O BRASIL DE JOÃO UBALDO RIBEIRO, de CYRO DE MATTOS

 



Baiano de Itaparica, João Ubaldo Ribeiro (1941-2014) é um ficcionista de valor excepcional na moderna literatura brasileira. Começou publicando suas histórias nas coletâneas Panorama do conto baiano (1959), Reunião (1961) e Histórias da Bahia (1963). Faz sua estreia individual com o romance Setembro não tem sentido (1968). Mas é com o romance Sargento Getúlio (1971) que terá o reconhecimento maior de público e crítica. O livro conquistou o Prêmio Jabuti para autor revelação, foi publicado nos Estados Unidos, com tradução do próprio autor.

 

Sua consagração como ficcionista esplêndido acontece com o romance Viva o povo brasileiro (1984), considerado como a sua obra-prima, que o coloca ao lado de autores universais, do porte de Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa e Jorge Luís Borges. Esse romance rendeu-lhe o Prêmio Jabuti e o Golfinho de Ouro, do Governo do Rio de Janeiro, servindo de enredo de escola de samba na Marques de Sapucaí.

 

Como reconhecimento de um legado admirável, João Ubaldo Ribeiro recebeu o Prêmio Camões, a mais importante láurea para autores de língua portuguesa. Publicado em inglês, francês, italiano, espanhol e alemão, o autor de escritura soberba foi membro efetivo da Academia de Letras da Bahia e da Academia Brasileira de Letras. Competente escritor no exercício de diversos gêneros, jornalista e cronista, seus textos como contista e romancista têm sido adaptados para o cinema, o teatro e a televisão.

 

O alentado volume de Viva o povo brasileiro, constituído de 672 páginas, insere João Ubaldo Ribeiro na lista de autores que produziram livros de ficção com escritura extensa e fecunda imaginação. Não se pode por isso ligá-lo à conceituação de que quanto maior a extensão menor a compreensão, sendo menor a extensão maior a compreensão. Em Viva o povo brasileiro, o estilo dominante da narrativa caudalosa estende-se por imenso painel histórico construído com os episódios em que os detalhes de costumes se prestam à configuração de núcleos. Nesses acontecem os conflitos familiares, tensões e vivências dos personagens, suas circunstâncias críticas no ambiente retirado da história, em tudo que o autor precisa para a construção da trama, formada com as benesses e as injustiças de uma classe aristocrática. O corpo robusto de uma classe dominante é imposto ao povo que vive em abstrato de sua consciência identitária. Para desfiar sua narrativa que abrange séculos, com vistas a uma perspectiva melhor do homem compreendido como reflexo de seu contexto econômico-político-religioso-social-cultural, o autor se vale da razão explícita com base na lógica dos fatos e da razão mágica com os seus efeitos acima da realidade objetiva e circunstante.    

 

Romance de autor erudito, consciência crítica apurada, sensibilidade de extensão vasta com fôlego  surpreendente, como é visto em  Leon Tolstói  de  Guerra e Paz e Ana Karenina, Dostoievski com Os irmãos Karamazov, Nikolai Gógol com Almas Mortas, Stendhal com O vermelho e o negro, Eça de Queiroz com Os Maias,  Thomas Mann  com  A montanha mágica, James Joice com Ulisses, Kafka com O processo, Faulkner com O som e a fúria, Sinclair Lewis com Rua principal, Roberto Pen Warren com Os capangas do Chefe, Julio Cortázar  com O jogo da amarelinha. E, entre nós brasileiros, em João Guimarães Rosa com Grande sertão: veredas, Antônio Callado com Quarup, Herberto Sales com Rio dos morcegos, Ariano Suassuna com A pedra do reino, Jorge Amado com Tieta do Agreste, Rachel de Queiroz com Memorial de Maria Moura, Lucio Cardoso com  a conflitante Crônica da casa assassinada, Aramis  Ribeiro Costa com As filhas do coronel e  Ana Maria Gonçalves com Um defeito de cor.  

