REYNALDO VALINHO ALVAREZ

TEXTOS DE CYRO DE MATTOS E ALEXEI BUENO

 


Imagem obtida no site Recanto do Poeta


POETA NO GALOPE DO TEMPO, de CYRO DE MATTOS


Nascido no Rio de Janeiro, Reynaldo Valinho Alvarez (1931-2021) é autor de diversos gêneros, entre o romance, a crônica, o ensaio, a literatura infantojuvenil e o poema. Legítimo escritor nas diversas manifestações literárias, destaca-se com qualidades inconfundíveis de um discurso coeso e fecundo no último gênero. A crítica especializada vê neste poeta um dos nomes importantes que surgiu na linhagem melhor da poética brasileira, desde que fez sua estreia com Cidade em Grito (1973). O livro rendeu-lhe o Prêmio Olavo Bilac da Secretaria de Cultura da Guanabara.

Nessa geração de poetas que esplendem suas criações com a marca da transcendência, por meio do uso da mítica na palavra, Reynaldo Valinho Alvarez tem lugar garantido. Junta-se a vozes importantes da poética brasileira, como a de um Ledo Ivo, Cassiano Ricardo, Carlos Nejar, Francisco Carvalho, Marcus Accioly, Fernando Mendes Viana, Stella Leonardos, João Carlos Teixeira Gomes, Myriam Fraga e Telmo Padilha.

Com Cidade em Grito, pequeno grande livro, temos a estreia de um poeta que se expressa com recursos modernos, dono do ofício, argumentos lúcidos quando canta a metrópole do Rio de Janeiro, que está a girar sempre, de difícil apreensão no gesto solitário do viver. Apresenta-se para isso não apenas como um só cantor, mas constituído de vários, pois a jornada é complexa, exige padrões criativos de ricos significados.

Na jornada pontuada de gritos lancinantes é capaz de responder ao desafio de cantar a cidade grande com versos pungentes, que fluem em várias direções: asfalto, rua, travessa, beco, céu sombrio onde edifícios tentam escalar os altos com uma gente estranha. Ante “sentimento brutal nunca domado”, canta a colmeia gigantesca com seus milhões nas ruas, dos juntos ou dos sós. O poeta procede com gestos firmes nesse canto multifacetado, formado na dialética da paixão, tormento e sobressalto. No poema curto ou grande retira visões lancinantes da enorme forja urbana, que na semana se movimenta com o tempo da vida, avança no jogo do partir, colide no que nunca chega. Embora aconteça com a calma no jardim, o vazio da praia, é enganosa assim na paisagem com o seu grito abafado. Vestida com a pele do tédio sempre flui com as sombras que cercam os escritórios fechados.

No mais é sempre falar dessa cidade que tudo tem no vaivém das estações danosas, embora desfrute das alegres. Flui e reflui, está a rolar no asfalto, a sambar na passarela, a soltar da garganta os gritos da paixão no gigantesco estádio de futebol, que delira, pensa pelos pés na partida, na diversão que faz arte, imita a vida, se presta à fantasia, à religião cuja liturgia é mesclada com amor e raiva. Do samba no asfalto ao tédio no vazio de arredores, de gente na madrugada à invasão do povo na semana, há sempre esse grito agudo, nascido também por passageiros do hospital, em madrugadas solitárias, esquina, no torpor do vício, fumo, álcool. Vista na constante e desatinada viagem, segue atravessada pelo tempo indiferente às humanas dimensões terrenas, distante do abuso de ocorrências que se lastimam no tom menor ou maior dos absurdos.

Impossível de aprisionar esse grito lancinante que irrompe da vida em trânsito veloz. O poeta em vigília reveste-se com o fato de que cantar é muito pouco, confessa sua impotência, no discurso precário chega então a chorar. Os seres humanos mudam na rotatividade das estações, não muda o tempo, que é o mesmo, talhado nas dimensões cósmicas sem fim, com espaço e lugar que se confundem ante o efêmero que “procura o que ontem foi”, na vã pesquisa, que termina na colheita da “flor vidrada dos ladrilhos”.

