DAVID COPPERFIELD, de CHARLES DICKENS – UMA RESENHA

 

Charles Dickens em óleo sobre tela de Daniel Maclise de 1839

Por contar a vida e as peripécias de um personagem jovem, David Copperfield é uma obra que agrada em cheio aos jovens. Então por que só vim a ler agora aos 69 anos? Foi uma falha na minha programação de leituras. Talvez faltou alguém lá na frente, um parente ou amigo, que dissesse “você tem que ler o David Copperfield”. Mas o mesmo não vai acontecer com você, porque estou dizendo: Você tem que ler o David Copperfield.

Aliás, David Copperfield agrada em cheio também aos românticos, devido aos vários amores impossíveis & possíveis, frustrados & bem-sucedidos, vividos pelo protagonista, se bem que Dickens não se enquadre entre os autores da escola romântica. Agrada aos leitores preocupados com os problemas sociais, porque Dickens fazia questão de aproveitar sua imensa popularidade e vasto público para denunciar as mazelas da sociedade vitoriana. O que chamamos hoje um artista engajado. E por dissecar a alma humana e criar toda uma gama de personagens, desde os absolutamente bons até os mais repelentes vilões, preenchendo também todo o espectro intermediário, David Copperfield agrada ao leitor interessado na realidade psicológica. Em suma, David Copperfield tem tudo para agradar, neste início do século XXI, a todos os tipos de leitores, assim como, na época em que foi escrito, este e outros romances de Dickens agradavam a todos os níveis da sociedade vitoriana. Dickens era uma espécie de pop star da época. 


O vilão Uriah Heep, que também virou nome de banda de rock

Foi o primeiro romance de Dickens narrado em primeira pessoa e, dentre todos seus livros, era o seu favorito, como revelou no prefácio de sua edição de 1867. Além disso, as iniciais de David Copperfield, DC, são as iniciais invertidas de Charles Dickens (CD, coincidência essa que na verdade não teria sido proposital e teria surpreendido o próprio autor). Por estes e outros fatos os leitores da época acharam que David Copperfield fosse uma autobiografia disfarçada, um romance autobiográfico. Ora, se Dickens colocou muito de sua experiência de vida neste livro, existem também muitas divergências entre as vidas de Dickens e David. O livro é um romance em parte inspirado na vida do autor, mas também com muitos personagens e situações criados por sua imaginação. É a biografia, sim, do personagem fictício David Copperfield, não da pessoa real Charles Dickens.

Querem ver? Enquanto Dickens nasce em Portsmouth, na costa sul da Inglaterra, David nasce em Blundestone, na costa leste do país. David é filho único, já que seu irmão morre pouco depois de nascer. Já Dickens foi o segundo de oito filhos. Quando David nasce, seu pai já havia morrido. Já Dickens conheceu bem o pai. Tão bem que seu personagem Micawber é inspirado nele: tanto o pai de Dickens como Micawber vão parar na prisão por causa de dívidas.

Micawber

Enquanto o pai cumpria sua pena, Dickens, então com doze anos, foi mandado para trabalhar numa fábrica, colando rótulos em frascos de graxa de sapatos. O trabalho infantil na Inglaterra da época era comum, como era comum ter escravos aqui no Brasil. Também David Copperfield, depois que fica órfão, é mandado pelo padrasto malvado para trabalhar numa fábrica de vinhos. Quando o pai de Dickens recebeu uma herança e se livrou da prisão, o filho foi mandado para uma escola cujo diretor cruel gostava de espancar os meninos. Também David sofre nas mãos do Sr. Creakle, da Salem House, a escola onde começa seus estudos. Pelo menos na sua segunda escola, do Dr. Strong, David obtém uma boa educação, chance esta que Dickens não teve em sua vida. Dickens trabalhou como auxiliar num escritório de advocacia e, insatisfeito com o direito, aprendeu taquigrafia para poder obter um emprego transcrevendo os debates do Parlamento para um jornal. David Copperfield seguiu exatamente o mesmo caminho. 