 

Cada um desses escritores tem o seu discurso soberbo, a sua técnica prodigiosa, o seu virtuosismo na linguagem convencional, a sua ousadia nas inovações de vanguarda na estrutura da obra, que inaugura múltiplos sentidos ao representar o mundo. Suas vozes, que se propalam por meio de expansões de uma vitalidade espantosa, alcançam no volume pesado sintonias com uma enorme representação da vida, que lhes dá fundamentos e transcendência na criação de mundos. Todos eles fazem com que o leitor pasmo se renda aos níveis de compreensão postos na construção de ideias e disseminação de emoções, pontuadas em cenário fabuloso construído através de forte sentimento da existência, expectante visão assustadora na tentativa de iluminar o ser, extraindo-o da matéria obscura, para assim no volume grosso preenchido de ideias   proporcionar na eloquência do ofício uma leitura mais generalizada de seres e coisas postos no mundo para que sejam aferidos no plano das emoções e pensamentos.    

 

Em Viva o povo brasileiro, sem fazer concessões à história elaborada para dar prazer aos vencedores, os donos do poder, camuflando a verdade com os sofismas da mentira, são vistos fatos reais extraídos da história do Brasil, no caminho de sua afirmação identitária, embora seus personagens sejam fictícios, projeções de condutas como testemunhos e interpretes de uma gama impressionante de situações.  Tudo é grandioso nesse romance, nada escapa ao autor de grande força literária, expositor magistral com argumentos ricos capazes de suscitar a polêmica. Fatos reais são visíveis na trama com a presença do colonizador português, a vinda da família real, o Estado Novo e a Ditadura.

 

O espaço romanesco do livro cobre cerca de 400 anos de história do Brasil, com início em 1647 e vai até 1977. Nele, o percurso e a ambiência permeada de fatos da história do Brasil no começo aludem a episódios personalizados pela invasão holandesa na Bahia. Como herança dessa invasão emerge o Caboco Capiroba, que deixou descendentes indígenas e de linhagem europeia, tornando-se uma impressionante figura pela prática que legou do canibalismo.  Grande parte dos relatos em Viva o povo brasileiro tem como ambiente a Ilha de Itaparica na Bahia.  Outros acontecem no Rio de Janeiro, São Paulo e Lisboa.  Para evitar a narrativa convencional, que se desdobra na sequência lógica do tempo linear, João Ubaldo Ribeiro recorre aos núcleos onde acontecem os episódios com personagens distintas, às vezes distantes historicamente, mas que não impedem que vindos de um território romanesco se interliguem com a presença em outro de geografia humana diferente. Algumas vezes o tratamento que a personagem suscita para que alcance a sua própria dimensão, os horizontes como essência da vida, motiva o autor a enriquecer o texto com interligações de um núcleo a outro. Anote-se, entre tantas personagens, ricas em seu perfil sócio-econômico-cultural, o Alferes José Brandão, Perilo Ambrósio (Barão de Pirapuama), herói da Independência, Amleto Ferreira, Maria da Fé, a heroína bela e lendária, Vevé, Patrício Macário, Nego Leléu, Vú, Patrício Macário, Bonifácio Odulfo, Rita Popó e Major Vieira.

 

Poderoso romance que se opõe aos que escrevem a história para salvaguardar interesses de classe, alguns parágrafos ocupando duas, três páginas, dotado de convincentes argumentações, que desarmam a mentira com a ironia e o deboche. Romance comprometido com a verdade histórica, de denúncia às mazelas cometidas na sociedade e ao seu povo em formação do caráter, tendendo para mostrar a face oculta dos que vivem injustiçados, levando o Brasil nas costas, como verdadeiros heróis anônimos.  Viva o povo brasileiro, no desdobramento de seu eixo narrativo, como não poderia deixar de ser, possui na formação de seu conteúdo o elemento ensaístico, é transgressivo na sintaxe discursiva, antropológico no enfoque do comportamento das três raças formadoras de uma nação em caminho de sua identidade.

