A MORTE ESTRANHA DE GUIMARÃES ROSA (TEXTO DE AFONSO ARINOS DE MELO FRANCO)

O texto a seguir de 20 de novembro de 1967 do terceiro livro de memórias de Afonso Arinos de Melo Franco, Planalto, lança uma luz sobre a morte estranha de Guimarães Rosa, ocorrida no dia anterior.

Posse de Guimarães Rosa na ABL três dias antes de morrer. Fonte: Wikimedia Commons. 

ONTEM A NOITE tivemos todos os amigos de Guimarães Rosa a chocante surpresa da sua morte. Josué Montello foi quem me telefonou, por volta das nove horas, para transmitir-me a noticia que Austregésilo de Athayde acabava de lhe comunicar: Guimarães Rosa morrera subitamente, havia pouco. Pareceu-me absurdo, aquilo.

Durante todo o dia eu havia pensado em escrever, neste livro, uma página sobre a sua posse na Academia, no dia 16, e as impressões que todo o complicado processo dela me causara.

Vejo em A escalada [segundo livro de memórias de Afonso Arinos] que Rosa me convidara para recebê-lo no dia 26 de junho de 1963, já lá vão mais de quatro anos. Na nota tomada naquele dia consigno minha resistência a aceitar o convite pelo receio de não produzir um discurso à altura do novo acadêmico.

O tempo foi passando e Rosa não marcava a data da posse. O fardão, doado por Minas Gerais, por intermédio do seu então governador Magalhães Pinto, envelhecia no armário; os acadêmicos brincavam com ele nos chás de quinta-feira a que comparecia; alguns se inquietavam, referiam os prazos regulamentares; outros apelavam para precedentes, como e de Lauro Müller, que também esperou anos até ocupar a cadeira. Guimarães Rosa não dava explicações: sorria, com sua requintada amabilidade, e dizia coisas vagas. Entre os seus íntimos corria que ele receava morrer quando se empossasse, morrer em plena sessão da Academia, como sucedera a Roberto Simonsen. Diziam, também, que dado a ciências ocultas, cabalas e secretas maquinações, ele esperava a conjunção de órbitas astrais favoráveis, o acordo benigno de certas datas (dias, meses, anos), a fim de decidir-se. Eu não acreditava em nada disso, mas achava estranha, incompreensível mesmo, a importância que Rosa atribuía a uma cerimônia de posse na Academia.

Os meses foram correndo; às vezes ele adiava porque a fase do ano era de calor, e o fardão é insuportável em noite quente; outras vezes eu viajava para o estrangeiro, durante a estação favorável. Eu nunca insistia junto a ele como outros -para que se empossasse; procurava evitar o assunto, que talvez o constrangesse. Apenas lhe dizia que só ia iniciar meu discurso quando ele me trouxesse o seu.

Certa vez, falando-me ele sobre o assunto, na Academia, perguntei-lhe por que não tomava posse em sessão ordinária, uma vez que não havia proibição estatutária para tal. Estariam presentes apenas os acadêmicos, na sala do primeiro andar, e os discursos seriam publicados depois, Rosa não concordou; estava querendo seguir todas as praxes, obedecer a todos os ritos. Iria de fardão e espadim; se houvesse banda de música até seria melhor ajuntou sorrindo. Afinal marcou a data.

Há algumas semanas apareceu-me em casa com o esboço do discurso. Leu-o para mim, fez com que eu lesse alguns trechos, e juntos comentamos o trabalho. Notei-o muito ansioso e espantava-me em vê-lo assim. Por que seria? Por que um escritor consagrado, seguro de sua obra e da unânime admiração que ela desperta, ficava tão preocupado com a cerimõnia banal da posse na Academia, que, afinal, não acrescentava nada à sua glória?

Disse-me que estava em consultas com Pedro Bloch (que é médico, como ele o era) a fim de controlar rigorosamente a voz, a respiração, a velocidade da leitura. (Bloch, que encontrei em casa de Rosa na noite de ontem, confirmou-me este ponto, dizendo-me que Rosa falara-lhe "trezentas vezes sobre a posse). Tudo me parecia muito estranho. Rosa acrescentou que não queria conversar sobre outra coisa: "qualquer outra conversa me chateia", foi como falou.

Por que aquilo tudo? eu me perguntava. E ainda agora me pergunto: por quê? Para quê?

No dia da posse ele esteve aqui, pela manhã. Deixou-nos, a Anah e a mim, uma cópia datilografada do discurso com a mais afetuosa dedicatória. Não queria que ninguém a lesse, a não ser ela e eu. Queria ler para ela, mas era muito longo e ela iria ouvi-lo à noite. Achei-o bem magro, a roupa sobrando no corpo.

Ao sair disse-me ter combinado com Austregésilo de Athayde que, caso se sentisse mal durante a leitura, colocaria a mão na testa quando terminasse, e, então, seria suprimida a cerimônia dos cumprimentos no salão anexo ao das sessões. Na noite de 16, com o salão repleto apesar da forte chuva que caía na cidade, leu o discurso com perfeita dicção, voz pausada, ritmo discreto e firme. Tinha ensaiado perfeitamente. Mas no fecho, quando leu aquelas últimas, admiráveis e misteriosas linhas sobre a morte [" A gente morre é para provar que viveu"; a íntegra do discurso pode ser lida aqui], quase perdeu o fôlego; sentia-se que chorava por dentro. Chorava o quê? A morte do amigo que passara havia muito, ou a própria, que sentia chegar em pouco? Quem sabe? "O mundo é mágico", como ele disse, no fim.

