada. 
O vale de Katmandu” in Flor do Mal[13]

O sol nasce no horizonte...
Que bela visão!
Relembra-me o tempo em que era feliz:
A mochila, às costas, e a menina,
Numa aldeia longínqua,
Em longínquo país asiático,
Com que sonhei, e que nunca visitei.
Sonhos, meros sonhos, puro escapismo...
Amanhã, burguês, volto à in-segura rotina.
Volto a trabalhar, volto a sonhar,
E a fuga a Katmandu transfere-se a um futuro sempre mais remoto,
E a realidade, nos cubículos do Rio de Janeiro, impõe-se num presente
sempre mais presente.
E o presente matou o futuro!
Futuro, fantástico! Vem, e mata meu presente!



O AUTOR

IVO KORYTOWSKI é escritor com duas obras premiadas pela UBE, tradutor consagrado, lexicógrafo, filósofo pela UFRJ, pesquisador da história do Rio, blogueiro e Youtuber. Pode ser contactado no Facebook.






[1] Composto na (remota) adolescência. Apesar do espírito romântico, não “pegava” ninguém.
[2] Algumas de velhos diários de adolescência.
[3] Composto quando do nascimento do meu filho.
[4] Composto na virada para o ano 2000.
[5] Se o Vinicius compôs sua Receita de Mulher, achei que poderia escrever minha Receita de Poeta.
[6] Poema declamado na cena do enterro do filme Quatro casamentos e um funeral.
[7] O Rubaiyat é uma coletânea da poesia do poeta persa do século XII Omar Khayyam compilada e traduzida para o inglês por Edward Fitzgerald e publicada em 1859. Trabalhando com dois manuscritos, um do século XV e outro de origem relativamente moderna, Fitzgerald, mais poeta do que erudito, “destilou”e fundiu cerca de 600 quadras, ou rubaiyat.
[8] Composto quando eu trabalhava na Rede Ferroviária.
[9] Marta foi minha primeira namorada. Durou pouco, logo logo me traiu. Eu já tinha mais de vinte anos. Oh, timidez!
[10] Composto durante meus anos de IFCS. Rapaz de classe média na época estudava Engenharia, Direito ou Medicina. Quando eu disse que ia estudar Filosofia minha família só faltou me crucificar. Os amigos tentaram me demover da tresloucada ideia com argumentos profundamente filosóficos tipo “Filosofia é coisa de viado...”
[11] Composto nos velhos tempos de Faculdade.
[12] Composto em minha fase hippie. Paz e amor, bicho!!!
[13] Flor do Mal foi o nome de um jornal alternativo publicado, se não me engano, em 1971. Na época, recortei este artigo; portanto, não sei em que número saiu, nem quem foi seu autor.