 

O autor, erudito e ardoroso nas suas enunciações, concebe a verdade tão somente atada à existência de histórias, não com a existência de fatos. E porque assim procede em sua obsessiva fidelidade ao mundo recriado recorre ao uso de variações dialetais, meios discursivos que projetam a personagem com o seu caráter moldado pelas condições econômicas e culturais da ambiência social.  Da leitura desse magnífico romance saímos informados, por exemplo, sobre o fato de que, já em 10 de junho de 1822, havia quem denunciasse com veemência que o Brasil representava a liberdade, a opulência, a justiça e a beleza, possuía como alimentos de benquerença fartura e paz, condições negadas pela iniquidade dos portugueses, que tudo de nós queriam e nada davam em troca.  A propósito, deputados brasileiros em Lisboa se tinham oposto à anistia.

 

O autor não economiza nas tintas que pintam os quadros dolorosos da escravatura, vê-se na obra o africano usado como mão de obra gratuita porque não havia outro jeito de gerar o trabalho servil, a não ser por uma gente que só tem instinto, usuária de uma língua bárbara, misturada com grunhidos e sons estranhos, que ninguém entendia. Escuta-se então na atmosfera de desprezo e vilania ele ser chamado pelo homem que se dizia civilizado como um pedaço de asno, fedendo como bosta de demônio.

 

Entre os dirigentes do sistema elementar organizado, esse Brasil no caminho abstrato de sua formação social, através da aristocracia urbana e rural, considerava-se o elemento servil como indispensável para a manutenção do país e a sociedade. Sem ele, os custos se tornariam proibitivos, não se poderia aspirar a transformar a nação em civilizada e culta. O preço era grande para a convivência com tamanha sujidade e fedentina, chegando-se ao ponto de agradecer a Deus pelo destino de homens normais, que assim, distinguidos pela natureza como criaturas privilegiadas, submetiam-se à prova da caridade. Imundo e emporcalhado, apesar de causar males à existência, tinha-se em quantidade esse negro subjugado sob o império da atitude que ordena e desfere a chibata porque o engenho exigia muitos braços.  Era uma pena, um desperdício constante, exigia tanto cuidado e despesas, achando-se alguns que se não era melhor sem eles. Duro era mesmo aguentar a negrada.

 

O enleio de Portugal, Brasil e Algarve simbolizava uma nova era, a acenar quantidade de prêmios, recompensas apinhadas na natureza, oferta de patrimônios, fazendas ricas, medalhas e pensões, títulos, concessões, comendas e cargos vitalícios. A ideologia dos que dominavam propalava na perspectiva de sua passagem que os céus ofereceriam benesses mais fartas e generosas que a própria terra bendita, sobre a qual se desdobrava agora o manto da liberdade, riqueza e opulência. 

 

– Entre a Pátria e a família, minha boa mulher, Deus sempre há de me dar forças para escolher a primeira, eis que vale mais o destino de um povo que a sina de um só. (página 35)

 

Com as gradações do entusiasmo nessa maneira de pensar a vida, seria surpresa se o protótipo representante da classe dominante, o detentor dos meios de produção, fosse dotado de visões humanistas integradas em harmonia com a natureza, evitando a exploração sem escrúpulos de qualquer tipo de  negócio,  que lhe rendesse vultosos proventos, como no comércio da pesca da baleia,  executada com requinte na matança e a bênção do padre antes das lanchas seguirem para a empreitada sinistra.

 

Não obstante, às incursões que são feitas por ficcionistas e ensaístas no tema da escravatura, insurgindo-se contra as chagas da desgraça, o tema é caro em Viva o povo brasileiro. Por mais que se saiba da dívida impagável pelo Brasil aos danos cometidos ao negro escravizado, o autor não poupa os sons para compor a crueza das atrocidades cometidas pelo branco à inocência submetida aos instintos inconcebíveis do colonizador.  Amplia-se a visão sobre o negro, que responde com a passividade ante a força desumana dos que detém o mando no rigor da atitude que comanda. Tanta crueldade alimenta a história com a tristeza e a injustiça, forja a impotência dos que não sabem como curar a desgraça ou se esconder da vergonha. Corta-se a língua de quem gosta de inventar ingenuidades para fazer o elogio da autoestima, em feitos que só é possível de serem executados e cantados pelo herói não preto. Corta-se o pé do fujão para que não repita a afronta de quem quis que não se repetisse a lágrima, o suor, a constante cantiga da amarga solidão. Arranca-se os tampos da virginal flor em estado selvagem contanto que seja da cabaça extraído o mel para servir o seu dono, que deixa o fel como paga de seu ato prepotente e assim lega como remuneração o tempo das dores para que seja moído e remoído em sua carga de ondas no grito abafado do peito frágil  para todo o sempre.   

