
Maria Thereza Noronha, mineira de Juiz de Fora, considerada por Ivan Proença "uma das melhores poetas do Brasil-hoje" (eu a considero a melhor de todas), formou-se em Direito pela Universidade Federal dessa cidade e trabalhou como advogada no BNH e Caixa Econômica Federal, no Rio de Janeiro. Participou do Grupo Edições de Minas, de poetas de Juiz de Fora. Durante duas décadas foi aluna da Oficina Literária Ivan Proença. Livros: A Face na água (edição da autora, 1990), Pedra de limar (Edições de Minas, 1993), A face dissonante (Oficina do Livro, 1995), "Alaúde", seção do livro Poesia em três tempos (Editora Bom Texto, 2001), O verso implume (Oficina do Livro, 2005) e 50 poemas escolhidos pelo autor (Edições Galo Branco, 2008). Depois de 17 anos sem publicar nenhum livro, lançou no dia 24 de outubro de 2025 seu Face de outono, com organização e introdução de Ivo Korytowski e texto da contracapa de Alexei Bueno. O livro está à venda na Estante Virtual, ou você pode baixar um pdf gratuito clicando aqui.
Escreveu Carlos Machado no poesia.net: "Praticante de uma poesia essencialmente lírica, Maria Thereza Noronha pertence à estirpe de brilhantes vozes femininas em que se destacam nomes como Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa. O ponto comum entre essas três poetas está na singeleza do verso, que flui leve e musical."
Escreveu Alexei Bueno: "Este seu sétimo
livro, Face
de outono [...] comprova a
grande unidade e a rara altitude da sua obra, em múltiplos registros
que não se chocam jamais. [...] A poesia de Maria
Thereza Noronha vai das formas fixas ao verso livre, com idêntica
habilidade, desde aquelas anteriores ao dolce
stil novo,
como o romance, até o soneto, que parece gradativamente assumir a
preponderância, embora em toda a sonoridade dos seus versos possa
perceber-se um longínquo eco dos Cancioneiros. [...]"
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| O recém-lançado Face de Outono está à venda na Estante Virtual |
CORES
A dama em preto e branco nos cinzentos
domingos. A amarelinha nos azuis.
Papagaios carmim rosa magenta
levantados no céu, braços em cruz.
Verdes anos. Do rio as pardacentas
águas acalentavam corpos nus.
Mexericas e ameixas cismarentas
ao pôr-do-sol filtravam ouro e luz.
Da imprensa marrom não se sabia.
Laranja, só a fruta merecia
o nome. Na inocência iam as horas.
O bispo em sua roupa solferino.
Nos dedos andarilhos dos meninos
o roxo corrompido das amoras.
Do livro O verso implume
O PROFETA
Chegou sem deixar claro porque vinha.
Viveu ao Deus-dará, lírio do campo
coberto de esplendor, como convinha
a um servo de Deus. Um pirilampo
alumiava suas noites pardas.
Dizia-lhe bom-dia um rouxinol.
Algum lampejo em sua face tarda
à visão de uma garça ou um girassol.
Alimentou-se de ervas e raízes.
Não teceu nem fiou. Tentado, acaso,
rechaçou o demônio e seus matizes.
Partiu como chegou, ao fim do prazo.
E, por anos de vida tão felizes,
lavrou o seu recado em ferro e brasa.
Do livro A face dissonante
CRUZADAS
Cruzei palavras com o vento.
Suspiros e folhas secas
vieram na horizontal
desinências, dissonâncias
na vertical
sussurros e amendoeiras
sopraram em diagonal
anáforas e amor-perfeito
na transversal.
Cruzei palavras com o vento.
Vieram textos canônicos
na vertical
pássaros brancos em bando
na horizontal
sonetos camonianos
no original
e sapos bandeirianos
no Carnaval.
Cruzei palavras com o vento.
Cartas Chilenas chegaram
na horizontal
Castroalvinas flutuantes
espumas na vertical
sermões de Padre Vieira
no areal
Machado de Assis é Aires
no memorial.
Com o vento cruzei palavras.
Vieram folhas em branco
na vertical
vagas estrelas da Ursa
na horizontal
a roca sem fuso ou uso
no vendaval
e um poema esfacelado
na marginal.
Do livro Poesia em três tempos
NO TEMPO EM QUE A CANÇÃO
A música eletrônica me faz nervosa e insone
centopéia no ar gritando com cem pernas
queria envelhecer ao som do gramofone
no tempo em que a canção era abafada e terna.
O tempo onde o mocinho vencia o bandido
e a vida em preto e branco alternava mistérios
vivia-se e ninguém falava ao telefone
e o pai levava o filho a ver o trem de ferro.
Vivia-se e ninguém falava em Microsoft
e a vida, delicada, punha os pés na terra
queria envelhecer ao som de um foxtrote
no tempo em que a canção era abafada e terna.
Do livro O verso implume
ÀS SEIS DA TARDE
Às seis da tarde sempre morro um pouco.
Vou-me embora com o dia. Mas, retorno
para à noite tecer finas mortalhas
onde me abrigarei – mas não tão cedo.
Pela manhã desperto cega e inflável
dependendo do sopro e o espaço em torno.
Devagar, abro os olhos: e aos detalhes
fluidos, olhar mais nítido concedo.
E face ao dia – colhê-lo ou carpi-lo?
Se um tanto tem de flor o outro de cinzas,
desfolhá-lo, indecisa ou despedi-lo?
Que tanto faz me traga as boas-vindas
ou se esconda e ofereça-se em sigilo.
Às seis da tarde morrerei à míngua.
Do livro 50 poemas escolhidos pelo autor
A VOLTA DA BAILARINA (soneto simbolista)
A bailarina de asas transparentes
volta mais tarde, os olhos dardejantes
de Ardor que, em volteios torturantes,
torna seus olhos rubros e dementes.
A volta não lhe traz o mesmo anseio
nem o passo é tão ágil como dantes.
Vem esgarçada e leve, mas distante
um leve véu a cobrir-lhe o seio
Quantas vezes bailou ao sol poente
os brancos pés em mágicos volteios,
encantando aos que a sorte fez presentes.
Mas hoje os pés com calos se distendem
a cada passo que lhe fica ao meio.
Pobre antiga bailarina decadente.
Do livro Face de outono
ÁGUAS PASSADAS
Debruçada sobre os dias,
mazelas inesperadas.
Os fatalistas diriam:
– cartas marcadas.
Posto que esperança é bengala
de fino poder ornada,
diriam os confiantes:
– favas contadas.
Debruçada sobre os dias
feridas cicatrizadas,
digo de antigos amores:
– águas passadas.
Do livro Face de outono
ALGUNS MANDAMENTOS DO POETA (metapoema)
Escolhe com apuro teus vocábulos,
a cabeça não ponhas no patíbulo.
Não espalhes incenso num turíbulo
nem aceites esmolas como um óbolo.
Abre os olhos, ergue os ombros. Cântico
algum de sereia – inda que lúdico –
te seduza. Não andes tal sonâmbulo
pelas letras e motes. Traça um ângulo
(antes que em ti se faça rasa tábula)
de cento e oitenta graus além da fábula.
Do livro Face de outono