Ao cabo, sem ter certeza de que respondeu com precisão ao desafio de celebrar a cidade de milhões, resta ao poeta o consolo de quem tem o prazer desse canto, fez o que pode para expressá-lo na junção de gritos e ais, em rito agudo da dicção afiada, em que entram elementos ásperos, frequentes consoantes expostas ao tormento. Entre poucos que sabem usar o talento verbal na construção do bom poema, nos meios que ficam com os fios lúcidos de “vestido rápido de fada” pelo menos acha o consolo da alma, que no galope fala do mundo com as vozes do vento.

Não há dúvida que o poeta aqui na sua estreia produz valiosa poesia. Inventa o poema com conteúdo palpitante, forma virtuosa, sedenta, faminta de vida que atropela, fere e não cura, se põe a serviço de uma lira que tudo lembra da cidade enorme com seu grito sem fim. Lancinante gravita com suas paisagens interiores, habita inquieta o cenário agarrado ao tempo que tudo dá e toma, escorre, bebe e lambe.

Depois da estreia marcante com Cidade em Grito, Reynaldo Valinho Alvarez só fez aumentar as qualidades de sua construção poética, de livro para livro, com níveis elevados. No alcance de um projeto estético universal produziu com a habilidade de um talento artesanal incrível a façanha de quem sabe que a poesia é forma de conhecimento da vida, fundamental como o amanhecer em tempo de estio ou chuva. Tornou-se dono de ideia fecunda advinda do homem em estado crítico no final do século vinte. Citemos como ilustração desse belo e sofrido fazer poético os livros seguintes: Canto em Si e Outros cantos, O Solitário Gesto de Viver, Solo e Subsolo, O Sol nas Entranhas, O Continente e a Ilha, Lavradio, Galope do Tempo e O Sol nas Entranhas.

Na estrada que se estende com uma vintena de livros de poesia, o poeta passou a acumular prêmios de primeira grandeza, outorgados como reconhecimento de sua vocação exemplar, por órgãos e instituições da importância do Ministério da Educação, Instituto Nacional do Livro, Academia Brasileira de Letras, Câmara Brasileira do Livro, União Brasileira de Escritores (Rio), Pen Clube do Brasil, Biblioteca Nacional e Fundação Nacional de Literatura Infantil e Juvenil.

Em Galope do Tempo (1997), o poeta de rítmica variação estrutural nova surge das zonas da poesia feita com o melhor que se tem da razão e emoção. Brilha inteiriço como sendo a antena da raça preconizada por Ezra Pound. Operador hábil de formas modernas, também das convencionais como as usadas pelo exímio sonetista, tanto no soneto à moda inglesa como no formato de Petrarca, é eficaz nos dísticos que anunciam ou puxam a seguir o poema com seu sentido amplo, pulsante de símbolos, metáforas, imagens, e em tudo mais que encontramos nesta poesia com grande proveito de quem a lê. E vê o poeta alçar-se numa ideia que esplende novo passo. No texto conjugado com a harmonia da composição que impressiona há um processo moderno para “libertar-se e viver, para colher o fruto a mais que a vida oferecer.”

Domador dos sentimentos com o peso do mundo, pensador do tempo que sempre permanece na indiferença pela vida humana, passando com os seus sortilégios, dores e martírios, a evasão tomada emprestada ao sonho se faz necessária, prazerosa e útil nesse poeta emblemático. A experiência impõe que haja o voo e se apaguem as fronteiras quando então os gestos e os medos se fundem no espaço e no mesmo lugar, fazem com que as esperanças ganhem a forma de um abraço. Embora preso nas algemas desse senhor absoluto, que tudo sabe dos caminhos, valem na estrofação com profundidades esses versos pungentes, cantantes numa lira reflexiva quando medra a ternura com bases na solidariedade decorrente do duro embate.