   

E finalmente pegando a negrinha Vevé e, sem dizer uma palavra, atirá-la à cama, abrindo-lhe as pernas, deixar bem claro que não queria que se mexesse, e, passando cuspe por aquela cabeça de carne inchada e embrutecida, deflorá-la de um só golpe, aguardando um estremeção de dor para impedir seus movimentos com um abraço paralisante, sentir qualquer estalo de pele ou cartilagem se rompendo, pressentir que ela era rasa ou estreita e, empurrando-lhe os joelhos para cima, enfiar-lhe tudo com um golpe, depois de penetrá-la até encostar os ossos dela em suas banhas, com mais estocadas curtas, , como quem trespassa, como quem empala, , como quem gostaria de que a mulher fosse  inteiramente atravessada e morresse,  com as vísceras destroçadas, morresse bem no instante  em que, quase sem precisar fazer mais um gesto sequer, gozasse dentro dela, senhor completo, levantando-se e limpando sangue e gosma na camisola da negrinha. (página 91) 

 

Em outra cena, à mazela que o homem como bicho no auge dos instintos se faz  dilacerador da vida como se fosse uma coisa qualquer, sem canto e encanto, mas para ser comida nas manhãs de uma escultura que não tem tempo para se mostrar jovem, radiante na espuma formosa que suplanta o sofrimento quando o mundo em um instante pode se mostrar belo, a ponto de revelar o milagre que tantas vezes alcança o amor que vive na amplidão,  a natureza se incumbe de dizer que mais vale a harmonia que se completa em estado natural procedente de algo  que se veste com a  melodia que aparece no azul, para onde vá amassa as águas na inauguração de sentidos e  para reinventar a espécie.

 

Assim do alto e de longe, vê-se chispando pela flor d’água uma baleia, depois vê-se que são duas. É que vão tão juntas e harmonizadas que parecem um só bicho, até que o macho, por nervosismo e necessidade de mostrar proeza, desencosta a cabeça que trazia junta à dela, rabana com estrondo, irrompe das águas e voa, formando uma lagoa alada em torno do corpo, que então singra os ares um instante, serpenteia esticando o salto e, levantando um vagalhão estrepitoso, cai junto a ela na mesma posição em que antes nadavam e continuam a nadar, espelhando o sol nos couros azulados. (página 151)

 

Em certo trecho que aborda o tema do racismo,  exercido com a hipocrisia posta no gesto, cobrindo a  mancha que molesta,  o filho, que saiu com os traços brancos do pai, apesar da  mãe ser  negra, inconformado com a presença dela, que ali comparecia  com o sentimento de querer ver o  neto na pia batismal, de se portar ali, naquele momento especial, como a mãe do grande comerciante e cidadão respeitado Amleto  Ferreira, por ela amamentado, limpado, amparado e curado, apenas consente  que ela, depois de tanto se humilhar,  apresente-se no ambiente apenas  como a ama de leite do menino.

 

– Bem, o que não faço por ti! Mas vê lá, hem, vê como te portas, és a ama que me criou e assim te portarás, não te perdoarei se me traíres a confiança! (página 238)

 

Da opressiva violência que marca o caráter da aristocracia da época resultam dois fatos que servem como fundamentos importantes no giro narrativo do romance: a gravidez de Vevé e a secreta Irmandade Povo Brasileiro. Vevé dá à luz a Maria da Fé, lendária personagem, audaciosa e idealista, que será criada em liberdade, sob os desvelos do negro liberto Leléu, que cerca a protegida de todos os cuidados, usando para isso a alma generosa e seus parcos recursos.

 

A secreta Irmandade Povo Brasileiro nasce do pacto entre os escravos do engenho, que decidem envenenar seu senhor e dessa vingança ascende o mulato Amleto Ferreira, que, na condição de guarda-livros da empresa, esfacela ao seu proveito os bens de seu empregador, em lastimável estado de saúde. Tira proveito dessa situação para investir com suas falcatruas numa casa bancária e em outras iniciativas econômicas, que em pouco tempo farão dele nobre patriarca de uma das famílias mais ricas e poderosas do país.

