Teria sido Heidegger um “nazista do bem”? Sim, porque, por um lado, ele foi um militante nazista de primeira hora, tão fanaticamente nazista que os professores de Freiburg o consideravam “um sonhador radical que tinha enlouquecido” (p. 318) e um psicólogo nazista (Jaensch) o considerou “uma das cabeças mais confusas e um dos mais excêntricos sujeitos que temos no ensino superior”, com um “pensamento tão excêntrico quanto obscuro, esquizoide, em parte já esquizofrênico” (p.333), e por outro lado ele vem sendo há décadas o queridinho de uma plêiade de intelectuais que se embasbacam com seu pensamento tão nebuloso que dá até turbulência...
Meu primeiro contato com Heidegger foi em 1970 no primeiro ano da faculdade de Filosofia da UFRJ, quando fui aluno de Emmanuel Carneiro Leão, recém-chegado de Freiburg, onde havia sido discípulo de Heidegger, filósofo que caracterizou o ser humano como “ser-para-a-morte” e que, décadas depois, seria desmascarado como antigo adepto do nazismo. Está no meu livro de memórias que ganhou um prêmio literário e será lançado. O Carneiro Leão era muito carismático e muito camarada, e as aulas dele eram deleitosas. A gente não entendia nada mas achava bonito.
Acabo de ler a monumental e esclarecedora biografia do Heidegger pelo alemão Rüdiger Safranski, na tradução de Lya Luft. Traduzir uma biografia de Heidegger do complexo idioma alemão é tarefa para um Hércules da tradução. Infelizmente o livro está cheio de erros tipográficos como "ação história" em vez de "ação histórica" (pág. 96) e "silipsistas" em vez de "solipsistas" (e dezenas de outros que marquei no livro). A editora poderia investir um pouco mais em revisão.
A impressão que tive foi de que o Heidegger era mau caráter. Teve toda sua formação custeada por bolsas de estudo concedidas por instituições católicas e depois se voltou contra o cristianismo, macaqueando a proclamação de Nietzsche de que “Deus está morto”. Na Primeira Guerra Mundial, quando a juventude alemã (inclusive meus dois avós, materno e paterno) pegou em armas para defender seu país, Heidegger deu um jeito de não ser enviado ao front, por problemas cardíacos. Problemas cardíacos que depois, pelo resto da vida, sumiram.
Ele se valeu do fascínio intelectual que exercia sobre a aluna dezessete anos mais jovem Hannah Arendt para, em bom português do tempo em que ainda não existia o politicamente correto, “comê-la”. Como o Heidegger era casado, com dois filhos, seus encontros com a aluna menor de idade tinham de ser completamente secretos. Heidegger marcava o local e a hora, às vezes até em outras cidades, aproveitando palestras que tinha que dar, e a Hannah comparecia como um cão amestrado. Submissão total, nelson-rodrigueana.
Heidegger foi dedo-duro. Delatou colegas às autoridades nazistas. Está no Safranski, nas páginas 324-5.
Os heideggerianos varrem para baixo do tapete o flerte de seu ídolo com o nazismo. Na verdade, não foi um flerte, nem uma mera paixão política, foi uma paixão filosófica. O nazismo representava a volta à verdadeira filosofia pré-socrática, o dasein em sua plenitude. Antes dos nazistas subirem ao poder, Heidegger já flertava com aquela ideologia nefasta. Aproveitou a tomada do poder por aquele bando para arrebatar o cargo de reitor da Universidade de Freiburg, passando para trás outros pretendentes talvez mais qualificados. No cargo, impôs a disciplina nazista ao campus. Está tudo na biografia do Safranski, você pode ler com seus próprios olhos.
Quando, em viagem a Roma em 1936 para dar conferências, seu ex-aluno Karl Löwith, que tivera de deixar a Alemanha por sua ascendência judaica (embora professasse o protestantismo), observou que a “tomada de partido” de Heidegger “em favor do nacional-socialismo estava na essência de sua filosofia”, este concordou e explicou que “seu conceito de historicidade era o fundamento de sua mobilização política”. Nas andanças por Roma, Heidegger ostentava o símbolo do partido, a suástica. Está no Safranski, pp. 376-7.
