RAIMUNDO CORREIA


Sobre Raimundo Correia, escreve Waldir Ribeiro do Val (a maior autoridade viva sobre a vida e obra desse poeta) na Introdução de seu Itinerário poético de Raimundo Correia: "Espírito interessado em todas as manifestações do pensamento e instável por temperamento, jamais se satisfez com sua poesia. Devia mesmo admirar-se da receptividade por ela alcançada, do elogio da imprensa, do aplauso dos contemporâneos. E por ser assim é que pôde evoluir de um romantismo extemporâneo, mal bebido em Casimiro de Abreu, para o parnasianismo à moda brasileira [Alberto de Oliveira, Raimundo Correia e Olavo Bilac são considerados a “trindade parnasiana”] e um tanto para o simbolismo, que visitou timidamente. Sobre o poema "Plenilúnio" (ver adiante), disse Manuel Bandeira: “Realmente, não conheço em língua nenhuma, viva ou morta, exemplo mais cabal de lunaridade do que esse poema, que exalta até as raias da loucura o sentimento da vigília noturna.”

Fase romântica:

Noite de Inverno

Hoje eu não saio! a procela
Tem gargalhadas sombrias!
Perdoa-me, oh! minha bela,
Constipam-me as ventanias.

Donzela — que noites frias!
Que dias frios — donzela!
Donzela — há mais de três dias,
Que eu não te vejo à janela!

Pensa em mim como em ti penso,
Do teu quarto no retiro
Vai fazendo o teu crochet.

Que eu, com esse frio imenso,
Ao fogo do amor prefiro
O fogo da chaminé!

Fase parnasiana:

As Pombas

Vai-se a primeira pomba despertada...
Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas
De pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sanguínea e fresca a madrugada...

E à tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais de novo elas, serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bando e em revoada...

Também dos corações onde abotoam,
Os sonhos, um por um, céleres voam,
Como voam as pombas dos pombais;

No azul da adolescência as asas soltam,
Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais...

Fase simbolista:

Plenilúnio

Além nos ares, tremulamente,
Que visão branca das nuvens sai!
Luz entre as franças, fria e silente;
Assim nos ares, tremulamente,
Balão aceso subindo vai...

Há tantos olhos nela arroubados,
No magnetismo do seu fulgor!
Lua dos tristes e enamorados,
Golfão de cismas fascinador!

Astros dos loucos, sol da demência,
Vaga, noctâmbula aparição!
Quantos, bebendo-te a refulgência,
Quantos por isso, sol da demência,
Lua dos loucos, loucos estão!

Quantos à noite, de alva sereia
O falaz canto na febre a ouvir,
No argênteo fluxo da lua cheia.
Alucinados se deixam ir...

Também outrora, num mar de lua,
Voguei na esteira de um louco ideal;
Exposta aos éolos a fronte nua,
Dei-me ao relento, num mar de lua,
Banhos de lua que fazem mal.

Ah! quantas vezes, absorto nela,
Por horas mortas postar-me vim
Cogitabundo, triste, à janela,
Tardas vigílias passando assim!

E assim, fitando-a noites inteiras,
Seu disco argênteo na alma imprimi;
Olhos pisados, fundas olheiras,
Passei fitando-a noites inteiras,
Fitei-a tanto, que enlouqueci!

Tantos serenos tão doentios,
Friagens tantas padeci eu;
Chuva de raios de prata frios
A fronte em brasa me arrefeceu!

Lunárias flores, ao feral lume,
— Caçoilas de ópio, de embriaguez —
Evaporaram letal perfume...
E os lençóis d'água, do feral lume
Se amortalhavam na lividez...

Fúlgida névoa vem-me ofuscante
De um pesadelo de luz encher,
E a tudo em roda, desde esse instante,
Da cor da lua começo a ver.

E erguem por vias enluaradas
Minhas sandálias chispas a flux...
Há pó de estrelas pelas estradas...
E por estradas enluaradas
Eu sigo às tontas, cego de luz...

Um luar amplo me inunda, e eu ando
Em visionária luz a nadar,
Por toda a parte, louco, arrastando
O largo manto do meu luar...