 

De Maria da Fé e Amleto Ferreira desdobram-se as duas ordens propulsoras no conflito social brasileiro. A heroína torna-se a grande líder da irmandade, agente responsável por suas ações de guerrilha pelo sertão. Seu compromisso com a justiça para o povo oprimido contrasta com a corrupção do grupo familiar de Amleto Ferreira, do qual nasce   Bonifácio Odulfo, poeta que deixa de lado o culto à musa romântica para se tornar um dos mais corruptos homens de negócio. Patrício Macário, filho que se torna transtorno das ambições paternas na sequência do ciclo patriarcal, será destinado ao Exército para que se corrija dos desvios éticos familiares acasalados com o poder econômico. Torna-se um destacado soldado na Revolução Farroupilha e herói na Guerra do Paraguai. No amor e respeito entre o soldado legalista e a guerrilheira, símbolo tenaz do espírito positivo brasileiro, reside o encontro possível desse universo contraditório, ao qual o romance não se submete em suas visões que expõem a perpetuação das iniquidades de uma elite corrupta. Noutra direção, faz-se oponente à desenfreada vileza imposta aos que estão subordinados a ela.

 

João Ubaldo Ribeiro incorpora toda a matéria histórica ao plano explícito da teia romanesca de seu esplêndido romance, que envolve a formação histórica do Brasil, mas para enriquecer a tessitura que se liga à maravilha de uma imaginação rica vai buscar na magia do candomblé, representada pelos orixás, as forças que operam entre os humanos e suplanta todas as tormentas sem haver distância entre o céu e a terra. As divindades que vieram da África no navio negreiro participam da guerra entre os humanos, chegam em socorro aos seus filhos no lugar longe chamado Tuiuti, onde muitos de bravos soldados perecem.  Alcançam momentos de realismo mágico lances  que resultam do desempenho superior das divindades africanas,  não fossem elas  mágicas em si mesmas, em essência revestidas de mistério, que as faz entidades de saber profundo. 

 

Oxalá, o dono dos céus, tudo vê, compadecido dos filhos que tombam bravamente na refrega, ao lado deles, na peleja cruel, seus guias e protetores.  Oxóssi, o incomparável caçador da madrugada, o rei da mata, senhor da astúcia, imbatível no arco e flecha;   Xangô, o que atira raios, pedras e  fogo;  o grande Ogum, o que abre estradas, invencível em todas as demandas, guerreiro singular em combate,  senhor dos ferros e das armas, que a princípio resiste em tomar parte na batalha,  por orgulho,   pois não foi o primeiro a ser convidado, a receber as homenagens devidas com o convite,  para que cumprido o preceito  se comprometesse  a lutar, e que em sonho é convencido por Exu, o que come e bebe na encruzilhada, conhece mil ardis;  lá está no combate ferrenho  Iansã, senhora dos  ventos e tempestades, valente e arrojada como os tufões;  até Omolu, com a sua face oculta,  mestre das doenças e senhor das pestes,  também quis defender seus filhos da sanha  inesgotável do inimigo, o que lhe foi negado por Ogum.

     

Oxalá, pai dos homens, o que não conhece o medo, nem a incerteza. Conhece porém a angústia e de novo lhe doeu o coração, ao pensar que aquela batalha estava ganha, mas havia apenas começado os dias terríveis em que seus filhos mais valorosos pereceriam como moscas, como flores pisoteadas pelo cruel inimigo, como troncos apodrecidos pela ira de Omolu, senhor das moléstias, príncipe das pestes, donos das chagas e crecas, o que mata sem faca.  (página 454)

    

João Ubaldo Ribeiro mostra ao final o calor que tem pela crença com bases no espírito do homem, forjado pelo bem na sua essência universal. Também existe não como uma ilusão, como algo motivado por necessidade, carência, mas que aspira à graça, já que assim é que tem de ser, como causa comum de todas as suas consciências nessa aspiração, “que se traduz na paz final de existir em que se veja a existência, existir como essência, só existir, porque o espírito do Espírito do Homem anseia a perfeição, que é o Bem.” (página 662/3)