Depois que renunciou à reitoria em Freiburg, Heidegger maquinou com as autoridades nazistas a criação de uma academia de docentes em Berlim para a formação ideológica de candidatos a lecionar no ensino superior, retirando este poder das universidades. Projeto que daria um poder incrível a Heidegger, praticamente de credenciar quem quisesse lecionar nas faculdades. Mas o projeto não se concretizou. Os próprios nazistas desconfiaram da megalomania de Heidegger. Está nas páginas 332-3 do Safranski.
Encerrada a guerra, os próprios catedráticos encarregados de desnazificar a universidade de Freiburg se indignaram com a ausência de qualquer sentimento de culpa em Heidegger pelo apoio ao nazismo.
Com a moda da filosofia existencialista francesa, de Sartre, Heidegger ganha um público novo, jovem, que não está nem aí para seu envolvimento com o nazismo. Em 1949 publica seu primeiro texto do pós-guerra, A carta sobre o humanismo. O filósofo que apoiou ativamente o regime que exterminou milhões de civis inocentes mete-se a falar de humanismo!
A filosofia de Heidegger me soa como mero jogo de palavras. Sim, ele se vale da capacidade de composição de palavras da língua alemão para fazer verdadeiros malabarismos lexicais. Para mim, aquele palavreado não faz o menor sentido. Se para você faz, então me explique o significado deste trecho de sua conferência sobre as interpretações fenomenológicas de Aristóteles: “Essa orientação fundamental do indagar filosófico não é imposta e aparafusada de fora no objeto indagado, pela via fáctica, mas deve ser compreendido como o apreender explícito de uma motilidade fundamental da vida fáctica, que é de maneira tal que na produção concreta de seu ser ele se preocupe com o seu ser, e isso também ali onde se desvia de si mesmo.” (p. 159)
Se você pesquisar sobre Heidegger lerá que ele revolucionou a filosofia como Einstein revolucionou a física no século XX. Não consigo ver essa revolução. Talvez por cegueira minha. O grande filósofo inglês Bertrand Russell teria sido cego como eu quando disse que “Altamente excêntrico em sua terminologia, sua filosofia é extremamente obscura”? Ou Roger Scruton ao dizer que “Sua obra principal Ser e Tempo é extremamente difícil — a não ser que seja puro absurdo, e neste caso é risivelmente fácil”? Ou o filósofo grego Panagiotis Kondylis ao afirmar que “Eu considero Ser e Tempo um dos livros mais superestimados do século. Para ser preciso, encaro-o como uma coleção de platitudes expressas em linguagem pretensiosa e obscura” ou o filósofo inglês Ayer ao acusar Heidegger de charlatanismo?
Um embuste da filosofia heideggeriana é a entronização da filosofia pré-socrática como sendo a autêntica, a verdadeira filosofia. Tudo que veio depois foi uma deformação, uma decadência da filosofia. Na verdade ninguém sabe direito como foi a filosofia antes de Sócrates, não sobreviveu nenhuma obra dos filósofos daquela época, tudo que temos são citações feitas por filósofos posteriores, fragmentos de textos.
A filosofia política inglesa gerou bons frutos, como a democracia, a sociedade liberal, etc. Já a filosofia alemã gerou algumas aberrações, como a barbárie marxista, subproduto da filosofia de Hegel. O marxismo prega o extermínio puro e simples da burguesia. Parece que essas filosofias que são contra as platitudes da vida corriqueira, contra o mundo burguês raso, etc. etc. acabam descambando na carnificina. Em sua aversão platônica à democracia e desejo de salvar a humanidade, acabam impondo a tirania. Você sabia que os nazistas flertaram com o pensamento de Nietzsche, deturpando-o, é verdade, mas flertaram? Quem se salva é Schopenhauer, com sua filosofia pessimista baseada no budismo, que nunca empolgou nenhum ditador de plantão. Vou ler as biografias desses filósofos, também escritas pelo Safranski, em seguida.
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