O PEQUENO PRÍNCIPE, de SAINT-EXUPÉRY: UM CONTO FILOSÓFICO?

ARTIGO DE IVO KORYTOWSKI PUBLICADO NO JORNAL O TREM ITABIRANO DE MAIO DE 2022 SOB O TÍTULO "Com vocês, o livro das... De quem quiser boa leitura". Para acessar uma versão PDF do jornal, clique aqui.


Vou falar de um livro que já foi chamado depreciativamente de “o livro das misses”, que é O Pequeno Príncipe (Le Petit Prince em francês) de Antoine de Saint-Exupéry. Por que o livro das misses? Porque, nos velhos tempos em que concursos de beleza tinham a visibilidade que tem hoje, digamos, um julgamento no STF, várias das chamadas “misses”, aquelas moças bonitas que participavam daqueles concursos, citavam a obra como seu livro favorito.

Se bem que o livro contraste o universo ingênuo da criança com o mundo às vezes exageradamente sério dos adultos – e foi gestado numa época negra, em que essa “seriedade” causou grande destruição, a Segunda Guerra Mundial –, não foi escrito especificamente para o público infanto-juvenil (como foi, digamos, Reinações de Narizinho), embora seja lido com prazer por esse público. É mais do que isto. É uma literatura alegórica, simbólica, de sátira aos costumes, um tipo de literatura com longa tradição.

Antigamente não se podia sair criticando os reis, as classes dirigentes, a igreja, sob risco de ser queimado vivo ou encarcerado. A crítica social tinha de ser feita de modo sutil, velado, através da alegoria e da sátira. É o caso das Viagens de Gulliver, que podem ser lidas como uma aventura fantástica, mas que no fundo são uma sátira social com profunda carga crítica.

A gente pode fazer várias leituras de O Pequeno Príncipe. Primeiro, vejo este livro como uma crítica à limitação, ao espírito tacanho da maioria dos seres humanos. Vivemos num universo inconcebivelmente grande, complexo, cheio de possibilidades e, no entanto, ficamos (não digo todo mundo, mas a maioria) presos em nossos mundinhos cotidianos, como se vivêssemos nos pequenos planetas (ou asteroides) onde habitam o vaidoso, o ébrio, o acendedor de lampiões, o homem de negócios, o rei, os personagens da primeira parte de O Pequeno Príncipe. Esta é uma leitura que podemos fazer, de sátira à tacanhez, à limitação humana. Mas o livro é mais do que isto.

Eu situaria O Pequeno Príncipe dentro da tradição da novela filosófica francesa cujo grande mestre foi Voltaire. Novela não no sentido de novela da televisão, mas de uma obra literária mais longa que o conto, mas menos longa que o romance. Assim como no Cândido de Voltaire, temos o personagem que, com sua aparente ingenuidade, consegue enxergar mais fundo que as pessoas normais e acaba desconcertando-as. Quando o vendedor de pílulas contra a sede apregoa que, com seu produto, as pessoas terão mais tempo livre, o “ingênuo” principezinho responde que, se tivesse mais tempo livre, iria procurar um poço d’água. 

Especificamente, O Pequeno Príncipe guarda certa semelhança com o Micrômegas de Voltaire, que é a história de um gigante de Sirius que decidiu aventurar-se pelo Universo, visita o Sistema Solar e vem parar na Terra, dando a volta ao mundo e discutindo filosofia com os seres humanos. Também o principezinho visita vários asteroides/planetas e discute filosofia com os seres humanos. Quando ele diz que “o essencial é invisível aos olhos” está retomando a teoria de Platão do mundo das ideias. E quando diz que “não se vê bem a não ser com o coração” está refletindo o pensamento de Pascal de que “o coração tem razões que a própria razão desconhece”. E ainda tem gente que acha que é um livro bobinho ou um livro de autoajuda. Bobinho uma ova.

Claro que este é um livro que permite mil leituras diferentes. Há quem veja o principezinho como um anjinho que caiu na Terra. E tem outra coisa: o príncipe morre, supostamente picado pela cobra, para poder subir de volta ao seu planeta sem ser atrapalhado pelo peso do seu corpo. O autor o vê “tombando devagarinho como tomba uma árvore”. Mas tem certeza de que voltou ao seu planeta porque, ao raiar do dia, não encontrou seu corpo. É a história da paixão e ressurreição de Cristo! Só que o “planeta” de Cristo é o reino dos céus!

Em seus voos pelo correio francês entre Buenos Aires e a França, Saint-Exupéry pousava para reabastecer no bairro florianopolitano de Campeche, que seria corruptela de champ de pêche, campo de peixe, como o escritor (que chamavam de “seu Peri”) designava a área. Pelo menos é o que contam aos turistas que visitam a aprazível capital santa-catarinense. Se non è vero, è ben trovato.

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