 

O desfecho o romance é um achado surpreendente. Um dos ladrões vendo o futuro numa coisa dentro da canastra, formada de ladrão para tudo quanto era lado, gente   falsária, estelionatária, trajado como de terno de duque, gravata de seda, alfinetes de brilhantes, sapato de crocodilo, ladrão fardado aos montes, todos eles nem entrando nas casas, distribuindo uns cartõezinhos, dando ao dinheiro todo tipo de nome, como verba, ágio, numerário, honorário, comissão, corretagem. O ladrão que espia nervoso o que se passa dentro da canastra não pode continuar a olhar o futuro representado por gente da pior espécie e um ronco imenso aparece no tumulto que atropela e assusta como se fosse de uma coisa enorme soterrada e quisesse sair, e que já não era mais um bicho, mas a própria terra como se estivesse em dor de parir. Os ladrões correm e soltam a canastra que foi soterrada pelo sangue que dela escorre, pela lágrima, pelo suor, um caldo volumoso que empapa as paredes, até que começa a chover em bagas grossas.

 

Ninguém olhou para cima e assim ninguém viu, no meio do temporal, o Espírito do Homem, erradio, mas cheio de esperança, vagando sobre as águas sem luz da grande baía. (página 673).

 

É visível que o autor desse romance épico transpira entre vocabulários e livros, persegue a palavra atravessada de paixão, a frase mais eloquente como requer o assunto que relata, motiva-se em tudo que lhe possa render páginas extras de prosa caudalosa a possibilitar o interesse do leitor, preso à maravilha de uma imaginação que deixa qualquer um atônito.  Recorre às comparações, produz metáforas, faz boa escolha de adjetivos, intercala a frase com brocardos latinos, citações em francês. Pulsa no texto vigoroso sentimentos e nervos, faz vibrar o sistema verbal que se adensa no drama, pujante para oferecer ao leitor o que se aproxima da vida e sua grandeza, já que por melhor que seja abrangente o relato jamais pode suprir é o que seja a vida em si e em sua natureza tangível, pois ninguém está presente ao indescritível. 

 

Nas minudências da intriga, particularidades sutis do enredo, entre amores dificultados, azares dilacerantes, maldades contra inocentes, dilemas e coincidências  engenhosas, soluções impressionantes, desfechos inesperados e bem urdidos,   arroubos dos sentimentos e delírio das emoções, e tudo o mais que o romance necessita para se tornar imenso,  o autor aglutina seu material de natureza diversa  com engenho e brilho. Faz escorrer sua vitalidade criativa através de tonalidades expressivas para sinalizar o conteúdo. Nisto que operado com ritmo obsedante produz o escritor fascinante, interligado ao seu correspondente, que é o verdadeiro ficcionista no ofício. 

 

João Ubaldo Ribeiro com o seu Viva o povo brasileiro define-se como um artista da palavra que transcende o universo narrativo escolhido e se alça a um dos mais significativos ficcionistas da América Latina. Seu romance é uma eloquente afirmação de que a invenção vale a pena.

 

Referência

RIBEIRO, João Ubaldo. Viva o povo brasileiro, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1984.

2 comentários:

Gerakldo Reis Poeta disse...

Vamos divulgar! O romancista, o poeta, o escritor enfim, de um modo geral, são seres pensantes, sensíveis e mais ou menos absurdos. Tão absurdos que deixam de viver a própria existência (que é curta), para viver as sensações de um povo e filtrar as emoções da raça. Exemplo de altíssima expressão nesse sentido é João Ubaldo Ribeiro. Será sempre lembrado, sem dúvida. Mas a verdade é que nunca foi esquecido. Parabéns ao blog que divulga o excelente trabalho de Cyro de Matos. Esse é, também, um imortal.

Anônimo disse...

Esplêndido este ensaio do grande escritor Cyro de Matos sobre o monumental romance Viva o povo brasileiro. Que João Ubaldo Ribeiro continue bem lido. Sempre. Viva a literatura brasileira!! (Antônio Torres)