No dia 17 telefonou-me pela manhã. Estava, como nunca, delicado, parecia radiante e agradecido. Falou mais uma vez do meu discurso e de tudo o que punha dentro dele  mais, talvez, do que eu mesmo. Agradecia exageradamente a Anah [esposa de Afonso Arinos] e a mim "tudo o que havíamos feito" por ele. Pensei em Proust, naqueles seus excessos de gentileza, que eram qualquer coisa interna, uma reação de sensibilidade que se desligava da causa que a provocara.

Lembro-me agora de que, no dia da posse, quando aqui estava pela manhã, Rosa aludiu ao seu excesso de sensibilidade, e recordou uma passagem da A escalada na qual eu falo dos emotivos que não são sensíveis e dos sensíveis que não são emotivos. Ele achava isto muito exato, e colocava-se na segunda categoria. Mais que sensível, neurótico. E acrescentou cripticamente: "Você sabe, a normalidade é, afinal, a animalidade." 

Deve ter percebido perfeitamente que morria. A hora foi perto das oito da noite. Contou-me a esposa que saíra para a missa, na igrejinha de Copacabana, que fica ao lado de onde morava. Ele ainda lhe acenou da janela. Quando chegou, a netinha – parece que era a única pessoa em casa – recebeu-a assustada: "Vá ver vovô..." Encontrou-o na poltrona angustiado, os olhos desmesuradamente abertos. Quis falar mas não pôde mais. Olhava-a somente, parecia indagar e relatar tudo pelas pálpebras largo abertas, os olhos como que voltados para dentro e para fora, para um e outro mundo.

A senhora que era sua secretária no Itamaraty também lá estava, e contou-me que Rosa a chamara ao telefone pedindo-lhe a assistência do marido, que é médico. Ela pensou em convocar o pronto-socorro cardíaco, mas não podia fazer porque ele não desligava 0 telefone. Ela então correu ao apartamento vizinho para fazer a ligação. Quando voltou, Rosa ainda estava no aparelho e lhe disse apenas "Socorro". Depois não falou mais..

Quando conversamos na manhã de 16, ele insistiu sobre a proximidade do mistério que nos cerca. Dissertou sobre o fundo comum das religiões espiritualistas. Eu admirava o muito que ele sabia sobre o budismo, o hinduísmo, as crenças orientais. Sentia-se que unia esses problemas não racionalmente, não culturalmente, mas em toda a profundeza do seu ser. Eu via como eram justas as observações que fizera sobre o sentido simbólico da sua obra, no meu discurso  (aqui).

Como toda essa atmosfera de angústia, mistério e enigma me é estranha, sou levado a decifrar o problema de Guimarães Ross de acordo com o feitio natural do meu espírito. Será uma interpretação estreita, talvez errada, para outros, mas certa para mim.

Tenho que Rosa, "emparedado" (como disse certa vez) no seu heroico esforço literário, isolou-se demais da vida e dos seus aspectos rotineiros e formais. Sua glória de escritor foi se afirmando, e ele se dava bem conta disto, mas sem sair de casa. Diplomata, recusou sempre as funções externas, desde que atingiu a chefia, e, assim, não se habituou à liturgia do êxito (às vezes falso) com que se habituam os diplomatas. Qualquer prefeito municipal, qualquer presidente de assembleia estadual, qualquer ministro ou embaixador, por mais medíocres que sejam, acostumam-se ao trato das cerimônias que marcam a oficialização do prestigio. Rosa atingiu o máximo do prestígio sem passar por essas cerimônias.

A Academia é o símbolo, é a oficialização do prestigio literário. Não é a única entidade representativa do que possa existir de mais alto na nossa criação intelectual, mas passa, aos olhos do público, por ser exatamente isso, porque passou a ser a instituição oficial da cultura.

O espadim da Academia é a espada de cavaleiro das letras, para a grande maioria dos brasileiros. Os acadêmicos sabem que isto não é verdade. Acredito que Rosa também o sabia; como alguns ministros sabem que a pasta ministerial é uma aparência de poder; como alguns embaixadores não ignoram que a credencial é uma ilusão da atividade internacional. As forças sociais atuam frequentemente fora das instituições representativas.

Mas Rosa não estava habituado às exterioridades oficiais. Não digo que lhes atribuísse importância, mas elas deflagraram nele a crise de uma sensibilidade exagerada, que se desligou da sua razão determinante.

O problema não era a Academia, era ele. Rosa, com todo o tumulto que carregava, e que já lhe fizera fraquejar, uma vez, o exigido coração. De qualquer forma, esta inquietação que o levou à morte foi que lhe permitiu fixar em termos definitivos a mais poderosa, rica e original obra do ficcionismo brasileiro.

Do seu sofrido sacrifício restou algo que se acrescenta ao Brasil, e que não mais morrerá.