Glossário:
frança: ramo superior ou copa de árvore
éolo: vento forte

REJANE SOBREIRA MINATO

Rejane Sobreira Minato nasceu em 1944 na capital paraibana. Participou do movimento artístico Geração 59. Transferiu-se para o Rio em 1962. Graduou-se em Serviço Social e Museologia. Em 1999 lançou seu primeiro livro, Aranha de breu. Em 2009 lançou Relembranças à deriva, comemorando meio século da Geração 59, do qual extraí este "Casarão". Para ler sua tese sobre o bairro carioca de São Cristóvão clique aqui.



CASARÃO


Fachada em cantaria acumulando anos de estrada;
telhas francesas escondidas pela platibanda larga;
pombos vadios fazendo amor na cumeeira;
gatos arredios enroscados na soleira sombreada;
pinho de riga em prontidão no forro mal pintado,
que abafa o desabar da tempestade
apara grito, medo, sujeira e goteira vazada.

Por fora, só1ido retângulo projetado
nas altas colunas de concreto inviolado.
Por dentro, paredes frágeis de estuque violentado,
divisórias separando sexos, e beliches alugados,
testemunhando o longo corredor espreguiçado
na faixa contínua de chapisco amarelado.

Um banheiro mofado, conservado a custo,
espremido na sequência da cozinha desbotada,
ladrilhada de quadrado casado e divorciado.
Um vaso encardido, sem tampa
sem vestígio de perfume algemado
combina com as veias de seu craquelado.
Uma descarga de cordão ensebado respinga
no cesto improvisado que espera notícia
em jornal fragmentado, e na manchete
de golpe fardado atapetando o chão recém-lavado.

Porão frio, engradado abriga o sobejo e também
o feroz canino Rex, rei de raça que, espargindo graça,
todas as noites, quando ganha sua alforria;
e ao carinho verdadeiro está sempre dizendo amém,
ainda policia, pericia todos os cantos, recantos,
disfarçando a valentia tão bem que, até parece
que é libertado para não vigiar ninguém.

Uma portada larga, do tamanho de enrijecidas marcas,
com poeira de extintas malícias e teias esvanecidas;
antenada nas vencidas réstias e palestras,
permitindo se entregar, sem reserva, à chave-mestra;
deixando que em seus degraus externos se abanque
o rádio hesitante, a pilha, o operante
que empilha sorte na bateria alcalina
e a reboque traz a nostálgica voz estanque.

Duas janelas de postigos emperrados,
se comunicam entremeadas de singeleza,
de frestas, de farpas, de estranheza,
de poros inquietos consolidando apelos,
de azul cobalto prenunciando o querer bem,
enquanto nos beirais marmorizados
pousam pares de cotovelos
que se revezam felizes para ver além. 

RIBEIRO COUTO


"Ribeiro Couto é uma mistura dos melhores e dos piores instintos, alma de uma instabilidade que raia pela agitação. Não tem outra paixão senão a curiosidade de viver e de exprimir a vida. Picou-o nos calcanhares o demônio do delírio ambulatório. É um sensual incontentável. É um ambicioso incontentável." (Manuel Bandeira em crônica de 1921, quando Ribeiro Couto tinha 23 anos.)

Cais

Na amurada do cais uma mulher doente,
Como uma ave que desce o vôo, vem pousar.
E fica junto a mim, melancolicamente,
Olhando o mar, olhando o mar, olhando o mar.

Asas além no céu de cinza... O vento é frio.
E a mulher, apoiando o rosto sobre a mão,
Contempla no horizonte o vulto de um navio,
E os velames que vêm... e os que vão...

Chega-se para mim... Estará comovida?
Ela sofre... no estranho olhar dessa mulher
Noto a fulguração de quem sonha na vida
Uma felicidade inédita qualquer.

Chega-se mais... A tarde tem uns tons antigos.
Abraçamo-nos... Anda uma carícia no ar...
E ficamos os dois, como velhos amigos,
Olhando o mar, olhando o mar, olhando o mar.