Na composição de processo novo, a galopar no tempo que gira, em seu permanente estar no mundo, o poeta empreende a aventura áspera, mesclado de vida e sentimentos agudos. Na escritura ideal a alquimia da palavra movimenta-se com os achados certos do coração. E assim, corajoso e firme, incide no enfrentamento dos dias simulados numa linguagem condensada rica de significados. À equação em que são vistos os dias que se perdem nesta luta vã, mal surge a manhã, o poeta informa, canta, revela a notícia de que essa passagem dos muitos ligada no efêmero é forma fundamental para o conhecimento da existência. Tenaz é a busca para tocar na alvorada, nas fronteiras que se apagam, no espaço fazendo que o mundo ganhe a forma de um abraço. É nesse jogo em que o tempo não muda, mostra-se indiferente com as terrenas e abusivas ocorrências humanas, sendo nós que mudamos, que o poeta tenta ser visto no início de um alvorecer, embora “preso nas algemas quer voar, vencer, colher o fruto a mais que a vida oferecer”.

É conhecedor de que o tempo não engana com o seu peso do enigma, não se solidariza com a solidão, que é certeza absoluta de um dia em que tudo se dissolve. Fecham-se as cortinas de todas as coisas no trânsito da vida, do tempo limite onde não mais há o limiar. No terminal por conta de saudosa memória há o ocaso sem escape. Preso ao acaso do tempo contra o tempo, no galope de muitas uvas e poucas chuvas, amargura e ternura, noivar e separar, grão e imensidão, vaga do mar. Quando se escutam vozes ligadas nessas horas críticas em que o vento fala de flor, de homem, de terra, de estrela, da lavra de luar.

Nas vias da solidão e multidão, o poeta mede a vida, mente que divaga, nas ondas do transitar medita. Seu galope que se lança nos intestinos do intertexto acontece com as pinturas de Goya, viaja na palavra realista de Eça, mundo vertiginoso de Cesário, epicidade de Camões. Passa pela Escandinávia, adiante é puxado pela cauda da herança galesa, escorre nas ruas cinzentas de Londres, lateja com os lampejos do eterno. Inventa-se com a companhia de Pessoa. Machado de Assis e Lima Barreto, entre Capitu e Clara dos Anjos, enquanto dorme e sonha não sabe qual deles é seu guru. Tudo converge para sabermos que há um tempo passageiro, às vezes se mastiga, renasce com as esporas do ar.

Sempre nesses versos tocantes o tempo de conhecer a vida, embelezar mundividências do sofrer onde somos e estamos a passar com os passos do sol e da chuva. Tempo de dar, não tomar. Quando se entra em contato com esse galope do tempo forjado com maestria pelo poeta Reynaldo Valinho Alvarez, ficamos mais convencidos de que é inútil apressar. Não adianta, tudo no tempo tem seu tempo, até que seja a vez da hora absurda desse tempo tumular.

A vida inteira é menina, tão moça, alerta o poeta, nesse galope que o tempo faz com passos impassíveis. Com uma neutralidade que ao mesmo tempo espanta, atormenta, para a qual não se consegue chegar perto, pois fora ou dentro sempre está cercada por um mar.

Daí se dizer com o toque do poeta que vai fundo:


Quem aprende com as aves sonha mais.

Não há gurus. Há sóis, luas e ais.


Referência

ALVAREZ, Reynaldo Valinho. Cidade em Grito, Gráfica Danúbio, Rio de Janeiro, 1973.

ALVAREZ, Reynaldo Valinho. Galope do Tempo, Editora Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1977.


TRECHO DE UMA HISTÓRIA DA POESIA BRASILEIRA ONDE O AUTOR, ALEXEI BUENO, ABORDA O POETA REYNALDO VALINHO ALVAREZ:



O carioca Reynaldo Valinho Alvarez, de ascendência galega, é dos maiores mestres da forma poética no Brasil, um poeta sobretudo urbano, de índole expressionista, que poderíamos dizer da família de um Augusto dos Anjos, sobretudo pela visão crítica das misérias sociais do Brasil que encontramos em alguns dos seus livros. Se a memória domina um grande livro como Lavradio, de 2004, um olhar apocalíptico sobre a civilização é o cerne de Corta a noite um gemido, de 2007. Afora essas características, Reynaldo Valinho pertence inegavelmente à linhagem dos poetas da morte, daqueles que, como homens normais que são, não conseguem ficar indiferentes ao maior de todos os assuntos, linhagem que, entre nós, vem desde um Alphonsus de Guimaraens até um Ivan Junqueira [...]

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