Aos dezessete anos, Dickens se apaixona por Maria Beadnell, filha de um banqueiro, que a envia ao estrangeiro para afastá-la do pretendente. Também Copperfield apaixona-se perdidamente pela filha de seu patrão, só que no livro o desfecho desse amor é bem diferente da vida real do autor. Talvez, ao casar David com Dora, Dickens estivesse especulando sobre como teria sido sua vida se tivesse desposado Maria. Tanto Dickens quanto Copperfield passam uma temporada na Suíça, e ambos acabam bem-sucedidos na carreira literária. Ou seja, muita coisa no livro coincide com a vida de Dickens, mas muita coisa também é inventada.

Maria Beadnell

David Copperfield é um microcosmo da sociedade humana, onde você vê um pouco de tudo: temos um mini-O Ateneu nos capítulos que descrevem a vida escolar do personagem. Temos uma cabeleireira anã que parece saída de um circo. Temos a menina pobre que se deixa seduzir pelo moço rico. Temos o tio desesperado que se torna andarilho e percorre meia Europa em busca da sobrinha que se perdeu neste vasto mundo. Temos fraude financeira. Temos uma tempestade memorável que sela o destino de dois personagens importantes. Temos o menino ainda inocente enfrentando as maldades do mundo quando foge de Londres e percorre a pé o trajeto até Dover em busca de sua única parente viva, a tia Betsey, amalucada mas gente fina. Temos uma mulher de má fama, espécie de Maria Madalena, mas de bom coração (Martha). Temos uma paixão aparentemente impossível mas que, por um golpe do destino, acaba se viabilizando (mas não dá certo) e temos outra paixão bem mais viável & lógica mas que o protagonista, devido à imaturidade, quase joga na lata do lixo. Temos a emigração de alguns personagens para a então e ainda hoje remota Austrália, na época colônia britânica. Temos até uma cena onde David, ao visitar uma prisão dirigida pelo antigo diretor de sua escola, observa que os presidiários se alimentam bem melhor do que a maioria da comunidade honesta e trabalhadora, observação esta bem afinada com uma percepção contemporânea de que a lei protege o bandido em detrimento das pessoas de bem. 


Podemos dizer que esta e outras obras do Dickens são o que mais se aproxima de uma novela de TV do século XX. O livro foi lançado originalmente em 19 fascículos mensais de 32 páginas, normalmente três capítulos por fascículo, mas às vezes mais, de maio de 1849 a novembro de 1850. Imagine a angústia das pessoas tendo que aguardar meses e meses para saber o destino dos personagens e o desfecho da história. Como nas novelas, temos núcleos ricos e pobres, personagens fixos que sempre acabam reaparecendo, às vezes via coincidências meio forçadas etc. Como nas novelas, temos os mocinhos e os vilões. Assim como o musical veio da ópera e o cinema veio do teatro, a novela de rádio e TV do século XX veio do folhetim do século XIX. Afinal, numa época em que não havia rádio, TV ou cinema, a literatura fazia o papel do rádio, TV e cinema. E hoje a literatura dá suporte ao rádio, TV ou cinema. Afinal, um roteiro de uma novela ou série ou filme também é uma obra literária. O escritor de novela também é um grande escritor, e historiadores do século XXII, querendo reconstituir como era a vida no século XX, com certeza recorrerão às séries e novelas.

Um comentário:

Cyro de Mattos disse...

Ivo, seu artigo esclarece bem relações possíveis entre o autor e o seu personagem. Li o livro quando ainda usava calças curtas, cursava o segundo ano de ginásio em minha cidade. Já lá se vão mais de 70 anos. O tempo não perdoa, permanece enquanto passamos. Tenho remotas lembranças do romance.Se o tempo não estivesse ficando curto, iria reler o livro. Seu artigo fez-me reencontrar com o momento em que ao sair do ginásio vi o livro de Dickens na vitrina da papelaria A Agenciadora. Comprei, li e me impressionei com o que o autor escrevia sobre as agruras de um adolescente numa sociedade regrada pelo puritanismo de crenças e ideias.
Parabéns pelo artigo.
Um abraço,
Cyro (enviado por e-mail)